Alice Sebold
“Sorte” é um livro de memórias, escrito como romance, e por vezes a personalidade franca e frontal da autora faz parecer tudo demasiado simples, fácil. A tragédia está lá, com os seus momentos altos de explosão e os baixos de negrura, mas o livro é sobre Sebold, e não sobre uma violação, ou pelo menos assim nos faz sentir Alice. Mas talvez também por isso não admire quem não se tenha conseguido ligar com o sofrimento da escritora, já que ele não é pronunciado, não é dominante. A isto não será com certeza alheio o facto de os seus pais terem pensado, e terem-no dito à própria Alice, que de entre as duas filhas, preferiam que lhe tivesse acontecido a ela, a menos introspectiva, mais alegre, divertida e cabeça no ar... Talvez tivessem razão, sendo no entanto preciso ser-se bastante alienado para se dizer tal a uma filha, mas muito do que fazem os seus pais é no mínimo estranho, ou pelo menos assim parece pelo modo como Alice olha para eles...
"Desde então pensei sempre que nos dicionários deviam dizer a verdade sobre a palavra violação. Não é apenas uma relação sexual forçada; violação significa invadir e destruir tudo." (p.178)Não admira uma certa leveza que se sente ao chegar ao final da leitura apesar do que está em questão, e principalmente do brilhante primeiro capítulo focado no assunto e que funciona autenticamente como um estar dentro da cabeça de Alice durante todo o seu processo de revisitar a violação, como se víssemos através das janelas dos seus olhos as nauseabundas ações do violador. Mas isto também nos diz algo sobre a escrita, mais focada na ação e exterior, ainda que vista do ponto de vista da Alice. Porque ela não fala do que sente, fala mas não se detém, vai contando e descrevendo cada passo, um atrás do outro, seguindo um processo algo mecânico de contar histórias que agarra o leitor, por meio do “e a seguir” que faz virar páginas atrás de páginas. Porque por mais trágico que tudo tenha sido, Sebold não definha, não quebra, nem se deixa arrastar, não é assim que sente o mundo, ao contrário da sua família.
Sinopse: "No túnel onde fui violada, um túnel que outrora fora a entrada subterrânea de um anfiteatro, um lugar de onde os actores irrompiam para cima e para a frente, situado por debaixo dos assentos da multidão, uma rapariga fora assassinada e desmembrada. A polícia contou-me essa história. Comparada com ela, disseram, eu tinha tido muita sorte."
Aliás, não tendo lido o seu segundo livro, “Visto do Céu” (2006), vi o filme homónimo (2009), e li algumas resenhas do livro, parece-me que este tratamento que dá a sensação de ser feito apenas à superfície do sentir é uma marca sua. Quando olhamos para a violação ou rapto de menores, só conseguimos ver as trevas e a podridão do humano, Sebold consegue ainda assim encontrar luz, encontrar algo de positivo a que se agarrar. Ficamos com a sensação de que Sebold não vai ao fundo dos problemas, e poderíamos até pensar que é porque nunca os sentiu, mas como se vê por estas memórias, a questão está longe de ser falta de autenticidade ou de sentir, é antes uma forma de estar. Aliás, agora que escrevo estas linhas, penso que talvez o título do livro e o parágrafo que abre a sinopse não tenham sido usados de modo irónico como sempre pensei, mas talvez reflitam exatamente o caminho que Sebold decidiu trilhar dentro de si.
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