Enquanto lia "A Consciência de Zeno" (1923) de Italo Svevo lembrei-me por várias vezes de Thomas Bernhard, este último não sabe escrever sem dizer mal dos outros, o primeiro não sabe escrever sem se queixar e vitimizar. O problema agrava-se porque essa forma de escrever não é algo simplesmente ficcionado, mas antes está patente nas personalidades de ambos. Por isso dispenso. Os dois escrevem muitíssimo bem, e Svevo é não só imensamente poético como dono de uma capacidade rítmica quase perfeita. Mas dizerem que Svevo inventava aqui o narrador em primeira pessoa e não confiável modernista, parece-me um exagero, mais de 40 anos antes, na transição do romantismo para o realismo, já Machado de Assis nos dava isso em todo o seu esplendor com "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881).
Alguns comparam Zeno a Dom Quixote, mas parecem-me bastante distantes. A loucura de Quixote é assumida, é frontal, enquanto em Zeno roça a seriedade. Podemos entender que Zeno apenas brinca, mas também podemos dizer que aquela é a personalidade real de Zeno. Mais, conhecendo um pouco mais sobre Svevo, nomeadamente por via da sua esposa, ele era neurótico, psicologicamente instável, e na maior parte do tempo completamente alheio à realidade. Ora isto é exatamente aquilo que Zeno é, por isso dizer-se que tudo aquilo é apenas ironia é apenas uma forma subtil de desculpar toda a alienação hipocondríaca de desprezo pelo outro, principalmente do sexo feminino, que trespassa toda a obra.
Do lado positivo, além da técnica, existem dois focos que me interessaram particularmente, as fortes críticas à psicanálise e à bolsa de valores, demonstrando uma certa presciência da parte de Svevo, uma vez que a psicanálise viria a ser desmascarada pela sua incapacidade de tratar as patologias da mente, e a bolsa viria a produzir uma das maiores crises económicas de sempre, poucos anos depois, em 1929.
Por outro lado, a colagem de Svevo a Proust, como "o Proust Italiano", também não cola para mim. Sim, a escrita é de grande qualidade, mas está imensamente distante do virtuosismo de Proust. Por outro, fico sem perceber propriamente de onde adviria o interesse apaixonado de James Joyce por Svevo. Até porque dizer que "Ulysses" segue "A Consciência de Zeno" é uma total descaracterização de ambas as obras. Sim, temos dois narradores/personagens principais neuróticos que nada têm para oferecer a quem os segue — Leopold Bloom e Zeno — mas a proximidade entre os textos termina aí.
Posso estar a ser demasiado duro com a obra, sinto isto em parte por todos os laudos que têm sido feitos ao livro e ao seu autor, mas também porque a boa escrita me faz sentir pena de chegar ao final com este sentimento. Posso ainda dizer que Svevo realiza uma excelente introdução ao mundo de Zeno no primeiro capítulo, e fecha também bastante bem com o último capítulo, mas esses dois capítulos não salvaram o livro, para mim.
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