março 30, 2019

A Analfabeta

Quando acabei de ler "O Grande Caderno", primeiro livro de Agota Kristof [1935-2011], senti-me tão impactado pela diferença do que tinha acabado de ler que tinha de saber mais sobre quem tinha escrito tal. Quem era esta Agota que tinha nascido na Hungria, de onde tinha partido aos 21 anos, em 1956, com um bebé de 4 meses ao colo, para se refugiar na Suíça? Sentia que o seu livro falava tanto a partir de dentro, do seu mundo pessoal, que só o poderia compreender compreendendo-a a ela primeiro. Descobri então que tinha deixado um pequeno livro de memórias, "A Analfabeta" (2004), nunca traduzido para português, que acabei por adquirir na língua original, o francês, a língua que Agota adotou como sua, desde que se refugiou na Suíça.

"A Rapariga do Tatra" (1905) de Marianne Stokes

A escrita segue de muito perto aquilo que está nos seus romances (entretanto já li o segundo, "A Prova" de 1989). A sua vida e família não serviram de espelho aos livros, mas emprestaram toda a dor e sofrimento provocados pelo roubo da infância e de identidade. Agota fala em algo em que nunca tinha pensado a propósito da União Soviética. Se na Rússia as pessoas viveram sob o jugo do comunismo, esse comunismo era emanado da sua própria cultura. Os restantes países, como a Hungria, foram obrigados a adotar uma língua que lhes era completamente estranha, obrigados a deixar de ler os seus próprios escritores, a estudar a história e geografia da Rússia, a sua cultura foi apagada, ou como ela diz, "sabotada", substituída pela cultura de um país estrangeiro. É verdade que isto é o que acontece quando uns países invadem outros, como fez Napoleão, ou Roma, mas supostamente não era isso que a União Soviética dizia ser, era supostamente uma União de países, era a URSS.

A Revolução Húngara de 1956, 3 anos depois da morte de Estaline, foi um golpe falhado. Muitos, como Agota, aproveitariam para fugir, porque como ela diz, a Hungria só viria a ser livre 33 anos depois.

E no entanto, ao ler as palavras de Agota, dou por mim a pensar em Portugal em 2019, e nas salas de cinema espalhadas pelas dezenas de shoppings nacionais, e em 99% dos ecrãs em que passam apenas filmes em inglês, professando, doutrinando tal qual Estaline fez, os hábitos e comportamentos dos portugueses com os valores dos EUA. E ligo o rádio, onde quem canta continua a fazê-lo em inglês, para depois ligar a televisão e abrir o Netflix, e continuar a ouvir inglês, e a ser invadido por problemas culturais que não são os meus, mas é como se fossem. E quando falo com as pessoas próximas, e recomendo um filme europeu, dizem-me, "não, obrigado, não gosto de ver cinema que não seja falado em inglês"! Agota passou a sua infância com uma fotografia a cores de Estaline no bolso, e nós?

Tudo isto acaba por dar ainda mais força à minha interpretação dos gémeos, na alegoria do primeiro livro de Agota, como potenciais faces de uma mesma moeda, o Comunismo e o Capitalismo.

"L'Analphabete" tem apenas 56 páginas. Começa assim:
“Je lis. C’est comme une maladie. Je lis tout ce qui me tombe sous la main, sous les yeux: journaux, livres d’école, affiches, bouts de papier trouvés dans la rue, recettes de cuisine, livres d’enfant. Tout ce qui est imprimé.
J’ai quatre ans.”
e termina assim:
“Je sais que je n’écrirai jamais le français comme l’écrivent les écrivains français de naissance, mais je l’écrirai comme je le peux, du mieux que je le peux.
Cette langue, je ne l’ai pas choisie. Elle m’a été imposée par le sort, par le hasard, par les circonstances.
Écrire en français, j’y suis obligée. C’est un défi.
Le défi d’une analphabète.”

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