Pamuk trabalha a partir de uma base mágico-realista, situando os acontecimentos numa pequena vila do noroeste da Turquia, Kars, que bem podia ser imaginada, mas não o é. Kars existe, e dado o seu caráter fronteiriço tem pertencido a regimes distintos em função das vontade do tempo, ao longo de séculos. No livro, serve de palco para uma cidade tipicamente turca, na qual se debate o secularismo, ou seja o estado laico contra o estado religioso (ajuda se tivermos presente algumas ideias sobre o país, ligando o passado desenhado por Ataturk aos problemas que se vivem agora com Erdogan, ou tendo imagens de cinematografias como as de Nuri Bilge Ceylan ou Kazim Oz). O lado mágico surge pelo enquadramento criado, já que quase tudo acontece aquando de um grande nevão que deixa a cidade isolada, lançando-se a confusão entre as fações — religiosos contra laicos, que por sua vez se dividem em comunistas e nacionalistas — os habitantes e os media que os seguem. Os media são aqui fundamentais, desde logo porque o jornal da cidade prevê o futuro, ou seja cria manchetes do que vai acontecer no dia seguinte.
Pamuk vai então socorrer-se do cenário montado para sem qualquer pudor colocar o dedo na ferida, desferindo ataques pertinentes na relação entre a Europa (particularmente a Alemanha que tem sido o grande destino de muitos imigrantes turcos) e a Turquia, entre o Estado e a Religião, falando da posição da mulher nas diferentes culturas, do suicídio, da democracia, do jornalismo, da arte, questionando preconceitos e modelos mentais da realidade que todos nós vamos construindo. Por vezes quase sentimos como que Pamuk puxando-nos as orelhas, alertando para a existência de um outro. Mas Pamuk não filosofa apenas, tudo isto é muito bem acompanhado por doses racionadas de enredo, carregado de crime, amor e paixão.
A trama na narração é particularmente bem estruturada, existindo um cuidado com os detalhes que nos toca. Por exemplo, o narrador avisa sempre previamente se um personagem que entra em cena deverá morrer mais à frente, o que gera em nós um misto de sensações, como que se o autor não nos quisesses impressionar com a surpresa. Por outro lado, no que toca as redes de paixões Pamuk tira-nos o tapete, brinca com as nossas emoções, surpreende, levanta-nos a ira. Ou seja, o romance tem muito para dizer, mas nem por isso se limita a dizer, fá-lo envolvendo emocionalmente o leitor, prendendo-o àquele mundo, subjugando-o às suas necessidades. Existe um traço melancólico enfatizado pela neve e pelo isolamento da vila e das vidas de cada personagem que caracterizam a atmosfera e a tornam muito particular, por isso a meio do livro e quando fora das suas páginas, damos por nós invariavelmente a pensar “quando volto para Kars?”.
A escrita impressiona, embora como o tema, não é para todos os gostos. Pamuk é bastante verborreico, e nesse sentido consegue por um lado fazer-me lembrar de autores como Jonathan Franzen, mas ao mesmo tempo e talvez ainda mais, Garcia Marquez e a sua Macondo, por toda a verborreia misturada com toda a ação constante, mais todos personagens e as suas desfocagens da realidade. “Neve” funciona como uma espécie de fábula imparável em que o protagonista, um poeta acabado de passar por uma crise de inspiração, recomeça a escrever, mas não nos fala, chega-nos por meio de um romancista, que tem o mesmo nome de Pamuk, e que está a escrever um livro sobre esse poeta. Ou seja, “Neve” é um livro de poemas, dentro de um livro sobre o autor desses poemas. Sim, existe aqui algo de pós-moderno, mas pouco, eu diria que depois do belíssimo “O Meu Nome é Vermelho” (1998) Pamuk quis fazer algo mais clássico ainda que emoldurado por artifícios pós-modernos.
“Se me meter num romance passado em Kars, gostaria de dizer ao leitor que não acreditasse em nada do que lá escreve a meu respeito ou a respeito da gente de Kars. De longe ninguém pode compreender-nos.”
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