Cheguei a "The Way of the Writer: Reflections on the Art and Craft of Storytelling" (2016) de Charles Johnson (1948) por via de várias resenhas que o identificavam como um dos livros mais interessantes sobre a produção criativa, nomeadamente por toda paixão e abordagem filosófica ao mundo da arte e da escrita. Contudo, pouco depois de iniciar a leitura surgiram as primeiras suspeitas de estar perante alguém que, apesar de ter feito algumas coisas relevantes na sua vida, longe de alcançar um reconhecimento internacional, demonstrava uma enorme falta de humildade. A meio do livro, não conseguia deixar de pensar noutro livro que segue exatamente a mesma fórmula — memórias-instrutivas-na-forma-de-romance-inspiracional —, escrito por um autor de fama mundial, com um volume de produção ímpar, ainda que nem tudo de qualidade inquestionável, mas oferecendo-se em toda a sua simplicidade, como se não tivesse publicado mais do que um livro que poucos leram, falo de "On Writing: A Memoir of the Craft" (2000) de Stephen King (1947). Isto diria quase tudo o que haveria para dizer sobre o livro, e em sua vez recomendaria a leitura duas ou três vezes do livro de King, mesmo que, como eu, não o considerem um dos vossos escritores preferidos. Mas, existe uma outra coisa que me incomodou tanto ou mais na leitura, e como tal não consigo deixar de o referir, assim como também existem um conjunto de notas muitíssimo interessantes.
Johnson abre citando, e continua ao longo de todo o livro, por mais 75 vezes, John Gardner, alguém de que nunca tinha ouvido falar, à semelhança do próprio Charles Johnson. No entanto, ouvir Johnson falar de Gardner, parece que estamos em falta total. Aliás, o modo como fala da sua própria carreira, e da mentoria de Gardner, dá a entender que não percebemos nada do assunto, já que nunca antes tínhamos ouvido falar de ambos. Para contextualizar, Johnson ganhou o prémio americano "National Book Award for Fiction" em 1990 para o livro "Middle Passage", e Gardner, parece ser reconhecido pelo livro "Grendel" de 1971, um remake do épico "Beowulf". Se os tiverem lido, considerem-se parte da elite absoluta, a única bem pensante e capaz de definir o que é literatura a sério, já que tudo o resto, segundo Johnson não passa de "pork literature", escrito assim mesmo. William Gass parece ter gostado bastante de "Grendel", já Gore Vidal disse, sobre este e restantes livros de Gardner, que lhe parecem pedantes, tendo definido o autor como: "late apostle to the lowbrows, a sort of Christian evangelical who saw Heaven as a paradigmatic American university".
Talvez se possa perceber o pedantismo numa simples passagem citada por Johnson, a propósito de uma tentativa de Gardner em se desculpar de uma má análise feita, anteriormente, a "Sophie’s Choice" de William Styron:
“What I now think is this: Most great American art is an elevation of trash. New Orleans tailgate funeral jazz was (or so I think on this particular Friday) aesthetically mediocre stuff, but out of it came the high art of Ellington, Gershwin and the rest. Out of trash films, including Disney at his worst, came writers ranging from William Gass and Ishmael Reed to (forgive the self-congratulation) myself. Styron did not simply use the gothic formulae, he transmuted them. What is wrong with gothics is not wrong with Sophie’s Choice.”
Sintetizado, seria algo como: "O lixo está em todo o lado, os bons incluem-me, ainda que tenha de ser eu a dizê-lo." Mas, o seu aprendiz, Johnson, que vê nele uma espécie iluminação, considera isto e tanta outra banalidade dita como digno de nota, acabando por dizer também muito sobre si.
Obviamente que para que se consiga ler, existem muitas outras partes boas no livro, nomeadamente o modo como dá conta do trabalho duro dos programas de escrita criativa que lecionava:
“I was faced, at age twenty-eight, with the task of deciding what I thought a heuristic, highly productive fiction workshop should be. From the start, I felt it should be a labor-intensive “skill acquisition” course, emphasizing the sequential acquisition of fiction techniques and providing the opportunity to practice them. The curriculum should be capacious, allowing for instruction in all styles, genres, and subgenres of fiction. I believed that apprentices learned best (as in music or the martial arts) through old-fangled imitation of master craftsmen, through assignments aimed at learning a repertoire of literary strategies, and by writing and revising prodigiously. I saw the goal of a (literary) art class as the creation of artists who were technicians of form and language; it was the preparation of journeymen, not one-trick ponies, who one day would be able to take on any narrative assignment—fiction or nonfiction, screenplay or radio drama, novel or literary journalism—that came up in their careers. And such a class should make clear that writing well was always the same thing as thinking well.”
(...) “the work they turn in must present: (1) a story with logically plotted sequences; (2) three-dimensional characters—that is, real people with real problems; (3) sensuous description, or a complete world to which readers can imaginatively respond; (4) dialogue with the authenticity of real speech; (5) a strong narrative voice; (6) rhythm, musicality, and control of the cadences in their fiction; (7) and, finally, originality in theme and execution.”
Mas também o modo como discute a relação entre filosofia e literatura, e algumas citações poderosas, como estas:
“We have never lived enough. Our experience is, without fiction, too confined and too parochial."
—Martha Nussbaum, “Love’s Knowledge” (1990)
“Feelings and images multiply a philosophy by ten. People think only in images. . . . If you want to be a philosopher, write novels.”
— Albert Camus, “Notebooks (1935–42)
“The function of education is not to confirm us in who we are; it is to introduce us to all that we are not. Education should overwhelm us to such an extent that we will never again assume that our experience as individuals or as part of a collective can be equated with human experience. In other words, education should impress us with how vast creation is and how small we are in the midst of it; and in the acceptance of that is the beginning of wisdom.
My education did not confirm me as a black man; it confirmed me as one who had the same questions as Plato and Aristotle. And my education told me that as a black person, it was not only right to ask those questions, it was even okay to put forward my own answers and stand them next to those of Plato and Aristotle. The cultural canon was presented to me in such a way that I was thrust into that vast and complex mystery which life is; and I graduated from college with an intense and passionate curiosity, which led me to study that which my formal education had omitted—namely, black history and literature and women’s history and much, much more.
It is the function of education to introduce the student to the terrifying unknown and provide not only the intellectual skills to make known the unknown but the emotional stability to withstand the terror when the unknown cannot be made known. Such an experience gives the student the self-confidence to go forth and face that mystery which lies at the core of each of us: Who am I?”
— Julius Lester, “The Cultural Canon”, (1990)
Chegado ao final do livro, que apesar de todo o posicionamento fora da minha esfera digo que se lê bem, acabei juntando Charles Johnson a Jonathan Franzen. São capazes de produzir literatura brilhante, pelo menos Franzen é, mas quando falam sobre a mesma ou sobre qualquer outra coisa, colocam-se no topo da torre de marfim, acabando por dizer pouco mais além de que estão lá em cima e os outros cá em baixo. Compare-se este posicionamento, de ambos, com as entrevistas e ensaios do brilhantismo perfurante e intelectual de David Foster Wallace (veja-se a mesa redonda com Wallace, Franzen, Leyner moderda por Charlie Rose) e rapidamente se percebe que é mesmo um problema de personalidade que os impede de seguir aquilo que parecem querer ensinar aos outros.
Assim, se tiverem interesse em ler memórias de um escritor que explique um pouco sobre como funciona o mundo da escrita, leiam "On Writing" de King. Não consigo parar de recomendar a sua leitura, para mim está no topo do seu melhor.
Sem comentários:
Enviar um comentário