dezembro 31, 2020

Kudos para a trilogia de Cusk

O último livro da trilogia de Rachel Kusk, “Kudos” (2018), foi escrito depois da sua passagem por Portugal, onde esteve a convite do festival Literatura em Viagem 2017. Se o primeiro livro da trilogia “Outline” (2014) se passava na Grécia, e o segundo, “Transit” (2016), em Inglaterra, este terceiro passa-se em Portugal. Contudo, ao contrário desses dois, Kusk nunca revela que a ação se passa no nosso país. Percebemos que assim é, através de pequenos indícios como o pastel de nata, aqui tratado como tarte de creme de ovos, mas ainda mais pela profusão da presença temática da religião e futebol nas conversas, e claro pelo calor e mar. Mas o maior indício está no enredo construído à volta de uma visita da narradora a um festival literário no sul da Europa. 

Fotografia de Rachel Cusk em Lisboa, de Nuno Santos para o jornal Público, maio 2017

Perguntamo-nos porque não diz onde se passa a ação, mas pelas entrevistas que, entretanto, deu é fácil perceber. No passado, Cusk teve processos movidos por algumas pessoas se considerarem reconhecíveis nos seus livros, aconteceu-lhe com o livro “In The Last Supper: A Summer in Italy”, e por isso alterou o seu modo de trabalhar como diz:

“Eu… uso o que está à minha volta e não discrimino assim muito. Quando estou a escrever, uso o que quer que esteja disponível. É verdade que, por vezes, esqueço-me de… Às vezes uso compósitos de coisas diferentes, mas não faço isso deliberadamente, é apenas o que preciso. Este processo não é muito consciente e por vezes posso escrever algo que seja reconhecível, por isso tive de me tornar um pouco mais consciente. E não gosto.”[1]

Cusk tem uma noção de privacidade muito atual, nomeadamente depois de tudo o que temos aprendido com o uso das redes sociais:

"Por vezes, algumas pessoas mais próximas dizem-me: “vou contar-te uma coisa, mas não é para tu usares.” E a partir do momento em que dizem, eu respeito. O que eu acho é que tudo o que é dito para a esfera pública pertence a toda a gente. Isto para mim é óbvio, se andares nua pelo hotel, as pessoas vão olhar para o teu corpo nu. Se não queres que olhem, não andes nua. A discrição é uma decisão pessoal." [1]

Mas o mais interessante é perceber a partir das suas palavras de que são feitos estes livros, esta trilogia, já que existe nesta algo que nos atrai mas que não é muito claro. Sentimos que a autora se refugia nos outros, como se não tivesse nada para dizer, mas a forma como o faz toca-nos, mexe connosco. Ao longo de todo o livro, somos continuamente confrontados com “ele dizia”, “ela disse”, “ela continuo dizendo”, e nunca chegamos a ouvir a narradora. Aliás, chega a ser cómico, nas entrevistas que dá ela nunca chega a vias de facto de se expor, porque o tempo acaba, ou o entrevistador que nunca se cala, considera que já sabe tudo sobre ela. 

Li apenas o primeiro em português, o segundo e terceiro li no original porque consegui entrar bem na escrita da autora, ainda que não me pareça que se perca nada na tradução

Olhando para a trilogia, considero que este terceiro livro vai além dos primeiros dois em termos dramáticos. Não sei se Portugal a afetou diferentemente, mas sinto vários capítulos a terminarem com maiores doses de drama, capazes de perturbar a calma que ela vai imprimindo na escrita. A maior parte toca no tema que continua sendo para ela muito relevante, o da separação e dos efeitos sobre os filhos, como nos diz: 

“é sobre perda, alienação e perda de identidade. Em particular, a perda de formas de vida, de um casamento, da vida familiar, do anonimato.” [1]

Quanto à particularidade da sua escrita, o melhor é mesmo ler o que Cusk nos diz:

"é como a psicanálise: há uma pessoa que escuta e recebe as emoções de outra, que fica aliviada ao contar a sua história. É uma Odisseia moderna." [2]

"a artificialidade, a tela do romance, não precisava de estar lá. Senti que podia tirá-la, deixar a memória de lado e a confissão pessoal, sem perder na narrativa." [1]

"No meu entendimento sobre o que divide a memória da ficção entendi que, na ficção, o narrador sabe muita coisa que finge não saber. Essa é a base de grande parte da escrita descritiva. Eu quis livrar-me disso, então tudo tinha de ser visível à superfície do livro. Nada de entrar nos pontos de vista ou na consciência dos personagens, porque isso é, essencialmente, falso. Na vida real, não podes entrar na cabeça de uma pessoa. Então, quando o narrador diz algo, ela diz o que diz, são os pensamentos dela. Como é que experiências a realidade humana? Vês o que as pessoas fazem e ouves o que elas dizem." [1]

"A maioria dos escritores que eu admiro fazem o mesmo e, quando lês, não é que as vidas deles sejam assim tão diferentes das coisas sobre as quais estão a escrever. Quando lês Thomas Mann, normalmente não encontras nada muito desconexo de um alemão do século XX. A arte não é invenção, é representação." [1]

“o objectivo de um romance é sempre representar algo verdadeiro, da vida.” [2]

"O livro é uma fotografia de um momento." [1]


[1] "Rachel Cusk: "Os ingleses têm desdém pelo intelectualismo e pela arte", in Observador, Agosto 2017

[2] "Rachel Cusk: "Imaginar um livro é como uma longa gravidez", in Sábado, maio 2017, 

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