março 05, 2019

A literatura como paliativo

"When Breath Becomes Air" é um livro de memórias de Paul Kalanithi, a quem com 36 anos, no final de uma residência médica de 6 anos como neurocirurgião e prestes a conseguir o seu diploma, foi diagnosticado um cancro nível IV (inoperável) nos pulmões (sem nunca ter fumado). Ao longo das parcas 220 páginas (morreu antes de o poder terminar), que se lêem de uma vez, somos conduzidos pelo relato das opções e decisões tomadas ao longo de uma vida que permitiram a Paul Kalanithi chegar ao final da sua formação médica e escrever um livro pleno de expressividade. O seu livro tem servido de inspiração um pouco por todo o mundo — de Bill Gates a Andrew Solomon ou Atul Gawande —, tendo o Departamento de Medicina da Universidade de Stanford, onde se formou, criado mesmo, um ano depois da sua morte, o Prémio Kalanithi Writing para obras sobre pacientes em fim de vida ou cuidados paliativos.


Da minha intensa experiência de leitura, comparei-a com o relato da "The Last Lecture" de Randy Pausch (1960 - 2008), professor e investigador — de Entretenimento Digital na Carnegie Mellon — morto de cancro no pâncreas. Se Pausch me tinha tocado imenso, foi muito provavelmente catalisado por ser uma pessoa no meu campo científico, alguém que admirava, seguia e lia o seu trabalho de forma regular, contudo desta vez o embate parecia-me ser maior. No entanto, se tenho estudado imenso o que se vai fazendo no campo das neurociências, nem por isso tenho qualquer familiaridade com a neurocirugia. Por outro lado, este relato de Kalanithi fez-me recordar ainda um outro, não de fim de vida, ainda que também de memórias mas de alguém no ativo, "Sinto Muito" de Nuno Lobo Antunes, sobre a ala neuropedriátrica e os efeitos dos tratamentos oncológicos em tenras idades.

A edição portuguesa foi editada pela Saída de Emergência sob o título "Antes de Eu Partir"

Pensei assim que a intensidade da experiência se devia ao fator cérebro, aliás como diz a certa altura Paul Kalanithi, "a medicina relacionada com o cérebro comporta algo de esotérico que nos atrai e terrifica". Mas agora que escrevo estas linhas percebo que não foi só pela área de trabalho, foi claramente pelo modo como Kalanithi se expôs, e acima de tudo conseguiu exteriorizar e plasmar na escrita a sua percepção do mundo. Ora a isto não é alheio à formação de Kalanithi, que antes de estudar medicina fez licenciatura e mestrado em Literatura Inglesa, ao que se seguiu um mestrado em Biologia Humana ainda em Stanford, e depois um outro mestrado em História da Ciência e Medicina na Universidade de Cambridge. Foi apenas no final dos estudos em Cambridge que Kalanithi decidiu que queria ser médico, e para isso teve de voltar ao início, fazer provas e conseguir entrar em Medicina em Yale. Até esta altura Kalanithi acalentava a ideia de poder vir a tornar-se escritor.

Aliás, o autor fala do momento em que desistiu da literatura para abraçar a medicina, como um momento de viragem, em que bateu na parede pelo lado das letras. A sua ânsia era compreender o ser humano, e vinha acreditando que lá poderia chegar pela literatura, mas entretanto percebeu que em vez de se aproximar se estava a distanciar cada vez mais da vida efetiva. Por isso decidiu enveredar por um caminho que lhe permitisse "tocar na carne", assistir à vida de modo empírico. Por sua vez, já no final, quando decide escrever este livro, é exatamente por sentir o contrário. Por sentir, que a única forma de chegar ao que sentia dentro de si era por via da escrita, não tinha outra forma de conseguir compreender o que sentia. Talvez por isso mesmo o livro seja tão intenso, porque ele é uma busca pessoal por respostas para uma vida, tentativa de explicação de um momento, ainda que possa depois ter ficado como legado.

Nada disto é novo, a literatura, tal como as restantes artes servem-nos há milénios na compreensão do humano. Se a ciência nos ajuda a compreender os processos e os como, só a arte nos consegue explicar os porquê. Damásio dizia em 2017: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"; e enquanto muitos se admiram com estas palavras, o belíssimo livro de Jonah Lehrer, "Proust era um Neurocientista", data já de 2007. Mas esta discussão não tem qualquer sentido de novidade, já que ela esteve presente desde o início da nossa civilização, com Platão a divergir de Aristóteles na importância que se deve conferir as artes.

Para fechar. Este foi um dos últimos 'memoirs' que li, um género que antigamente desconhecia por o associar à mera biografia, mas que aprendi a amar por via da banda desenhada. Existe algo de muito particular nestes livros, não apenas em fim de vida, mas no simples facto de se apresentarem em primeira pessoa, mais ainda quando as pessoas possuem as ferramentas adequadas para a escrita. As descrições, quando conseguidas, do pensar interior são autêntica telepatia, como disse o próprio Stephen King no seu memoir. E nesse sentido, julgo que estas obras acabam funcionando como o píncaro do objetivo e razão porque inventámos a linguagem e a escrita.

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