janeiro 01, 2022

"Hamnet" (2020) de Maggie O'Farrell

"Hamnet" (2020) dificilmente não se tornará num clássico. Escrito num modo que dificilmente conseguimos separar da trilogia Cromwell de Hillary Mantel, pelo uso distinto dos verbos presente, e também futuro do presente, que cosem a descrição com estranheza e, tal como em Cromwell, contribuem para criar a peculiar atmosfera do século XVI. Maggie O'Farrell usa, muito habilmente, este espaço atmosférico como espaço imaginário para alargar aquilo que conhecemos da História. Sabendo nós pouco, quase nada, sobre a vida privada de Shakespeare, O'Farrell consegue a proeza de nos transportar no tempo e dar a ver, num tom imensamente credível, como poderá ter sido essa. Se o título se foca sobre o filho perdido aos 11 anos, Hamnet, fazendo por vezes recordar a tensão mágica de Lincoln e o seu também defunto filho Willie, imaginado por George Saunders, o foco é na verdade a mulher, Agnes Hathaway. É este foco que revitaliza o nosso imaginário sobre Shakespeare, sendo-nos oferecido numa descrição feminina e poderosa, mágica mesmo, do seu mundo privado desconhecido. Shakespeare nunca é nomeado, mas o livro não é sobre ele, o artista, é sobre as relações de uma família, a sua.

A nossa experiência decorre de uma escrita não-linear que intensifica o suspense e faz com que tenhamos dificuldade em pousar o livro. Sentimos aquele mundo, detalhadamente elaborado por O'Farrell, continuamente a clamar por nós quando não o temos na nossa frente. As páginas viram-se sozinhas, mas não raras vezes, dou por mim a parar para admirar frases ou parágrafos. Não é só o detalhe, que surpreende a cinco séculos de distância, é a criatividade, verdadeira invenção, de O'Farrell na construção, tecedura e cosedura, de partes daquele mundo naquele tempo com partes de potenciais pessoas / personagens para nos oferecer um desenrolar de conflitos que produzem ações profundamente credíveis.

A capa portuguesa da RdA é bela, mas a capa original, usada na maior parte das traduções, é mais fiel ao mundo representado.

Porque O'Farrell, como Mantel, também não se limita a seguir os cânones históricos. Agnes, como Cromwell, faz parte do lote de figuras históricas negativas. Tinha 26 anos e Shakespeare 18, estava grávida quando casaram, por isso a História tende a oferecer a ideia de casamento forçado, e mesmo de falta de amor entre ambos. Isso explicaria o ter vivido sozinho em Londres a maior parte da sua vida, e  oferece lastro ao imaginário para criar aventuras amorosas extra-conjugais como a apresentada num dos filmes, de maior sucesso, sobre  o autor, "Shakespeare in Love" (1998). Mas O'Farrell oferece-nos uma visão  distinta, uma Agnes admirável, capaz de ombrear com as qualidades de Shakespeare, tornando todo o mundo apresentado muito mais instigante.

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