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agosto 20, 2021

Apreciar a arte narrativa como "nadar num lago à chuva"

A Swim in a Pond in the Rain: in which four Russians give a master class on writing, reading, and life (2021) de George Saunders é um livro sobre a arte de contar histórias, em particular sobre arte do conto, em particular do conto russo. Não é um livro sobre "como escrever histórias", é um livro que discute a arte e ofício de quem escreve e os resultados do que se escreve. Saunders não apresenta um guião, nem uma estrutura para a desconstrução dos contos, antes apresenta os mesmos completos sobre os quais realiza, depois connosco, uma leitura próxima (close reading) de certas partes que podem focar-se: na forma, no estilo, no conteúdo, na relação com a vida dos autores, ou ainda em aspetos da tradução do russo. Ler e ouvir Saunders (o audiobook é narrado pelo próprio) falar sobre escrita e contos russos é um pouco como olhar para os olhos de uma criança quando se lhe coloca um prato cheio de doces na frente. A paixão transborda, oferecendo particular deleite a todos os comentários que vai fazendo a cada um dos contos ao longo da viagem proposta que nos oferece 7 contos (3 de Chekhov (In the Cart; The Darling; Gooseberries), 2 de Tolstói (Master and Man; Alyosha the Pot), um de Gogol (The Nose), e um de Turgenev (The Singers)).

agosto 08, 2021

Aprender a arte ou o ofício? (The Secrets of Story)

Matt Bird fez um mestrado em guionismo na Universidade de Columbia, pelo qual pagou 60 mil dólares, passado um ano, quando se apresentou num estúdio para fazer o seu primeiro trabalho de escrita, pediram-lhe para realizar uma tarefa e ele entrou em pânico. Nunca tinha ouvido falar de “introduções de personagens” em séries de televisão, não fazia ideia do que era suposto fazer. Passados alguns anos, escreveu o livro “The Story Secrets” (2016) para, segundo ele, explicar como se fazem essas introduções, e para dizer que o mestrado da Columbia não tinha passado de uma “ilusão”, um “acampamento de fantasia”, mesmo uma “fraude”. Antes de falar sobre o que é o livro de Bird quero falar sobre o que é um mestrado, já que o que aqui se discute faz parte dos grandes equívocos sobre o Ensino Superior.

"Os meus professores tinham-me dito que eu era um grande escritor, então porque é que isto era tão difícil? Porque não conseguia fazer isto? Porque não tinha estas competências? Mas o que realmente me marcou neste incidente foi a terrível constatação de que, apesar da minha educação de luxo e de todos os elogios que me tinham feito, não sabia realmente o que estava a fazer. De todo". Matt Bird

julho 25, 2021

Milan Kundera: A Arte do Romance

Milan Kundera diz a determinada altura, neste "The Art of the Novel" (1986), que em julho de 1985 tomou a decisão de não mais conferir entrevistas. Parece um preciosismo, uma excentricidade artística proveniente de um ego excessivamente inflamado. Mas ao ler esta obra percebemos duas coisas: Kundera é alguém muito cioso da forma das suas obras, com a música como berço soube usar todo o seu formalismo para criar uma literatura com formas por vezes quase matemáticas; por outro lado, olhando aos reparos que vai fazendo sobre a imprensa e traduções feitas do seu trabalho nos anos 1970, percebe-se que o cuidado era pouco, nomeadamente com um autor provindo de um país escondido atrás de uma "cortina de ferro". 

Versão audiobook apresentada numa belíssima narração de Graeme Malcolm

junho 20, 2021

Olhares com milhares de anos

Os Retratos Fayum são retratos realistas pintados sobre placas de madeira colocados sobre múmias do Egipto Romano, entre o I e o III séculos d.C., na região de Fayum, um oásis junto ao Nilo. Estes retratos formam uma coleção com de cerca de 1000 obras, fazendo desta a maior coleção sobrevivente do estilo e técnica. A técnica, segundo legados escritos, terá sido iniciada por volta do século IV a.C. na Grécia, contudo, devido à natureza perecível dos materiais não existem legados desse tempo. Esta coleção, como muita da arte egípcia, só chega até nós graças às altas temperaturas que resultam em baixa humidade naquela região, ao que se junta ainda o facto de ter sido enterrada e assim não acessível durante milénios.

Retratos de múmia Fayum, dos séculos I a III d.C (Imagens: 1, 2, 3)

maio 03, 2021

A Caverna dos Sonhos Esquecidos

"Cave of Forgotten Dreams" (2010) é um documentário de Werner Herzog sobre a Caverna Chauvet, no sul de França, que contém algumas das mais antigas imagens criadas por humanos (435), há cerca de 32.000 anos. O tom da voz de Herzog é bom e funciona bem na criação da experiência, já os seus comentários e as questões que coloca aos entrevistados deixam muito a desejar. Apesar disso, o documentário é poderosíssimo por nos dar a ver algo que está vedado ao público, mas mais do que isso, por nos aproximar imenso de algo que foi criado há milhares e milhares de gerações e se parece tanto com aquilo que continuamos a criar hoje. É quase espiritual...

abril 18, 2021

Escritores falando sobre si

Cheguei a "The Way of the Writer: Reflections on the Art and Craft of Storytelling" (2016) de Charles Johnson (1948) por via de várias resenhas que o identificavam como um dos livros mais interessantes sobre a produção criativa, nomeadamente por toda paixão e abordagem filosófica ao mundo da arte e da escrita. Contudo, pouco depois de iniciar a leitura surgiram as primeiras suspeitas de estar perante alguém que, apesar de ter feito algumas coisas relevantes na sua vida, longe de alcançar um reconhecimento internacional, demonstrava uma enorme falta de humildade. A meio do livro, não conseguia deixar de pensar noutro livro que segue exatamente a mesma fórmula — memórias-instrutivas-na-forma-de-romance-inspiracional —, escrito por um autor de fama mundial, com um volume de produção ímpar, ainda que nem tudo de qualidade inquestionável, mas oferecendo-se em toda a sua simplicidade, como se não tivesse publicado mais do que um livro que poucos leram, falo de "On Writing: A Memoir of the Craft" (2000) de Stephen King (1947). Isto diria quase tudo o que haveria para dizer sobre o livro, e em sua vez recomendaria a leitura duas ou três vezes do livro de King, mesmo que, como eu, não o considerem um dos vossos escritores preferidos. Mas, existe uma outra coisa que me incomodou tanto ou mais na leitura, e como tal não consigo deixar de o referir, assim como também existem um conjunto de notas muitíssimo interessantes.

fevereiro 22, 2021

A resposta é: 42

Foi publicado há dias, 19 fevereiro, um artigo na Science sobre a crise ambiental ocorrida há 42 mil anos, motivada pela inversão dos polos magnéticos da Terra que produziu alterações no campo de forças que protege o planeta da influência de raios cósmicos. A equipa australiana, liderada por Alan Cooper e Chris S. M. Turney, batizaram o evento como “Adams event”, como homenagem a Douglas Adams que escreveu "The Hitchhikers Guide to the Galaxy" no qual inscreveu o nº42 como fonte da vida. Mas o mais importante são os três grandes efeitos referenciados: o desaparecimento de megafauna; a extinção dos Neandertais; e por último, e que mais me interessou, o surgimento das pinturas nas cavernas.

Imagem retirada do vídeo produzido pela Universidade Nova South-Wales, Sydney (ver abaixo)

dezembro 31, 2020

Kudos para a trilogia de Cusk

O último livro da trilogia de Rachel Kusk, “Kudos” (2018), foi escrito depois da sua passagem por Portugal, onde esteve a convite do festival Literatura em Viagem 2017. Se o primeiro livro da trilogia “Outline” (2014) se passava na Grécia, e o segundo, “Transit” (2016), em Inglaterra, este terceiro passa-se em Portugal. Contudo, ao contrário desses dois, Kusk nunca revela que a ação se passa no nosso país. Percebemos que assim é, através de pequenos indícios como o pastel de nata, aqui tratado como tarte de creme de ovos, mas ainda mais pela profusão da presença temática da religião e futebol nas conversas, e claro pelo calor e mar. Mas o maior indício está no enredo construído à volta de uma visita da narradora a um festival literário no sul da Europa. 

Fotografia de Rachel Cusk em Lisboa, de Nuno Santos para o jornal Público, maio 2017

dezembro 27, 2020

Da inconsequência das nossas vidas

"A Vida Modo de Usar" (1978) de Georges Perec é um clássico muito pouco lido, não só pela dificuldade de suster a leitura ao longo das 500/600 páginas, dependendo da edição, mas também pela dificuldade de chegar ao seu propósito. Enquanto o lia, fui-me dividindo entre as qualificações de obra-prima e obra de artesanato. O domínio da arte de contar histórias é virtuoso, tal como é o domínio da escrita, contudo, todas essas competências parecem, em momentos, estar unicamente ao serviço do mecanismo criado por Perec. É preciso chegar ao final, bater com a cabeça na parede, questionar o que acabámos de ler, relacionar, e voltar a equacionar, para chegar a compreender o substrato escondido e reconhecer o génio do criador.

Considerações Breves

1 - Perec era um estruturalista convicto, tendo pertencido ao movimento OULIPO, criado por Raymond Queneau, a quem dedica esta obra. Este movimento precede o pós-modernismo, podendo confundir-se, mas distingue-se por seguir uma via concreta e distinta: a rigidez estrutural. Ou seja, os criadores não escrevem de forma livre, menos ainda caótica como os pós-modernistas, mas antes o fazem seguindo conjuntos de regras, ou como eles preferem dizer: “restrições de escrita”. Um exemplo máximo disto pode ser visto no livro “La Disparition” (1969), também de Perec, escrito integralmente sem nunca fazer uso da letra “E”.

Placa de Rua francesa, apesar de falsa, criada como homenagem a Georges Perec, em particular ao trabalho "La Disparition", demonstrando a ausência do uso do "E".

Esta abordagem baseia-se na ideia de que a criatividade brota das restrições, por isso se ditarmos constrangimentos ao que pode ser feito isso poderá conduzir o criador a ir além. De certa forma, liga-se ao ditado de que a criatividade nasce da necessidade. Contudo, a abordagem apresenta alguns problemas, como veremos à frente na análise do livro em questão.

2 – O plano estrutural usado para conceber “A Vida Modo de Usar” assenta num corte de perfil de um prédio, que nos permite olhar para todas as peças de habitação do mesmo. Perec esboçou assim um diagrama com 100 quadrados, 10 por 10, com cada quadrado a fornecer o constrangimento ao mundo que pode ser contado (ver imagem abaixo do plano do imóvel). Os quadrados, por sua vez, fornecem não só personagens, mas também elementos para a produção de histórias, que foram produzidas previamente em listas — de quadros, livros, mobiliário, animais, objetos, cores, etc. Os elementos em si, são depois emparelhados em duplas e distribuídos pelo prédio, seguindo uma lógica de grelha, do tipo puzzle de Sudoku. Para a passagem entre cada quadrado, Perec não segue a ordenação numérica, mas faz uso do chamado algoritmo do cavalo, do xadrez, que lhe permite saltar entre quadrados sem deixar rastos de aparente relação no discurso. Todas estas regras podem ser estudadas em pormenor, uma vez que Perec as forneceu, e nos dias de hoje podemos analisar as mesmas na net

Desta forma Perec tinha construído a verdadeira "máquina de fazer histórias", já que os espaços de habitação poderiam dar origem a tudo o que pudéssemos imaginar, e as regras fariam o resto funcionar por si.

3 – Apesar das dezenas de histórias contadas ao longo do livro, existe uma história central, que atravessa todo o livro, e se relaciona intimamente com o trabalho de Perec, e diz respeito à personagem de Bartlebooth, alguém tão rico que nada existia na vida capaz de lhe interessar, por isso encetou um projeto para se manter ocupado por toda a sua vida, este consistiria em: passar 10 anos a aprender a pintar a aguarela, de 1925 a 1935; depois passar 20 anos a viajar pelo mundo, pintando 500 aguarelas, que iria enviando para que fossem transformadas em puzzles, de 1935 a 1955; e por fim, passar os restantes 20 anos a reconstruir esses puzzles, após o que seriam reenviados para o local onde foram pintados, com uma lata de diluente, para que fossem destruídos, de 1955 a 1975.
Repare-se como o trabalho de Perec se vai aproximar do trabalho de Bartlebooth, a construção das telas e o seu recorte em puzzle, para que possam ser reconstruídas e esquecidas pelos leitores do seu livro.


Experiência de Leitura

A - Começar por dizer que se as histórias, individualmente, são interessantes e por vezes até bastante envolventes, na generalidade o processo de leitura de quase 600 páginas sem causalidade concreta entre as dezenas e dezenas de histórias, torna o processo bastante penoso. As regras criadas por Perec parecem só funcionar para si, enquanto criador e organizador dos espaços, já para o leitor, não ajudam nem servem qualquer propósito. 

Esta primeira constatação vem ao encontro de uma das minhas primeiras recusas da premissa de Perec, o puzzle de cartão, por o considerar vazio em termos de jogabilidade. Ou seja, o recorte das peças é irrelevante, já que todo o trabalho se centra na reconstrução mental da imagem em causa. Mas, Perec abre o livro defendendo que o puzzle que lhe importa é o de corte vitoriano, em que o criador do puzzle toma decisões sobre como e onde cortar as peças, ao contrário dos contemporâneos que são cortados por máquinas em peças iguais (ver imagem abaixo). Contudo, isso é mera ilusão, já que não decorre daí qualquer tipo de acrescento ao enigma visual. Repare-se que ou o recorte segue as formas concretas do desenho, e se revela muito facilmente (ver puzzle do mapa da Europa, abaixo), ou então segue modelos de recorte externos à representação (ver puzzle colorido e as formas dos recortes, abaixo) que acabam valendo o mesmo que fazendo uso do recorte automático. 

Efeitos do recorte: à esquerda, recorte mecânico; à direita, recorte manual

Puzzles de recorte vitoriano: à esquerda, um puzzle recortado seguindo com as formas dos países do mapa da Europa; à direita, um puzzle colorido e a imagem das suas peças constituintes, os recortes seguem formas externas às formas da representação final.

Da mesma forma, quando olhamos ao trabalho de Perec, na elaboração dos saltos entre histórias, que são as suas peças do puzzle, tanto faz que ele salte em L, como em Z, ou noutra forma qualquer, não se constrói qualquer causalidade daí, de modo que nada se ganha ou perde, é mero artifício vazio, tal como são os recortes de puzzle.

O algoritmo do cavalo, ou saltos em L. Imagem do filme de animação de Clarence Stiernet

Animação que mostra os saltos em L entre cada uma das peças de habitação do prédio de Perec

B – A relação entre Bartlebooth e Perec acontece na inconsequencialidade. Bartlebooth não tinha interesse por nada, concebeu todo um plano para apenas ter um propósito que o mantivesse vivo, de dia para dia, mas sem qualquer objetivo ou vontade de produzir qualquer resultado efetivo, antes pelo contrário, tudo o que resultasse deveria ser destruído. Perec, de certa forma segue a mesma ideia, criar todo um sistema altamente complexo de construção do romance que servisse apenas este em particular e mais nenhum, mas não objetivasse a nada mais do que a criação do próprio sistema.

Este ponto, é talvez o ponto alto do romance, já que nos lança na mais pura indagação filosófica, nos dois pontos que se sucedem:

B1. Deve um romance ter algo para dizer, ou deve constituir-se num mero enredo de eventos e personagens que nos ajudam a passar o tempo?

B2. Enquanto seres humanos e criativos que somos, devemos almejar a ter uma vida consequente? Devemos nos esforçar para deixar a nossa marca? Servir de exemplo e deixar um legado que sirva quem vem atrás? 

A edição portuguesa da Editorial Presença, de 1989, apresenta a belíssima tradução de Pedro Tamen


Conclusão

Olhando aos dois pontos, A e B, a resposta torna-se por demais evidente, apesar de eu só agora, após ter escrito estas linhas, ter visto essa evidência de forma cristalina. Assim, as histórias das nossas vidas não vivem da causalidade, porque não vivemos num mundo predeterminado, antes vivemos numa realidade regulada pelo acaso. Como tal, construir todo um conjunto de regras, com base num conjunto de crenças ou valores rígidos, para com isso chegar a produzir o nosso legado, seja para os nossos filhos ou para a humanidade, é totalmente inconsequente, para não dizer uma perda de tempo.

Georges Perec

Por isso, o título da obra, para a qual não se encontra explicação nas dezenas de histórias contadas, surge do resultado vazio da amálgama final. Perec, como todos aqueles que algum dia se dedicaram a criar algo, questiona aqui a razão essencial de todo o processo de criação humana.

De certa forma, o resultado deste texto liga-se ao que nos foi proposto pela Pixar, através do filme “Soul” (2020) de que aqui dei no dia de Natal. Contudo e paradoxalmente, aquilo que as duas obras fazem é ecoar pela Eternidade o pensamento de Epicuro.

dezembro 01, 2020

Gramáticas da Criação (2001)

É um livro denso, com muita argumentação e contra-argumentação que requer uma contextualização que não é muito clara por se limitar a dizer que o livro surgiu das suas Gifford Lectures de 1990. Mas as Gifford Lectures não são umas quaisquer lições académicas, são seminários sujeitos a uma temática concreta: a Teologia Natural. Aliás foi nestas que William James apresentou também o seu famoso livro "As Variedades da Experiência Religiosa" em 1902. Ora a Teologia Natural procura provar a existência de Deus por meio filosófico, sem recurso ao sobrenatural. Assim compreende-se que aquilo que está em questão, em toda a discussão apresentada, não são os processos criativos artístico e científico convocados por Steiner, mas explicitamente a criação da existência humana.

Todo o livro é uma deambulação pelas ciências da linguagem, das humanidades e artes indo até às ciências naturais e exatas, para dar conta daquilo que é, ou podem ser, os processos de: Descoberta, Invenção e Criação. Tenho de dizer que em muitos momentos fiquei ali imerso, seguindo o seu pensamento, tentando captar, apreender e aprender. Contudo, quanto mais avançava no livro, mais certo estava de que nada daquilo conduziria a lado algum. Steiner dedica-se apenas e só a aprofundar ideias, a escavar conceitos em todas as dimensões possíveis, apresentando teias de possibilidades, mas nunca se chega à frente para tomar um caminho, para decidir o que quer realmente de tudo aquilo. 

“The Latin invenire would appear to pre-suppose that which is to be “found,” to be “come upon.” As if, to invoke the question underlying this study, the universe had already been “there,” had been extant for the Deity to find, perhaps to stumble upon. Turned to haughty paradox, this invenire is implicit in Picasso’s: “I do not search, I only find.” The tenor of discovery attaches to the Latinate verb when it first enters the English language towards the close of the fifteenth century (invention is thus a late-comer). Yet very quickly, the overlap between “finding” and “producing” or “contriving” becomes evident. After the 1540s, invenire can pertain to the composition, to the production of a work of art or of literature.”

(...)

“The aura of “feigning,” of “fabrication”—itself a term in the highest degree ambiguous—of “contrivance,” modulating into falsehood, is audible after the early 1530s. As the term ripens into currency, both spheres are present: that of origination, production and first devising on the one hand, that of possible mendacity and fiction on the other. ”

(...)

“As I noted, something within the deep structures of our sensibility balks at the phrasing and concept: “God invented the universe.” We speak of a major artist as a “creator,” not as an “inventor.”

(...)

“I have already cited the taboo on the “making of images” in Judaism and Islam. To create such images is to “invent,” it is to “fictionalize” in the cause of a virtual reality, scenes, real presences beyond human perception or rivalry (“I know not ‘seeming,’” says Hamlet in his rage for truth). Time and again, we will meet up with the artist’s sense of himself as “counter-creator,” as competing with the primal fiat or “let there be” on ground at once exultant and blasphemous. Is the lack of humour, so marked in the Hebraic-Christian delineations of a revealed God, instinct with the seriousness of creation? Invention is often thoroughly humorous. It surprises. Whereas creation, in the sense of the Greek term which generates all philosophy, thaumazein, amazes, astonishes us as does thunder or the blaze of northern lights.”

(...)

The taboo, always only partial and often circumvented, on the representation of the human person attaches to a uniquely subtle aesthetic of the ornament, of the mathematical logic and beauty of the geometric. Persian and Arab calligraphy are more than suggestive of algebra (itself, of course, partly of Islamic origin). Centrally, the strain of iconoclasm in Islamic sensibility and architectural practice underlines the paradox latent in any serious aesthetics after the Mosaic prohibition on the making of images and after the Platonic critique of the mimetic. A malaise lies near the heart of re-presentation. Why “double” the natural substance and beauty of the given world? Why induce illusion in the place of truthful vision (Freud’s “reality principle”)? Non-figurative, abstract art is in no way a modern Western device. As ancillary to the reception of the figural prodigality of the natural world, it has long been crucial to Islam. In its formalized borrowings from the shape of plants, from the geometries of live water, the Islamic ornamental motif is simultaneously an aid to disciplined observation of the created and an act of thanks. To borrow a key phrase: the aesthetics of Islam are indeed a “grammar of assent.”

(...)

“There is explicit engagement with transcendence in an Aeschylus, a Dante, a Bach, or a Dostoevski. It is at work with unspecified force in a Rembrandt portrait or on the night of Bergotte’s death in Proust’s Recherche. The wing-beat of the unknown has been at the heart of poiesis. Can there, will there be major philosophy, literature, music, and art of an atheist provenance?”

Eu concordo com Steiner quando ele diz que os físicos não se podem recusar a discutir o que existiu antes do Big Bang, mas não chega dizer que o rei vai nu, menos ainda com isso mesmo limitar-se a levantar a véu do retorno da ideia de um Criador de tudo. Desde logo, porque não concordo com o seu remate de que criadores ateus dificilmente poderão criar obras tão ou mais transcendentes que as de Michelangelo ou Dostoiévski. A declaração de Nietzsche de que "Deus está Morto" é mera constatação do processo desvelado por Darwin, o que não tem de ser nenhum niilismo, menos ainda um "desperançoso" "zero negro" como Steiner parece querer constatar no fecho da sua lição. 

Por outro lado, toda a viagem por entre o virtuosismo referencial de múltiplas ciências e artes é vertiginosa e por isso não supreende a admiração que Steiner sempre manteve na academia. Esta obra é talvez um dos seus maiores legados, representativo da sua mestria e capacidade intelectual.


Nota: lido em inglês em audiobook, acompanhado pela versão portuguesa editada pela Relógio d'Água com tradução de Miguel Serras Pereira.

novembro 28, 2020

Porque nos atraem as distopias (“The Last of Us 2”)

Nos últimos anos temos sido servidos por distopias em tudo quanto é meio narrativo, da literatura ao cinema, passando pelos videojogos, a televisão e a banda desenhada, não existe espaço de criação cultural e de imaginário que não tenha exemplos férteis de cenários apocalípticos, do fim de tudo e de todos. Muito se tem falado sobre o seu caráter de antevisão, não faltando profecias sobre o tema, algo a que o fim do milénio não será também alheio, mas parece-me existir aqui algo distinto, algo de que me dei conta ao jogar “The Last of Us 2” (2020) de Neil Druckmann enquanto lia “Hiroshima” (1946) de John Hersey.

novembro 22, 2020

a mecânica da ficção

"A Mecânica da Ficção", ou "How Fiction Works" (2008) de James Wood, não é um livro sobre escrita, nem sobre os processos de criação ficcional, é antes um livro sobre elementos da escrita que despoletam mundos de ficção, pelo que devemos partir para a leitura percebendo que a ficção acontece na interação entre o texto e a imaginação de quem lê. Assim, o que Wood faz é uma discussão sobre aquilo que o leitor e crítico leem, veem e sentem quando tornam em ficção as palavras presentes numa folha de papel. Não é uma obra sobre os processo psicológicos de criação dessa ficção porque se cinge ao que está escrito, ao que vem no papel, não elaborando sobre os processos pelo meio dos quais, nós leitores, efabulamos a ficção. Dito isto, é um texto sobre estética, ou seja, a experiência da obra de arte, na sua assunção direta, na interpretação do que vemos, lemos e sentimos, sem procurar compreender o como, ou seja, a psicologia do autor, no modo como ele age e cria a escrita, e do leitor, no modo como ele infere e cria o imaginário. Funciona como boa introdução à análise literária, mas não deve ser visto como compêndio de técnicas de escrita nem de percepção narrativa.

Exposto o alerta, o texto de Wood é excelente para quem deseja compreender melhor a análise da ficção, nomeadamente da ficção criada por meio de texto. A sua leitura ajuda-nos a entender porque certas obras são consideradas melhores do que outras, além de nos ajudar a compreender a evolução histórica da arte literária, assim como o modo como se processa essa evolução. 

Deixo alguns excertos que considero excecionais e nos ajudam a ser melhor leitores. Apesar de ter lido a versão portuguesa da Quetzal, numa tradução do Rogério Casanova, os excertos provêm da edição digital brasileira da SESI-SP, com tradução de Denise Bottman.


Narração e estilo indireto livre

“A casa da ficção tem muitas janelas, mas só duas ou três portas. Posso contar uma história na primeira ou na terceira pessoa, e talvez na segunda pessoa do singular e na primeira do plural, mesmo sendo raríssimos os exemplos de casos que deram certo. E é só. Qualquer outra coisa não vai parecer muito uma narração, e pode estar mais perto da poesia ou do poema em prosa. (...) Na verdade, estamos presos à narração em primeira e terceira pessoa. A ideia comum é de que existe um contraste entre a narração confiável (a onisciência da terceira pessoa) e a narração não confiável (o narrador não confiável na primeira pessoa, que sabe menos de si do que o leitor acaba sabendo).” (cap. 1)

“Uma vez W. G. Sebald me disse: “Para mim, a literatura que não admite a incerteza do narrador é uma forma de impostura muito, muito difícil de tolerar. Acho meio inaceitável qualquer forma de escrita em que o narrador se estabelece como operário, diretor, juiz e testamenteiro. Não aguento ler esse tipo de livro”.”

“A chamada onisciência é quase impossível. Na mesma hora em que alguém conta uma história sobre um personagem, a narrativa parece querer se concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com ele, assumir seu modo de pensar e de falar. A onisciência de um romancista logo se torna algo como compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expressão que possui diversos apelidos entre os romancistas − “terceira pessoa íntima” ou “entrar no personagem”"

Graças ao estilo indireto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor. Habitamos, simultaneamente, a onisciência e a parcialidade. Abre-se uma lacuna entre autor e personagem, e a ponte entre eles − que é o próprio estilo indireto livre − fecha essa lacuna, ao mesmo tempo que chama atenção para a distância."

"Esta é apenas outra definição da ironia dramática: ver através dos olhos de um personagem enquanto somos incentivados a ver mais do que ele mesmo consegue ver (uma não confiabilidade idêntica à do narrador não confiável em primeira pessoa).”


Flaubert, a revolução da forma e do detalhe

“Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à primavera: tudo começa com ele. Realmente existe um antes e um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores e escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influência é tão grande que se faz quase invisível. Quando falamos de uma boa prosa, raramente comentamos que ela realça o detalhe expressivo e brilhante; que privilegia um alto grau de percepção visual; que mantém uma compostura não sentimental e que se abstém, qual bom criado, de comentários supérfluos; que é neutra ao julgar o bem e o mal; que procura a verdade, mesmo que seja sórdida; e que traz em si as marcas do autor, que, embora perceptíveis, paradoxalmente não se deixam ver. ” (cap. 29)

De início, não notamos o cuidado com que Flaubert escolhe os detalhes, porque ele se esforça em nos ocultar esse trabalho, e é zeloso em esconder a questão sobre quem está notando todas essas coisas: Flaubert ou Frédéric? Flaubert foi muito claro a respeito. Ele queria que o leitor ficasse diante do que chamava de parede lisa de prosa aparentemente impessoal, os detalhes apenas se acumulando, como na vida. “Um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte e visível em parte alguma”, disse numa frase famosa numa carta de 1852. “Como a arte é uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve operar com procedimentos semelhantes: que se sinta em cada átomo, em cada aspecto, uma impassibilidade oculta, infinita. O efeito no espectador deve ser uma espécie de assombro. Como surgiu tudo isso!” (cap .30)

Flaubert baseia esse novo estilo realista no uso do olhar − o olhar do autor e o olhar do personagem (...) Essa figura é, em essência, um substituto do autor, é seu explorador permeável, irremediavelmente transbordando de impressões (...) O surgimento do explorador permeável está intimamente ligado ao surgimento do urbanismo, ao fato de que imensas aglomerações de seres humanos lançam ao escritor − ou ao substituto designado para isso − quantidades imensas e atordoantes de detalhes variados. Jane Austen é, basicamente, uma romancista rural” (cap. 33)

Se podemos narrar a história do romance como o desenvolvimento do estilo indireto livre, também podemos narrá-la como o surgimento do detalhe. É até difícil dizer por quanto tempo a narrativa de ficção foi escrava dos ideais neoclássicos, que preferiam a fórmula e a imitação ao individual e à originalidade.” (cap. 49)

Podemos ler Dom Quixote, Tom Jones ou os romances de Austen e encontrar pouquíssimos daqueles detalhes recomendados por Flaubert. Austen não nos dá nada dos aparatos visuais que encontramos em Balzac ou Joyce e quase nunca se detém em descrever sequer o rosto de um personagem. Roupa, clima, interior, tudo está comprimido e afinado com elegância. Os personagens secundários em Cervantes, Fielding e Austen são teatrais, muitas vezes estereotipados, e passam quase desapercebidos no sentido visual.” (cap. 50)

“Como ocorre tantas vezes, a herança flaubertiana é uma bênção ambígua. Surgem de novo aquele estranho peso da “seletividade” que sentimos nos detalhes de Flaubert e a consequência dessa seletividade para os personagens do romancista − nossa sensação de que a escolha do detalhe se tornou o tormento obsessivo de um poeta, e não a leve alegria de um romancista.” (cap. 50)

“Assim, durante o século XIX, o romance se tornou mais pictórico.” (cap. 51)

“Não podemos escrever sobre ritmo sem falar de Flaubert, e assim, mais uma vez, como alguém que vive relendo as velhas cartas de um antigo amor, volto a ele. Claro que, antes de Flaubert, outros autores se mortificaram com o estilo. Mas nenhum romancista se preocupou tanto ou tão publicamente, nenhum romancista fez da poética “da frase” um fetiche no mesmo grau que ele, nenhum romancista levou a tais extremos a potencial separação entre forma e conteúdo (Flaubert sonhava em escrever, como dizia, um “livro sobre nada”). E, antes dele, nenhum romancista se compenetrou tanto em refletir sobre questões técnicas. Com Flaubert, a literatura se tornou “essencialmente problemática”, como definiu um estudioso. Ou apenas moderna?” (cap. 103)

“E o que Flaubert entendia por estilo, por musicalidade de uma frase? Esta é de Madame Bovary − Charles se sente estupidamente orgulhoso por ter engravidado Emma: “L’idée d’avoir engendré le délectait”. Tão compacta, tão precisa, tão rítmica. A tradução literal é: “A ideia de ter engendrado deliciava-o”. Geoffrey Wall, em sua tradução para a Penguin, escreve assim: “The thought of having impregnated her was delectable to him” [O pensamento de tê-la engravidado lhe era deleitável]. Isso é bom, mas coitado do pobre tradutor. Pois o inglês é um primo pobre do francês.” (cap. 103)


Metáfora

“A metáfora é análoga à ficção porque sugere uma realidade rival. É o processo imaginativo inteiro numa única ação. (...) “Estou lhes pedindo que imaginem outra dimensão, que concebam uma semelhança. Toda metáfora ou símile é uma pequena explosão de ficção dentro da ficção maior do conto ou do romance. (...) E é claro que essa explosão da ficção-dentro-da-ficção não é exclusivamente visual, assim como nenhum detalhe na literatura é exclusivamente visual.” (cap. 107)

“O tipo de metáfora que mais me agrada, porém, como as citadas sobre o fogo, é aquela que cria um estranhamento e logo em seguida faz uma conexão, e, ao fazer tão bem esta última, oculta o primeiro. O resultado é um pequeno choque de surpresa, seguido por uma sensação de inevitabilidade. Em Rumo ao farol, a sra. Ramsay dá boa-noite aos filhos e fecha cuidadosamente a porta do quarto, deixando "a língua da porta se estender devagar na fechadura”. A metáfora nessa frase não consiste tanto na “língua”, que é bastante convencional (pois as pessoas falam nas linguetas das fechaduras), mas está secretamente enterrada no verbo “estender”. Esse verbo estende o procedimento inteiro: não é a melhor descrição que vocês já leram de alguém virando muito devagar a maçaneta da porta para não acordar as crianças? ” (cap. 108)


Se comecei este texto por dizer que o livro tratava a análise literária e não a escrita, foi porque muito daquilo que aqui se descreve não está presente, pelo menos de forma consciente, na mente de quem escreve. O processo criativo, seja na escrita, pintura ou outra arte qualquer não se compadece de formulas nem guiões, a não ser quando se trabalha por encomenda. O modo como escolhemos as palavras, ou a palete de cores, em cada momento é determinado pelo imenso turbilhão de desejos e tensões que ocupam o nosso não-consciente na interação com o consciente. O criador, cria algo novo, porque se deixa levar pelo processo, e não porque se senta dizendo: "hoje vou criar uma metáfora capaz de..." ou "vou colocar o narrador depois do autor e antes do personagem". Se assim fosse, nada fluiria, apenas estruturas e mapas emergiriam em resposta à vontade predeterminada de criar. Isto é algo que se sente muito ao longo da leitura do texto, em que por vezes parece que Wood faz o criador ter a intenção de, quando na verdade, o criador é levado pelo próprio processo criativo. Nós, na análise é que podemos depois depurar o quê e o como, mas isto não serve a quem cria, apenas a quem analisa.

Isto é tanto mais evidente em dois capitulos que considerei mais fracos, "Personagens" e "Diálogo", porque Wood se deixa levar inteiramente pela subjectividade da sua experiência sem perceber que aquilo que interpretamos num texto, não é igual para todos. Ou seja, se o criador segue um processo interno próprio, o leitor não deixa também de o seguir. A imagimação criada na minha mente, a partir de uma frase lida num livro, não depende tanto daquilo que Wood aqui desconstrói, mas bem mais do meu processo de inferência, um processo completamente dependente da minha história experiencial enquanto dono de uma consciência humana. Por isso, ser um leitor europeu ou americano (mais nova-iorquino), com formação superior, vivendo no século XXI, com a leitura do cânone ocidental clássico realizada, permite-nos chegar muito mais próximo da Ficção imaginada por Wood do que falhando qualquer um destes elementos definidores do leitor.

Uma nota final sobre Flaubert. Agradeço a Wood todo esta desconstrução literária e análise histórica do impacto do trabalho de Flaubert, sem o que eu teria tido dificuldade em compreender o porquê de tantos grandes nomes da literatura se curvarem perante o mesmo. Compreendi e passei a respeitar muito mais Flaubert e a sua obra, ainda que julgue que tal não altere, em profundidade, ambas as interpretações que fiz dos dois livros seus que li"Madame Bovary" (1857) e "Educação Sentimental" (1869). Em ambos, foquei-me quase exclusivamente no conteúdo, a história, por me faltar este enquadramento histórico-literário apresentado por Wood. Mas como fiquei a saber por Wood, Flaubert era um formalista, à semelhança de Hitchcock, ambos sempre desprezaram o que se contava, interessava-lhes apenas a forma como se contava.

Wood termina com um capítulo intitulado "Verdade, convenção, realismo", no qual se dedica ao mais velho problema da arte — ilusão ou realidade; verdade ou viés. É uma questão cíclica, e ainda que sempre instigante, mas na verdade apenas relevante quando se analisa a estética desprendida da psicologia.

agosto 27, 2020

Vamos morrer sem os poder ler

A artista escocesa, Katie Paterson, criou, em 2014, o projeto Future Library com o apoio da cidade de Oslo, Noruega. Um projeto criado enquanto obra de arte pública e que consiste numa ideia revolucionária e altamente instigadora que vai decorrer ao longo dos próximos 100 anos, entre 2014 e 2114. A obra pretende colecionar trabalhos originais, nunca publicados, de escritores internacionais, um por ano, e preservá-los fechados até 2114. Para o efeito foi plantada uma floresta com mil árvores que serão usadas daqui a 100 anos para imprimir todos os 100 livros, e todos os anos é escolhido um autor de renome para escrever um novo livro para a biblioteca.

Os autores são selecionados pela artista, a quem é dado um ano para criar o texto, que pode ter o tamanho que quiserem, e entregá-la à biblioteca. Assim em 2014 Margaret Atwood iniciou o processo, tendo entregue o seu livro em 2015. A antologia completa começou já a ser vendida, para já num lote reduzido de mil certificados, no valor de cerca de 1000 euros. 

2014 – Margaret Atwood, Scribbler Moon

2015 – David Mitchell, From Me Flows What You Call Time

2016 – Sjón, As My Brow Brushes On The Tunics...

2017 – Elif Shafak, The Last Taboo

2018 – Han Kang, Dear Son, My Beloved

2019 – Karl Ove Knausgård, ainda não entregue devido ao COVID_19

2020 - Ocean Vuong, selecionado este ano

Deixo uma breve perspectiva sobre a ideia para o projeto que nos pode fazer refletir sobre tantas e tantas ideias: sobre os livros; as árvores que vão ser usadas; nós que não estaremos cá e que nunca os poderemos ler; e aqueles que lerão aquilo que nunca ninguém pôde antes ler...

“It is less egotistical than regular publishing too. So much of publishing is about seeing your name in the world, but this is the opposite, putting the future ghost of you forward. You and I will have to die in order for us to get these texts. That is a heady thing to write towards, so I will sit with it a while.”

“If you look at any literary epoch, who gets carried forward in time is a mystery, still. Melville sold about 1,000 copies of Moby-Dick and now he is the totem of American fiction. This is an antidote, to say regardless what happens in market trends, we have a record of what humans have found valuable, the voices we were interested in, for better or worse." Ocean Vuong, entrevista ao Guardian, 19.8.2020 

Deixo um vídeo, de 2014, no qual a artista explica mais promenorizadamente o que pretende com a sua obra: 

dezembro 23, 2019

O tio e a génese da arte de Regina Pessoa

Regina Pessoa fez apenas 4 filmes em 20 anos — “A Noite”, 1999; “História Trágica com Final Feliz”, 2005; “Kali, o Pequeno Vampiro”, 2012 e “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”, 2019 — mas foram suficientes para criar uma identidade autoral no cinema de animação internacional. Poucos segundos de visionamento de qualquer um destes quatro filmes atira-nos imediatamente para o universo cultural e estético de Regina Pessoa. Muitos passam toda uma vida à procura dessa identidade sem nunca a encontrar enquanto a Regina o parece ter conseguido logo no seu primeiro filme. Sendo algo impressionante, o questionamento sobre o seu processo criativo tem sido uma constante e a Regina não se tem furtado ao mesmo. Contudo, como acontece com os grandes criadores, a melhor forma de responder surge quase sempre pela mão da sua preferência expressiva, ou seja, do meio expressivo de eleição, e é isso que acaba tornando este seu último filme “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” tão relevante, e talvez o mais importante de todos.
O principal marcador da identidade de Regina Pessoa reside na sua técnica de animação. Criada inicialmente a partir da gravura em placas de gesso, oferece-lhe um movimento texturado (traços de linhas que preenchem as formas e se movimentam) muito singular. Colado a esse movimento visual surge depois a particularidade do seu design de personagens que recorre a uma fusão entre o geométrico e o orgânico da texturização que lhe garantem uma particular estranheza, algo que se tem acentuado com o evoluir do seu design de personagens. Por fim, e ainda no campo visual, temos o domínio da luz que é utilizada para acentuar as texturas mas especialmente para a produção de sombras e sua elevação a elementos centrais do cenário. Todo este enquadramento visual vai além da mera identidade visual, serve uma função comunicativa que é denotada pela particularidade das histórias contadas, mas essencialmente pelos motivos narrativos escolhidos e pelo tom dos mesmos. Ou seja, o universo ficcional dos filmes da Regina Pessoa circula à volta de personagens destacados da normalidade, não porque o desejam, mas porque a isso são votados pela sociedade, funcionando as suas histórias como modos de verbalização do interior desses personagens. Por isso a componente visual acaba sendo tão relevante, já que é ela a principal responsável por dar conta do tom do sentir dos seus personagens. No fundo, estamos a falar de uma abordagem profundamente expressionista, que se destacou no cinema alemão dos anos 30 (séc. XX) e que nos diz que o cinema da Regina é um cinema profundamente sensorial.
Personagens dos 4 filmes de Regina Pessoa, da esquerda para a direita: “A Noite”; “História Trágica com Final Feliz”; “Kali, o Pequeno Vampiro”; “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”

Neste sentido, podemos dizer que o seu último filme, “Uncle Thomas, Accounting for the Days”, aprimora toda a sua linguagem, todos os elementos se elevam tecnicamente, acabando por abrir novas direções, mas sem perder as raízes e funções estéticas da sua identidade. Por outro lado, o tema escolhido, que para mim vai muito além do tio especial porque dá conta da génese do próprio processo criativo, acaba por exponenciar ainda mais toda a componente afetiva da obra. Quando surgem os últimos quadros e reconhecemos o cabelo da autora nos traços da sombra animada, é impossível não sentir um toque, quase um arrepio, pela profunda conexão estabelecida com a autora. Diga-se que por Regina fazer um cinema muito expressivo pode para uma boa parte dos espetadores não ocorrer uma relação imediata, nomeadamente se se detiverem na busca de lógicas explicativas dos personagens ou se estiverem à espera de twists narrativos muito conclusivos. Se não conhecerem a obra da Regina e sentirem essa distância, aconselho um segundo e um terceiro visionamentos para poderem entrar dentro do universo e começarem a sentir o pulsar do texto animado.
O filme foi entretanto disponibilizado na rede, pela NFB (ver abaixo), para poder ser visto por todos, enquanto aguardamos que se confirme a nomeação do filme para o Óscar de Melhor Curta de Animação 2019. É a segunda vez que a Regina está na shortlist (seleção de 10 filmes), a primeira foi com "História Trágica com Final Feliz”, esperemos que desta vez a Academia saiba reconhecer o seu trabalho. Não que seja necessário, os seus filmes foram todos amplamente premiados nos mais importantes festivais internacionais da arte de animação, mas não deixa de ser merecido.



Algumas referências 
O Expressionismo Animado na Obra de Regina Pessoa. (2013). Eliane Muniz Gordeeff
Uncle Thomas: Accounting For the Days by Regina Pessoa. (2019). by Olga Bobrowska
Regina Pessoa and Autobiographical Animation (2019). Marie Mello

dezembro 07, 2019

A criatividade fruto das ciências e humanidades

Edward O. Wilson é um célebre biólogo americano com uma extensíssima carreira. Académico em Harvarde de 1956 a 1996, continua ainda hoje a desenvolver trabalho, estudos e a escrever livros, depois de ter feito 90 anos em junho deste ano. Apesar da sua área ser as ciências naturais, Wilson é reconhecido pela sua enorme multidisciplinaridade, tendo defendido métodos para aproximar e conduzir à convergência, as ciências e humanidades, no seu livro “Consilience: The Unity of Knowledge” (1998). Este “The Origins of Creativity” (2017) é apenas um dos 16 livros que Wilson escreveu já neste século, depois de se ter reformado de Harvard.
Contextualizado o autor, perceber-se-á melhor a razão do interesse deste livro e simultaneamente a decepção. “The Origins of Creativity” não é, nem de perto, um livro sobre criatividade. É mais a soma de um conjunto de textos soltos, arrolados por interesses próximos e publicados no formato de livro. Deste modo, ao longo do livro encontramos ideias de grande relevância e impacto, contudo por não existir um trabalho cuidado de edição das ideias, estas acabam por nunca ser devidamente aprofundadas, e nalguns casos, algumas das questões levantadas nunca chegam sequer a ser respondidas. Por outro lado, o livro apresenta uma linguagem bastante acessível e Wilson é inexcedível em fornecer exemplos das mais variadas áreas, demonstrando a sua enorme erudição.

O foco do livro está todo na evolução do Homo Sapiens, dirigido à questão que já tinha tentado responder em "Consilience": como é que podemos juntar as ciências e humanidades? Para Wilson é evidente que não existe criatividade sem ambos os lados, contudo os perfis mais criativos tendem a conviver melhor com a mescla e fusão de ambos os lados, o que não acontece quando se está demasiado colado a um dos perfis apenas. Wilson diz ter uma proposta para juntar esses lados ou perfis, mas nunca chega a concretizá-la. Existem partes no livro em que parece aproximar-se da proposta de Denis Dutton, de juntar as neurociências e psicologias cognitiva e social nos seus contornos evolucionistas ao interpretativismo das humanidades, algo com que concordo plenamente. Noutras partes, questiona a “obsessão” das humanidades pelo humano (!) frisando que estas deveriam ir além, tal como usar as tecnologias para ver o mundo a partir de outras perspetivas, como por exemplo as capacidades sensoriais de outras espécies (ex. navegação sonora dos morcegos). Wilson chega mesmo a evocar a Realidade Virtual para ajudar nesta senda, mas depois não concretiza, e a proposta é, para quem trabalha no domínio da RV, fruto de mero deslumbramento tecnológico. No último capítulo, “O Terceiro Iluminismo”, Wilson volta a perder-se, lançando supostas grandes questões filosóficas da união entre a ciência e humanidade, que não vão além das mesmas já colocadas por todos aqueles que antes ousaram questionar-se a si mesmos.

No meio de todos estes problemas, surge a superficialidade por meio muitos buracos e pontas soltas, existem contudo vários traços da genialidade de Wilson que aproveito para aqui registar e divulgar. Deixo os excertos em inglês, porque não tenho a versão digital do livro português:

A narração como instantâneo (p.50)
“Postmodern narrations and for that matter all fiction worth its mettle, does what science cannot: it provides an exact snapshot of a segment of culture in a particular place and time. The productions are like photographs that preserve for all time not just the people as they actually seemed, looked, or even truly were, including their dress and posture and facial expressions, but also the surroundings most important to them—their homes, their pets, their transportation, their trails and streets."
(..)
“Fine novels and antique photographs are pixels of history. Put together, they create an image of existence as people actually lived it, day by day, hour by hour, and in the case of literature, the emotions they felt. Finally, they trace some of the seemingly endless consequences that followed. ”

O poder da ciência e a míngua nas humanidades (p.81)
“Our most celebrated heroes are not poets or scientists; few Americans can name even a dozen of either living among us. Our heroes instead are billionaires, start-up innovators, nationally ranked entertainers, and champion athletes.”
 (..)
“Science and technology have been supported massively by taxes from the American people for what is generally considered the public good. (..) The humanities, in contrast, are supported primarily by educational institutions (..) In the competition between science and the humanities for funds provided by the American people, the humanities rank consistently lower than science.”
(..)
“Americans are often reminded that research and development in basic science are good for the nation. That is obviously true. But it is equally true for the humanities, all across their domain from philosophy and jurisprudence to literature and history. They preserve our values. They turn us into patriots and not just cooperating citizens. They make clear why we abide by law built upon moral precepts and do not depend on inspired leadership by autocratic rulers. They remind us that in ancient times science itself was a dependent child of the humanities. It was called “natural philosophy.”
Why then are the humanities kept on starvation rations?
Partly because so much of our available resources are appropriated by organized religions.”

A importância das humanidades (p.177)
“The critic Helen Vendler broadens the key question as well as can be phrased: «If there did not exist, floating over us, all the symbolic representations that art and music, religion, philosophy, and history, have invented, and afterward all the interpretations and explanations of them that scholarly activity have passed on, what sort of people would we be?»
Neither the question nor the answer is rhetorical. ”

novembro 26, 2019

Mona Lisa como há 500 anos

Pascal Cotte criou em 1989 uma empresa especializada em análise fotográfica por meio de luz multiespectral e ao longo dos anos especializou-se na análise de pinturas tendo trabalhado especialmente a obra de Da Vinci. Foi o responsável pelas descobertas de desenhos de um outro modelo por debaixo da Mona Lisa ou da ausência do Arminho na primeira versão da "Dama com Arminho". Na sua descoberta mais recente, Cotte vai mais longe, recorrendo não apenas à luz, mas a todo um trabalho de reconstituição dos pigmentos existentes na época de Leonardo, para nos dar a ver o quadro que Leonardo viu antes de morrer. O resultado pode ser visto aqui, e o processo no excerto de vídeo abaixo.
À esquerda: o original presente no Louvre. Ao centro: o original com a luz retocada em Photoshop: À direita, a nova versão, que segundo Cotte se aproxima da criada por Da Vinci há 500 anos.
Esta proposta de Cotte faz sentido, não apenas pela justificação histórica que é suportada por um dos maiores especialistas em Da Vinci, Martin Kemp que diz no vídeo isto: "Suddenly she doesn’t look like a submarine goddess. She looks as if she’s in the fresh air, which is just terrific". Mas esta visão é também suportada pela recente descoberta no Museu do Prado de uma cópia de Mona Lisa feita no atelier de Da Vinci, e enquanto este era ainda vivo.
À esquerda, a cópia que existia no Prado até 2012. À direita, a mesma cópia restaurada em 2012, tendo sido retirada toda a tinta preta que cobria o fundo, que nos permite ver a aproximação à proposta de Cotte.

O vídeo do trabalho realizado por Cotte, para chegar à proposta final, é um excerto do documentário —"Decoding Da Vinci" (2019)— de uma hora da PBS que não está acessível na Europa ainda e que fica aqui abaixo.

novembro 09, 2019

Tatuagem e auto-estima

A tatuagem é hoje algo bastante comum, não só pelo aumento do número de artistas e criadores que tornaram o acesso à prática mais fácil, mas também porque a própria sociedade passou a aceitar melhor a tatuagem. Aquilo que antes era um estereótipo de decadência hoje é uma marca de individualidade e status social. Contudo os trabalhos de tatuagem que agora aqui partilho — de cobertura de cicatrizes — vão muito além da afirmação do indivíduo, elas podem ser vistas como verdadeiros transformadores identitários.
Alguém que sofreu na pele, ou nasceu, com uma alteração que transfigura a sua imagem, por muito que trabalhe a auto-estima, aprenda a desvalorizar a aparência, tem sempre, ao longo da vida, de passar por momentos nos quais é posta a prova. Para alguns com mais, para outros com menos intensidade, praticamente todos acabam sofrendo na "pele" a depreciação do seu corpo, o que produz forte impacto na auto-estima.
Esta "nova" abordagem à tatuagem, como forma de transformação visual de cicatrizes, é no fundo  uma forma de ressignificação efetiva das formas deterioradas da pele. Não se trata de mero embelezar, ou tornar "artístico" um "defeito", mas é antes um processo de alteração da essência simbólica de algo que antes era simplesmente negativo, pelo simples facto de mostrar uma deterioração, em algo positivo pelo que oferece de novo à interpretação. Existem casos em que praticamente se esconde, mas noutros as cicatrizes ganham novas leituras, podendo quase dizer-se que oferecem a essas pessoas segundas oportunidades.






novembro 07, 2019

Processos cognitivos por detrás da Montagem

A montagem é o elemento definidor da arte cinematográfica, aquele que singulariza a sua estética, a sua capacidade de produzir mensagem de forma única. Neste sentido, tem sido uma área bastante estudada, diga-se que mais fora da academia do que nesta, exatamente pela dificuldade que temos tido em parametrizar algo que é profundamente artístico, ou seja, dependente de opções pessoais expressivas e não de métricas facilmente quantificáveis. Este trabalho da Karen Pearlman, uma académica com experiência profissional no cinema, pretende contribuir para o preenchimento dessa lacuna, adicionando novo conhecimento ao conjunto de convenções que respondem pelas necessidades fundamentais da edição, indo além da mera continuidade espaço-tempo.


O trabalho mais citado no campo da montagem continua a ser o livro de Walter Murch — "In the Blink of an Eye" (1995) — um montador reconhecido, especialmente pelo trabalho em “Apocalypse Now” (1979) com uma visão completamente assente no artesanato da arte, sem qualquer arcaboiço metodológico que pudesse suportar um maior aprofundamento do conhecimento da arte. Depois temos outros autores como Ken Dancyger ou Valerie Orpen, e até mesmo Bordwell, mas nenhum conseguiu ir tão longe como o trabalho que Pearlman nos apresenta e que pode ser conhecido de forma muito rápida através deste pequeno vídeo:  "Why Does an Edit Feel Right? (According to Science)" (2019).

Why Does an Edit Feel Right? (According to Science), 2019

Neste vídeo Pearlman socorre-se do trabalho de Vittorio Gallese — sobre os neurónios espelho [1] — e Tim J. Smith — estudos de eye-tracking em cinema [2] — para desmontar o que acontece durante o processo de visionamento de um filme e, assim, chegar aos modos como a montagem contribui para a construção de engajamento. Pearlman dá conta dos processos de simulação corpórea [3] realizados por nós, dizendo que o “film’s rhythm synchronizes the body, influencing the spectator’s physical and cognitive fluctuations to follow its own” [4], algo que vai muito para além da questão da continuidade. No exemplo apresentado de Blade Runner, com Harrison Ford e a coruja, temos um corte que só faz sentido por via do movimento corporal, pois é antitético no que toca a continuidade. A partir da desconstrução dessa sequência, Pearlman apresenta então o conjunto de hipóteses resultantes da expressividade da montagem:
#1 Movement Phrase
#2 Kinesthetic empathy
#3 Subtext
Para quem tiver ficado interessado no assunto e quiser aprofundar mais, sem ir diretamente ao seu livro “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing” (2016), recomendo a leitura do artigo de Pearlman de 2017, "Editing and Cognition Beyond Continuity" publicado na Projections.


Referências
[1] “Embodying Movies: Embodied Simulation and Film Studies” Gallese, 2012
[2] “The Attentional Theory of Cinematic Continuity”, Tim J. Smith, 2012
[3] "Hipótese da Simulação Corpórea", VI, 2014
[4] “Cutting Rhythms: Intuitive Film Editing”,  Karen Pearlman, 2016

outubro 31, 2019

Autoajuda para artistas?

"The Artist's Way: A Spiritual Path To Higher Creativity" (1992) é um livro muito problemático porque contém ideias muito interessantes misturadas com ideias muito censuráveis. Claramente que apelando ao nosso sentido crítico qualquer um pode extrair a parte boa e negligenciar a má, contudo é preciso ter algum arcaboiço de experiência de vida para compreender os problemas do que vai sendo apresentado, o que não acontecerá com alguém até aos vinte e poucos anos. Isto torna-se ainda mais problemático quando o livro serve exatamente melhor alguém em crescimento, alguém em busca do seu caminho, com necessidade de alguém que lhe fale daquilo que sente e que lhe diga que não está sozinho. Em parte, quase me atreveria a dizer que para quem está na bifurcação das escolhas de futuro profissional, o livro pode ser todo ele bastante interessante, mesmo o lado mau, já que ele funciona como um garante extra de motivação para essa escolha. Contudo, considero que deixar-se seduzir por este tipo de discurso, apesar de poder ajudar nessa fase, pode vir a trazer bastantes dissabores, mais à frente, quando se perceber que a realidade é distinta daquela aqui apresentada.


Vou elencar alguns dos elementos imensamente positivos e relevantes para quem pretende seguir uma carreira artística, seguido dos vários problemas enunciados ao longo do discurso:

Lado Positivo e Criativo

  • Proposta de escrita de "morning pages" (todos os dias de manhã escrever 3 páginas do que nos vier à cabeça, para alguns isto já acontece com o Diário, para outros com um blog...)
  • Proposta de escrever a partir do nosso passado, a partir de sonhos não realizados, de gostos e preferências de criança, de objetos espaços e locais que falam ao nosso Eu.
  • Proposta de escrever sobre vidas imaginárias que gostaríamos de ter vivido.
  • Todo o modo como trabalha os bloqueios criativos, especialmente os medos e a baixa autoestima para garantir a criação de espaços e tempos criativos, tal como parar de nos recriminar, de nos culpar, queixar ou questionar a capacidade de fazer.

Lado Problemático

Para além de ser um livro de autoajuda, vem ainda disfarçado de livro de terapia, o que acentua o problema destes livros que se baseiam exclusivamente na experiência pessoal dos autores, suportados em mero anedotário, não corroborados por quaisquer estudos. Funcionará muito bem para pessoas que se enquadrem no tipo de personalidade e experiência de vida da autora, mas dirá muito pouco a uma grande parte de leitores. Alguns dos exemplos problemáticos que esta abordagem nos dá:

  • Uma visão demasiado assente em princípios teológicos, disfarçados pelos conceitos do movimento New Age.
  • Uma visão demasiado egocêntrica, por vezes quase a roçar o Objetivismo de Ayn Rand 
  • Demasiada ingenuidade (ou de sobranceria) quanto às definições da Arte, agravando-se na definição do Artista.

Se querem um livro sobre como desenvolverem-se como artistas, não posso deixar de recomendar vivamente o livro de Stephen King “On Writing: A Memoir of the Craft” (2000), ainda que baseado na experiência do autor, resulta de um método aplicado durante décadas e com largos frutos, não havendo lugar a justificações transcendentes. O que é feito neste livro é a tradução em texto de um processo criativo, o que permite a qualquer pessoa aprender pela imitação, sem espaço para qualquer autopiedade.

Por outro lado, e agora falando em concreto das pessoas, porque isso é também relevante, já que a autora faz questão de trazer a sua vida pessoal para o centro da cena, a verdade é que pesquisando a vida e obra de Julia Cameron, não existe aquilo que à partida pareceria existir, ou seja, uma vida de produções artísticas, nem grandes nem pequenas, apenas uma mão cheia, sendo a coisa mais importante um episódio da série Miami Vice, e o casamento de um ano com Martin Scorsese. Cameron escreveu mais de 20 livros, mas todos após o sucesso deste, e todos a falar destas mesmas coisas. Ou seja, seguir Cameron não é um processo de imitação do processo de desenvolvimento de um artista, mas antes ouvir boas palavras de incentivo à persistência. No fundo Cameron tornou-se uma guru da autoajuda para iniciantes ou desejosos de se tornarem artistas, e isso também explica muito das discussões em sua defesa que encontramos na net.

março 12, 2019

Leonardo

Walter Isaacson tem vindo a escrever biografias sobre vários criadores multidisciplinares, ou polímatas, — Benjamim Franklin (2003), Steve Jobs (2011) e Ada Lovelace (2014) — e alguns génios — Einstein (2009) e Alan Turing (2014) —, tendo a última, sobre Leonardo (2017), servido de síntese aos dois tipos de criadores, dadas as capacidades deste para abraçar múltiplas artes (desenho, pintura, escultura, música ou arquitetura) e múltiplas ciências (engenharia, geometria, cartografia, anatomia, biologia, astronomia, ou física), e em várias dessas ter aprofundado e conseguido revolucionar o conhecimento existente — técnicas de pintura (sfumato e luz), geometria (perspetiva e vistas de sólidos) e engenharia (sistemas e hidráulica). Pode-se até discutir o valor de algumas das suas revoluções, mas não se pode retirar o mérito e brilhantismo de cada uma dessas inovações, o que em síntese nos obriga a colocar Leonardo no topo dos criadores de conhecimento de toda a História.

Livro: Isaacson, W. (2017). Leonardo da Vinci. NY: Simon & Schuster

Por ter nascido como filho ilegítimo, Leonardo não teve acesso a uma educação formal, tendo-se iniciado como autodidata, o que aliado ao facto de ser esquerdino faria com que escrevesse da direita para a esquerda, em espelho (o que para algumas teorias da conspiração tinha como objetivo vedar o acesso ao seu trabalho). Só aos 14 anos foi iniciado na aprendizagem do desenho e pintura com Andrea del Verrocchio, tendo depois disso recorrido sempre a diferentes especialistas para aprofundar aquilo que desejava aprender de novo. Leonardo recusava o conhecimento presente nos livros, considerava que o conhecimento estava no mundo, e só se podia adquirir pela observação e experimentação desse mundo, era um empiricista.
“His quest for knowledge across all the disciplines of arts and sciences helped him see patterns. Occasionally this mode of thinking misled him, and it sometimes substituted for reaching more profound scientific theories. But this cross-disciplinary thinking and pattern-seeking was his hallmark as the quintessential Renaissance Man, and it made him a pioneer of scientific humanism.”
Esta sua abordagem à construção de conhecimento, e a imensidão de conhecimento desenvolvido, fazem deste seu empiricismo a sua principal genialidade, algo que só foi possível graças a um conjunto de características psicológicas que o sustentavam: a persistência, a resiliência, e uma curiosidade inumana. Leonardo não se interessava por tudo ao mesmo tempo, começava num tópico — perspetiva, sombras, movimento de água, circulação do sangue, etc. etc. — e investia todas as suas forças até esgotar o que podia apreender da realidade. Como exemplo, no campo da anatomia e fisiologia, dissecou dezenas de cadáveres, tendo chegado a abrir um porco em que o coração ainda batia, para estudar a movimentação do sangue, e assim perceber que o coração não era feito de 2, mas 4 ventrículos separados. O seu trabalho moveu-se sempre pela sede de saber, de conhecer, de descobrir o que não sabia e não lhe conseguiam dar respostas. Movia-se por via da observação ao que juntava o desenho não apenas para registar as observações, mas para compreender o real. Quando tentou responder ao problema matemático da quadratura do círculo, ainda tentou seguir pela via do cálculo, com a ajuda do matemático Luca Pacioli, mas incapaz da necessária abstração, acabaria por recorrer ao desenho para construir as suas respostas.

Sólidos geométricos desenhados por Leonardo Da Vinci para o livro "Divina Proportione" (1506) de Luca Pacioli.
“During this period of intense anatomical study, Leonardo made 240 drawings and wrote at least thirteen thousand words of text, illustrating and describing every bone, muscle group, and major organ in the human body for what would have been, if it had been published, his most historic scientific triumph. ”
“His studies at times became such a deluge of details that they reveal more about his passion than about water’s dynamics. He spent hours fixated on flowing water, sometimes observing it and at other times manipulating it to test out his theories. In one part of the Codex Leicester he crammed 730 conclusions about water onto eight pages, causing Martin Kemp to comment, “We may feel that the boundary between dedication and obsession has been overstepped.”
“He was mainly motivated by his own curiosity (..) He was more interested in pursuing knowledge than in publishing it. And even though he was collegial in his life and work, he made little effort to share his findings. (..) This is true for all of his studies, not just his work on anatomy. (..) when he died, Leonardo would leave -- only piles of unedited notebook pages and drawings. (..) Over the years, and even centuries, his discoveries had to be rediscovered by others.” 
"[Leonardo] began scientifically by arguing that the embryo does not breathe in the womb because it is surrounded by fluids. “If it breathed it would drown,” he explained, “and breathing is not necessary because it is nourished by the life and food of the mother.” Then he added some thoughts that the Church, which believed that individual human life begins at conception, would have considered heretical. The embryo is still as much a part of the mother as her hands and feet are. “One and the same soul governs these two bodies,” he added, “and one and the same soul nourishes both.”
Em termos artísticos Leonardo foi um de vários da Renascença italiana, pertencendo ao trio destacado — junto a Michelangelo e Raphael —, um destaque que não se deveu apenas ao seu trabalho, mas também ao trabalho de quem analisou e escreveu sobre ele, quem o enalteceu e legou conhecimento sobre as obras, não é por acaso que Isaacson cita abundantemente Vasari. A mestria dos artistas de Florença era grande, mas a criação de estrelas das artes, algo que nunca até então tinha existido, só foi possível graças a um trabalho elaborado de comunicação, e foi isso que Vasari fez ao escrever a primeira obra da História de Arte: “As Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos” (1550), com 650 páginas. Claro que a tudo isto se juntam as condições ótimas proporcionadas a estes artistas pela elite financeira de Florença, Veneza e França.

1) 1489 – 1490, "Dama com Arminho", óleo sobre madeira, 54 cm × 39 cm; 2) 1490 – 1496, "La Belle Ferronnière", óleo sobre madeira, 62 cm × 44 cm; 3) 1513 - 1516 "S. João Batista", óleo sobre madeira, 69 × 57 cm; 4) 1503 - 1517, "Mona Lisa", óleo sobre tela, 77 cm × 53 cm. O exemplo máximo da arte e ciência de Leonardo foi a Mona Lisa, que começou a ser desenhada em 1503, esteve na sua posse até à sua morte, tendo sido trabalhada sempre que descobria outras formas de pintar.

Estudo da luz e sombra de Leonardo

Mas para Leonardo a arte não era diferente de todos os seus restantes interesses. Claro que muitas das encomendas que foi tendo eram no campo da arte, mas nem sempre respondia aos pedidos, e menos ainda ao que se pedia. O facto de ter passado toda uma vida focado no desenho fez com que revolucionasse a pintura, não tanto pelo virtuosismo da repetição, mas pelos ganhos que o conhecimento adjacente (anatomia, fisiologia e geometria) lhe foi granjeando (ver imagem com evolução das expressões faciais). Assim como quis tanto descobrir o interior do coração de um porco, quis conhecer o poder do efeito da perspetiva, que também ganhou bastante com todo o estudo imensamente aprofundado que fez sobre a luz e sombra (ver “A Última Ceia”). Para mim, Leonardo não foi artista nem cientista, foi ambos, mas foi acima de tudo o primeiro Designer. Movia-se no sentido de compreender o real, esboçava esse real para compreender o seu funcionamento, chegar às suas qualidades intrínsecas, a partir do que depois projetava teorias e possibilidades, algumas mais sólidas, outras, pura fantasia especulativa.


O fresco "A Última Ceia" 1495–1498, acima recortado do seu ambiente, e abaixo visto do lugar imaginado por Leonardo, para se ter a noção completa da perspectiva atente-se no efeito de profundidade conferido à parede. 

O livro de Isaacson pode não ser o livro mais completo sobre Leonardo, mas isso nunca nenhum o será. Pode também não ser o mais imparcial, mas isso é difícil quando nos detemos a analisar alguém como Leonardo. Mas é uma excelente biografia por se concentrar nos elementos base da genialidade intelectual de Leonardo, e deixar de lado outros tantos aspetos que poderiam ser discutidos — a família, os lugares, os problemas com a homossexualidade —, que são claramente menores. Leonardo representa para a humanidade o apogeu da cognoscência, e por isso é como tal que interessa lê-lo e conhecê-lo, mais do que como ser-humano, pois era praticamente inumano.
“The sexual act of coitus and the body parts employed for it are so repulsive that, if it were not for the beauty of the faces and the adornment of the actors and the pent-up impulse, nature would lose the human species.” Leonardo Da Vinci
No próximo dia 2 de Maio de 1519,  a data da sua morte faz 500 anos, e no entanto não paramos de descobrir feitos e obras. Só neste mês de março já vão duas, o esboço da Mona Lisa nua e a única escultura sua sobrevivente, no qual se pode ver um cristo sorridente. Se existe personagem da história que pode servir-nos de inspiração, que pode ajudar-nos a lutar contra as nossas crises existenciais, é Leonardo.

"A Morte de Leonardo da Vinci" (1818) por Jean Auguste Dominique Ingres. Na tela podemos ver o rei de França, Francis I, recebendo o último sopro de Leonardo.