janeiro 08, 2022

A Filha Obscura (2006)

Ler a "A Filha Obscura" foi uma experiência extremamente estimulante, do ponto de vista do ganho de conhecimento sobre o mundo interior das crises da meia-idade, particularmente, para mim, por me mostrar o lado feminino dessa crise. Mas foi também imensamente estranha, porque senti que estava a ler partes desconhecidas de um universo que conhecia em detalhe, a Saga Napolitana, nomeadamente o último volume "História da Menina Perdida". Nem todos os contornos batem certo, mas começa nos nomes — Leda, Nina, Elena, Gino Vs. Elena, Lenu, Lila, Nino —, passa por Florença onde vive com o marido; num uma escritora, na outra professora universitária; mas essencialmente sonhadoras e fortes numa contínua luta interior com as pressões daquilo que querem ser e aquilo que a sociedade espera que sejam. Como diz Rachel Cusk, "Elena Ferrante escreveu a sua história duas vezes".


janeiro 04, 2022

História Íntima da Humanidade

Confesso que parti para este livro cheio de expectativas. O que procurava era a vida vivida por pessoas reais e comuns. Em termos históricos, estou um pouco cansado de ler sobre imperadores, reis, filósofos, artistas ou heróis de guerra. Queria saber mais sobre o modo como viveram as pessoas comuns ao longo do tempo, e como se têm alterado as vivências. Sei que isto não é um modo de historiar muito convencional porque naturalmente existe menos material sobre as pessoas comuns do que sobre os que a História decidiu imortalizar, mas é algo que se vai fazendo em obras como "A History of Private Life" (1987) assim como em muitos outro livros sobre a "everyday life". Contudo, não foi nada disso que encontrei em "História Íntima da Humanidade" (1994) de Theodore Zeldin.

janeiro 03, 2022

O conforto que suporta o Estoicismo

"A Enfermaria nº6" é um conto alargado, uma novela, de Chekhov que trata questões existenciais a partir  da exemplificação prática. Chekhov coloca em cena dois personagens que dialogam, filosofam segundo Sócrates, e depois conduz esses personagens a passar pela prática das doutrinas defendidas. A novela funciona como um ataque ao estoicismo e à sua tendência para ignorar a emoção em função da razão, defendendo a racionalização como único caminho possível na vida:

janeiro 01, 2022

"Hamnet" (2020) de Maggie O'Farrell

"Hamnet" (2020) dificilmente não se tornará num clássico. Escrito num modo que dificilmente conseguimos separar da trilogia Cromwell de Hillary Mantel, pelo uso distinto dos verbos presente, e também futuro do presente, que cosem a descrição com estranheza e, tal como em Cromwell, contribuem para criar a peculiar atmosfera do século XVI. Maggie O'Farrell usa, muito habilmente, este espaço atmosférico como espaço imaginário para alargar aquilo que conhecemos da História. Sabendo nós pouco, quase nada, sobre a vida privada de Shakespeare, O'Farrell consegue a proeza de nos transportar no tempo e dar a ver, num tom imensamente credível, como poderá ter sido essa. Se o título se foca sobre o filho perdido aos 11 anos, Hamnet, fazendo por vezes recordar a tensão mágica de Lincoln e o seu também defunto filho Willie, imaginado por George Saunders, o foco é na verdade a mulher, Agnes Hathaway. É este foco que revitaliza o nosso imaginário sobre Shakespeare, sendo-nos oferecido numa descrição feminina e poderosa, mágica mesmo, do seu mundo privado desconhecido. Shakespeare nunca é nomeado, mas o livro não é sobre ele, o artista, é sobre as relações de uma família, a sua.

dezembro 31, 2021

Quando Deixamos de Entender ou o Terrível Verdor

"When We Cease to Understand the World" (2020) começa como um normal livro de divulgação de ciência — química, física e matemática —, mas imensamente estimulante, apresentando muitos factos excêntricos e pouco conhecidos. À medida que se avança vamos sentindo que o descritivo do mundo científico se vai deixando contaminar pelo narrativo da ficção criada pelo autor como modo de intensificação daquilo que parece querer dizer-nos. Depois, no epílogo, somos brindados com uma pequena história que de tão realista, ainda que mantendo a excentricidade, se lê como metáfora de tudo o que foi apresentado antes, deixando-nos com uma forte ideia filosófica sobre o sentido da espécie. Labatut agradece no final a vários autores, de entre os quais W. G. Sebald, mas não seria preciso, esta é uma obra totalmente sebaldiana, pelo modo como fusiona ficção com não-ficção.

Edição da New York Review Books de 2021

dezembro 27, 2021

Porque nos Sentimos Inquietos (2021)

Adorei a discussão em redor das perspectivas sobre o contentamento humano de quatro grandes — Montaigne, Pascal, Rousseau e Tocqueville — apresentada em "Why We Are Restless: On the Modern Quest for Contentment" (2021) por Benjamin Storey e Jenna Silbur Storey. Ainda que sejam apresentados como promotores originais das ideias apresentadas e não o sejam. Desde logo porque a proposta de Montaigne, o "contentamento imanente" estava já presente em Epicuro via Lucrécio. Assim como Pascal não oferece nada que as religiões não tenham oferecido antes. Depois Rousseau dá conta da ineficácia da proposta de Montaigne a nível individual, e Tocqueville da ineficácia a nível de uma nação (EUA). Mas tudo isto faz parte de um ciclo que se repete — experiência vs. transcendência — podendo nós continuar opondo Tocqueville a Espinosa ou Nietzsche, para no final perceber que estamos ainda junto à discussão original e dualista que opôs Platão a Aristóteles.

A narração do audiobook é bastante apropriada às ideias discutidas no livro.

dezembro 25, 2021

Milkman (2018)

"Milkman" é brilhante, mas não se oferece a todos do mesmo modo. Facilmente podemos encontrar quem deteste, como acontece com o crítico do NYT, ou quem adore e lhe ofereça o Booker 2018. Na generalidade fala-se de um livro de difícil leitura, mas ser um livro que exige uma leitura mais lenta e atenta não tem nada que ver com ser difícil. Mais, comparando com outros fluxos de consciência, Joyce ou Woolf, é imensamente acessível, muito mais na linha de um bem-humorado Tristram Shandy. Mas se a escrita impressiona, é o ponto-de-vista interior, como se estivéssemos literalmente dentro da cabeça de uma adolescente de 18 anos que enfrenta um mundo feito de conflitos numa Irlanda nos anos 1970, que acaba a marcar-nos.

O Regresso de Júlia Mann a Paraty (2021)

Foi o primeiro livro que li de Teolinda Gersão e fiquei imensamente agradado pela competência da sua escrita. Elaborada, descritiva mas imaginativa. Quanto a este livro em concreto, não é um livro, mas um conto que foi expandido por via de duas cartas que o precedem e ajudam a introduzir e caracterizar o universo do conto. Quanto ao conto, é belo, apesar da sua tendência excessivamente descritiva, os laivos de realismo mágico elevam o historicismo biográfico a novela e criam uma experiência que termina com intensidade psicológica.

dezembro 24, 2021

Imperium de Robert Harris

“Imperium” (2006) é uma obra de ficção histórica com capacidade para nos envolver nas tramas da época, entretendo-nos enquanto vamos aprendendo sobre a época, neste caso o século I a.C. na Roma Antiga. Robert Harris escolheu como personagem principal Marco Túlio Cícero, o grande orador, mas principalmente o senador romano que mais escritos nos deixou e que perduraram até aos nossos dias. São esses escritos que permitem aos historiadores ter um acesso privilegiado a uma época já com 2000 anos, assim como aos romancistas aceder a matéria direta para o seu trabalho de recriação. Harris nada arrisca na forma, limita-se a descrever a ação, situando no espaço-tempo e gerindo conflitos conhecidos da história, criando suspense que nos faz virar páginas, que nos levam a descobrir os porquês, usando alguns comportamentos sociais como adereços, mas deixando praticamente de fora os mundos interiores de cada personagem.