Nos últimos anos temos sido servidos por distopias em tudo quanto é meio narrativo, da literatura ao cinema, passando pelos videojogos, a televisão e a banda desenhada, não existe espaço de criação cultural e de imaginário que não tenha exemplos férteis de cenários apocalípticos, do fim de tudo e de todos. Muito se tem falado sobre o seu caráter de antevisão, não faltando profecias sobre o tema, algo a que o fim do milénio não será também alheio, mas parece-me existir aqui algo distinto, algo de que me dei conta ao jogar “The Last of Us 2” (2020) de Neil Druckmann enquanto lia “Hiroshima” (1946) de John Hersey.
Começando por “The Last of Us 2”, tenho de dizer que nunca o problema da dissonância cognitiva foi tão gritante, com um mundo-história trabalhado até ao ínfimo detalhe técnico para ser levado a sério, para nos fazer crer na tragédia, mas em que o agir, atuar e fazer, não seguem o acreditar, crer nem querer. Ao chegar ao final, sinto-me a interagir apenas para ver a cortina encerrar-se, como se lesse página após de página para poder completar a leitura. A interatividade deixa de me falar, não creio e por isso não quero agir, mas sirvo-me da mesma para virar as últimas páginas [1].
Questiono-me se, apesar da violência, o núcleo da mensagem do jogo não terá sido dirigido a um público jovem, seguindo o género literário “Young Adult Horror”. Se eu tivesse 20 anos, talvez fizesse sentido passar por uma experiência tão intensa, do ponto de vista audiovisual, sobre a problemática humana da vingança. Contudo, mesmo aí parece-me que o jogo falha a sua mensagem. A vingança pode até produzir marcas no corpo da personagem principal, mas esta permanece obstinada e imutável. Se a primeira saída para obter vingança já era má, acabando nós por aceitar pelo carinho que nutrimos pela personagem, a segunda é tão estúpida que nada a consegue justificar, tornando a dissonância total (aliás, o encontro final com uns mauzões californianos, parece nem fazer parte do mesmo jogo). Mesmo tentando plantar a ideia de que a personagem vai atrás do significado perdido da sua vida, por não ter servido como veículo para salvar o mundo, é de um profundo narcisismo que não justifica nada.
O jogo procura oferecer algum alívio, pela mudança e redenção da segunda personagem principal, mas isso só torna tudo mais frustrante ainda. A redenção de Abby não pode redimir o mundo-história criado, antes acaba a tornar estúpido o final do primeiro jogo. No primeiro jogo, o final ficar aberto tinha-nos dado espaço para imaginar os efeitos, impactos e pesar as atitudes, mas ao fazerem este segundo, e levarem-no por este caminho, acabaram por destruir todo o imaginário produzido pelo final aberto do primeiro. No final, não temos sequer niilismo, temos um mundo que se constitui apenas de desprezo, raiva e violência.
Pode-se até dizer que isso representa o mundo pós-apocalíptico, um mundo que nada tem que ver com aquele em que hoje vivemos, e que não conseguimos ainda compreender, mas isso é de uma ingenuidade tremenda, falhando em análise histórica e cognitiva do ser humano. Jogar TLOU2 enquanto lia “Hiroshima” proporcionou-me um momento de lucidez sobre a razão por que temos tanta sede de distopias apocalipticas — de “The Last of Us” a “The Walking Dead”, passando pela “A Estrada” — e porque têm surgido tantos e tantos livros sobre Auschwitz. Acredito, é obviamente uma leitura pessoal que faço, que isso se deve, nomeadamente no caso Europeu, à ausência de guerras por quase um século.
Temos vivido de tal forma super-protegidos que não existe qualquer necessidade de lutar pela sobrevivência. Temos problemas, mas esses são quase todos do foro da realização pessoal, não têm relação com as necessidades básicas centrais do nosso sistema biológico evolucionário. Há dezenas e dezenas de anos que não falta comida nem segurança a estas populações, por isso acabamos por nos deixar seduzir por uma senda reflexiva que tende ao existencialismo, e graças ao fim das crenças ao niilismo. A busca por estes imaginários distópicos, é no fundo uma busca por sentimentos relacionados com os mandamentos ou essências da vida na Terra, a sobrevivência, a corrente de predadores e as presas, resquícios que permanecem em nós, que fazem pulsar a vida e instigam a continuar, e dos quais nunca nos conseguiremos desligar, pela simples razão de que toda a abundância e segurança de que gozamos é imensamente frágil.
Alterações climáticas, guerras nucleares, guerras bacteriológicas, guerras tecnológicas, ditadores extremistas, fanáticos religiosos, crises financeiras, etc. etc. são tudo enormes interrogações no limite das fronteiras da nossa segurança e bem-estar. Basta ver como o impacto do COVID-19, tão ligeiro na mortalidade global, está a colocar em causa muito do que era um status quo para muitos, nomeadamente para os que trabalhavam no mercado galopante do turismo, mas também das artes e cultura. Qualquer acentuação da mortalidade de um vírus deste tipo pode de repente virar todo o nosso mundo do avesso. Deixar de fazer sentido o emprego que temos, deixar de existir economia que suporte grande parte do que fazemos, e termos de repente de regressar a economias de sobrevivência, à lá anos 1980 em Portugal, ou pior, consoante o aumento do impacto económico, e consequentes efeitos na estabilidade política que podem reconduzir a estados continuados de guerra.
O problema dos imaginários das distopias à lá TLOU2 é que se colocam no lugar do nunca antes vivido, nunca antes suportado, nunca antes imaginado e isso é de uma ingenuidade gritante, para não dizer apenas estúpido. Todas aquelas notas espalhadas pelo jogo, ou as tribos e as suas religiões, não contribuíram em nada para sabermos mais sobre aquela realidade, mas antes para nos distanciar por via do sentimento de enorme artificialidade. Perguntem a quem sobreviveu a Hiroxima ou Auschwitz, e perceberão o quão sobranceiro é toda esta abordagem. O drama representado em TLOU2 poderia ser trágico, mas daí a considerá-lo um sofrimento inaudito, é simplesmente ridículo, leia-se Viktor E. Frankl.
Virando a agulha, os personagens não precisam de ser agradáveis, a ficção não tem de ser um escape para contos de fadas, aliás a demonstrar isso mesmo está esta torrente distópica. Mas precisam de oferecer algo. Discordo da crítica que adora obras apenas pela estética, esquecendo o conteúdo, apesar de eu ser profundamente formalista. Por isso não dissocio as obras dos seus criadores (ex. Hamsun ou Handke). Daí, que defender a ideia de que uma obra deve ter liberdade para apresentar personagens execráveis como Humbert Humbert, deve ser algo muito bem suportado. Mas se consigo secundar Nabokov, não consigo fazer o mesmo com Druckmann. TLOU2 é impressionante do ponto de vista formal, mas está ainda longe da jóia criada por Nabokov. Obviamente que o meio dos videojogos ainda estão à procura da sua identidade estética, mas o que aqui temos não é isso, esta não foi a primeira vez que o autor falou sobre o assunto. E o meio está carregado de personagens violentas e execráveis. Sim, vivemos numa era pós-moderna, em que as grandes narrativas e os personagens unidimensionais deram lugar à fragmentação, variabilidade e imprevisibilidade. Mas isso não chega para suportar um personagem que em sua essência não tem nada para dizer. Por que é disso que se trata, as histórias que se contam, e que não procuram ser mero passatempo, divertimento de consumo rápido, têm de ter algo para dizer. Se criamos toda uma obra em redor de uma personagem, por mais que não queiramos, estamos a erigir-lhe uma estátua, estamos a pedir às pessoas que parem e ouçam, por isso é bom que tenham algo para dizer.
Deixo uma lista de incongruências de TLOU2, atenção aos SPOILERS
1. A cena que coloca o jogo em movimento, recorda-nos a manutenção dos conflitos do IRA, País Basco, Palestina, e tantos outros conflitos, onde cada morte de família serve de rastilho para a manutenção da violência. A vingança que nada resolve, é aqui o mote para tudo e vai até ao fim. Até mesmo o próprio Edmond Dantés, naquele que é talvez o maior panfleto ficcional sobre vingança, "O Conde de Monte Cristo" (1844), acaba percebendo isso.
2. Só 1 pessoa em todo o planeta é imune! Se isto era aceitável no primeiro jogo, fazer todo o segundo jogo assim é entrar pelo mundo da fantasia, não da ciência.
3. Sabendo que não havia mais ninguém imune, Joel continua a pensar que fez o que estava correto! Todos os que morreram, desde então à sua volta, não o fizeram repensar o mundo em que vive e a escolha que fez! Deveríamos talvez começar a pensar que Ellie comporta em si algum tipo de divindade que precisa de ser adorada à semelhança da Nossa Senhora dos Seraphites.
4. Ellie vai vingar Joel, para o fazer mata dezenas de pessoas. A vida dela merecia ser salva, porque assim pode continuar a eliminar muitas mais vidas no planeta.
5. Ellie mata uma médica grávida, fica chocada no momento para impressionar o jogador, mas nunca mais volta a pensar nisso, apenas a vingança lhe importa!
6. Abby tem um momento de clareza na sua mente, após estar com a corda ao pescoço, literalmente, por isso decide pagar salvando duas irmãs da tribo inimiga. Mas para o fazer mata dezenas e dezenas de pessoas, incluindo amigos, para salvar duas pessoas!
7. Abby consegue salvar a amiga Seraphite que morre logo a seguir em mais uma tentativa vã de salvamento, mas isso não conta nada, porque apenas importa continuar a andar para frente, apesar de não se saber para onde!
8. Abby segue matando tudo e todos, mas quando encontra Ellie pela segunda vez, deixa-a sobreviver mais uma vez, apesar de toda a mortandade que esta provocou após a ter deixado viva na primeira vez. A Ellie realmente possui algo divino!
9. Ellie não consegue encontrar significado para a sua vida. Matou centenas de pessoas, pais de família, adolescentes, mulheres grávidas, médicas, mas apenas a sua vingança importa, por isso no final, quando pensamos que tudo terminou, partimos para uma segunda ronda para vingar, mais uma vez, a mesma pessoa.
Passando aos aspetos formais, em específico ao design de jogo e de narrativa, apesar da impressionante produção e a imensamente apurada experiência do utilizador, existem falhas a nível macro, que de certa forma contribuem para a leitura que faço da história. O mais gritante foi pensar que fazer alguém jogar o mesmo jogo duas vezes, com duas personagens em espelho, seria interessante. Narrativamente faz sentido, e temos isto amiúde em narrativas não-interativas, mas para o design da jogabilidade foi um desastre. Quando inicio a senda com Abby, perco toda a vontade de continuar a fazer melhoramentos das competências da personagem, estou em repetição, perdi o "meu" progresso, o que já tinha feito com a personagem anterior, tiraram-me o tapete e com isso a vontade de interagir. Já só queria mesmo saber o que acontecia a seguir para chegar ao final.
Por outro lado, seguir a ideia de que o jogo tinha de ter entre 25 a 30 horas, fez com que a experiência mais concentrada e cinematográfica do primeiro TLOU se tivesse transformado numa experiência esparsa, com muitos altos e baixos, altamente episódica, seguindo em toda a linha o formato das atuais séries televisivas. Foi inevitável sentir, demasiadas vezes, que se estava a “encher chouriços”, que eram cenas típicas de um episódio 3 ou 4 de uma série de 8, que existem apenas para prolongar o tempo da experiência, mas não adiantam absolutamente nada. Já agora, com tanto tempo para criar experiência, não houve espaço nunca para perceber de que se alimentavam todos eles, nunca se come em TLOU2, e ficamos a pensar que estamos perante super-humanos.
A revista britânica Edge, sintetiza bem tudo:
"You can't argue that Naughty Dog hasn't thrown everything at this, and though its tendency towards maximalism doesn't always work, the results are frequently astonishing. This is the kind of game you get when you have unlimited budget and manpower and no one to say when - even if you wish sometimes that someone had. As a big-budget action game, then, The Last of Us Part II is almost without peer. As a sequel to that story, it is deeply, daringly, fascinatingly flawed." EDGE, 18.6.2020
Fechar com notas positivas, em termos técnicos existem componentes do jogo que são absolutamente brilhantes — da performance dos atores à animação interativa, passando pela cinematografia (desde a fotografia ao movimento de câmara), pela modelação, desenho das paisagens e espaços confinados, assim como o grotesco dos próprios zombies. Tenho pena que tal não tenha sido melhor aproveitado. Permanece assim o primeiro tomo como uma das experiências ficcionais mais relevantes da última década, ao passo que este tenderá a perder-se no meio de tanta outra produção. Diga-se, que isto era talvez inevitável, não foi por acaso que Druckmann passou anos a recusar fazer um segundo jogo, até que alguém o conseguiu convencer de que a galinha de ovos de ouro tinha que fazer mais pela vida.
[1] Nesse sentido, estou com a Wired quando diz que a decisão da HBO de fazer uma série baseada em TLOU2 seria redundante, porque “The Last of Us is already more dedicated to film and TV-style storytelling than almost any game out there”.
[2] Imagens retiradas de vários sites de fotografia virtual — Voldsby, Vertical Gaming, Berdu.
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