"Hamnet" (2020) dificilmente não se tornará num clássico. Escrito num modo que dificilmente conseguimos separar da trilogia Cromwell de Hillary Mantel, pelo uso distinto dos verbos presente, e também futuro do presente, que cosem a descrição com estranheza e, tal como em Cromwell, contribuem para criar a peculiar atmosfera do século XVI. Maggie O'Farrell usa, muito habilmente, este espaço atmosférico como espaço imaginário para alargar aquilo que conhecemos da História. Sabendo nós pouco, quase nada, sobre a vida privada de Shakespeare, O'Farrell consegue a proeza de nos transportar no tempo e dar a ver, num tom imensamente credível, como poderá ter sido essa. Se o título se foca sobre o filho perdido aos 11 anos, Hamnet, fazendo por vezes recordar a tensão mágica de Lincoln e o seu também defunto filho Willie, imaginado por George Saunders, o foco é na verdade a mulher, Agnes Hathaway. É este foco que revitaliza o nosso imaginário sobre Shakespeare, sendo-nos oferecido numa descrição feminina e poderosa, mágica mesmo, do seu mundo privado desconhecido. Shakespeare nunca é nomeado, mas o livro não é sobre ele, o artista, é sobre as relações de uma família, a sua.
A nossa experiência decorre de uma escrita não-linear que intensifica o suspense e faz com que tenhamos dificuldade em pousar o livro. Sentimos aquele mundo, detalhadamente elaborado por O'Farrell, continuamente a clamar por nós quando não o temos na nossa frente. As páginas viram-se sozinhas, mas não raras vezes, dou por mim a parar para admirar frases ou parágrafos. Não é só o detalhe, que surpreende a cinco séculos de distância, é a criatividade, verdadeira invenção, de O'Farrell na construção, tecedura e cosedura, de partes daquele mundo naquele tempo com partes de potenciais pessoas / personagens para nos oferecer um desenrolar de conflitos que produzem ações profundamente credíveis.
Porque O'Farrell, como Mantel, também não se limita a seguir os cânones históricos. Agnes, como Cromwell, faz parte do lote de figuras históricas negativas. Tinha 26 anos e Shakespeare 18, estava grávida quando casaram, por isso a História tende a oferecer a ideia de casamento forçado, e mesmo de falta de amor entre ambos. Isso explicaria o ter vivido sozinho em Londres a maior parte da sua vida, e oferece lastro ao imaginário para criar aventuras amorosas extra-conjugais como a apresentada num dos filmes, de maior sucesso, sobre o autor, "Shakespeare in Love" (1998). Mas O'Farrell oferece-nos uma visão distinta, uma Agnes admirável, capaz de ombrear com as qualidades de Shakespeare, tornando todo o mundo apresentado muito mais instigante.
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