outubro 15, 2019

A Espera de Coetzee

“À Espera dos Bárbaros” é um livro de Coetzee de 1980, escrito em pleno clima de Apartheid, na África do Sul, ao qual não é alheio, antes pelo contrário. A grande influência de Coetzee está na obra maior de Dino Buzzati, “O Deserto dos Tártaros” de 1940, escrito em plena Itália fascista. As obras tocam-se pela alegoria do forte fronteiriço e do inimigo quase invisível que a todos afeta a todos oprime trabalhando uma espécie de impotência nos protagonistas, ainda que os objetos que os motivam e sustentam sejam bastante distintos, o que acaba por ditar também todo um tom e fluxo estéticos distintos.


Assim, Buzzati usa a alegoria da espera e do tempo que passa para dar conta da inconsequência das nossas ações enquanto condição de vida, o que alguns veem como alegoria de uma luta contra o fascismo, embora para mim Buzatti tenha conseguido ir além dessa variável temporal, geográfica e política. Já Coetzee centra-se num conflito de forças que definem um mal-estar condicionador de uma vida sob um aparelho ideológico, o Apartheid. O magistrado de Coetzee percebe que o modo como os “bárbaros” são tratados é desumano, no entanto existe uma espécie de impotência que paira sobre si e o conduz a um isolamento e alheamento do sofrimento humano. Quando resolve dar um passo e atuar, tudo na sua vida é virado ao contrário, porque é essa a força da condição do lugar, “ou estás connosco ou estás com eles”, mesmo que ele na verdade não tenha percebido aquilo que fez como qualquer ajuda. Isto acaba sendo o mais interessante da obra de Coetzee, o facto da pessoa do magistrado nunca chegar a ganhar plena consciência dos problemas, apenas nele emerge uma espécie de instinto ou intuição que lhe mostra que o tratamento dado aos “bárbaros” é desprovido de senso.

Placa numa praia de Durban, 1989.

Contudo, o magistrado não deixa de se aproveitar da situação, da sua condição hierárquica para continuar a viver a sua vida, obter os seus prazeres, como se nada daquilo fosse verdadeiramente relevante para a sua condição individual. Claramente que sofre na pele os efeitos de uma potencial revolta contra o sistema, o que põe a nu como o sistema se perpetua. Por outro lado, se Buzzati deixa em aberto o fechamento, atirando para a consciência de cada um a extrapolação dos efeitos e impactos, Coetzee não é tão contido, e atira mesmo com uma proposta de desígnio ou cenário final expectável, como que prevendo o que viria a suceder 14 anos depois da publicação do livro.

Tendo a preferir Buzzati, a sua escrita é particularmente bela, e o modo como trabalha a alegoria, pela abstração, permite adaptar os contornos da narrativa à realidade de cada leitor, servindo em qualquer tempo e lugar. E no entanto o interessante é que é Coetzee quem mais abstracciona o espaço e o tempo, tornando difícil situar aquele forte em qualquer lugar específico, no entanto não o faz tão bem ao nível das ações, e nomeadamente ao nível das implicações sobre o protagonista. Não é por acaso que “O Desertos dos Tártaros” pertence à minha lista das melhores 15 obras de sempre.

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