Humano. Feminino. Maternal. “Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva”. Quarto livro de Maggie O’Farrell que li nos últimos 2 anos, o que evidencia o quanto me apaixonei pelo seu trabalho desde que li “Hamnet”. A sua escrita não é meramente bela, é dotada de uma capacidade descritiva particular pelo modo como produz parágrafos longamente fluídos descrevendo ações a partir dos seus efeitos psicológicos. Tendo a compará-la, ainda que cada um na sua particularidade, a Jonathan Franzen e Zadie Smith. O conteúdo do que cada um destes tende a expressar não podia ser mais distinto, nomeadamente O’Farrell não é comparável em erudição, mas o seu realismo junto à pele é bastante mais cortante. O modo é tão relevante a ponto de neste livro de memórias discordar várias vezes da sua definição do mundo, mas a intensidade honesta e humilde da forma usada apaga toda a distância que existe entre esse seu mundo e o meu.
Este é um livro de memórias incomum. O mote que suporta o contar das peripécias de uma vida não assenta na cronologia, nas conquistas ou amores, mas antes em 17 momentos da vida de O’Farrell em que esta quase morreu. Só por si, serviria a tragédia de modo intenso, mas nem sempre é dela que nos fala a autora. Aliás, chegado ao final percebe-se o porquê deste enfoque que tem mais que ver com a condição de doença que atacou O’Farrell aos 8 anos, uma encefalite viral que transformaria por completo todo o seu sistema de perceção que afeta até hoje o seu controlo motor.
Apesar de ser um livro de memórias, “Estou Viva, Estou Viva, Estou Viva” está escrito como romance. Não se segue a cronologia, mas o fluxo dramático necessário ao contar da história, e a produção da experiência desejada pela autora. Por isso somos levados com ela, não apenas pelas descrições por vezes bizarras da condição de saúde, mas particularmente pelo modo encantatório como nos seduz pela sua escrita, do entrosar de factos em ritmos e cadências que nos envolvem. O’Farrell fala de si, mas o foco está situado fora de si, na sua relação com a família, em particular com os seus filhos, e depois a mãe e o marido.
O’Farrell não se coíbe de tentar interpretar-se a si mesma, procurando entender como a doença lhe ofereceu mais do que uma segunda oportunidade, uma nova forma de estar e viver, e como isso lhe providenciou maior clarividência, nomeadamente menor temor e maior capacidade de correr riscos. Mas simultaneamente, e talvez inadvertidamente, faz trespassar a intensidade com que a maternidade impactou e transformou a pessoa que a autora é hoje.
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