A apresentar mensagens correspondentes à consulta motivação ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta motivação ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

fevereiro 04, 2021

A luta de quem o quiser ler

Estou a ler “A Minha Luta”, paro e fecho o livro, levanto-me vou à cozinha e olho pela janela, vejo a oliveira ainda jovem a querer dar ares de si. Abro o armário tiro uma caneca branca alta e esguia, encho-a com água até meio, coloco-a no micro-ondas. Abro o frigorífico tiro o leite, apanho o vidro de café, pouso ambos na mesa. O micro-ondas toca, abro a porta tiro a caneca ouço o borbulhar da água que se evapora da fervura, pouso-a na mesa. Aparece a Cookie, abana o rabo, dou-lhe uma festa na cabeça enquanto abro o vidro de café. Ela não parece satisfeita, viro o café sobre a taça batendo ligeiramente com o dedo no fundo do vidro para que entorne a quantidade certa. Olho novamente para ela, ela olha para mim, quer dizer-me algo. Vou até à janela ela segue-me contente, abro-a e ela sai a correr, ladra para a árvore alta do vizinho de onde saem chilreios. Está frio, volto a fechar a janela bebo um gole de café, sinto o calor da taça nas mãos, volto ao escritório. Sento-me no sofá, duas almofadas de cada lado, olho para a capa de “A Minha Luta” volto a pegar-lhe leio mais algumas páginas volto a parar e a fechar. Olho pela janela e interrogo-me, "porque continuo a ler-te?"

janeiro 23, 2021

“Retrato de Uma Senhora” (1881) de Henry James

“Retrato de Uma Senhora” (1881) é considerada a obra central do legado de Henry James. A mim serviu de porta de entrada, ficando a conhecer o mesmo, mas apesar de alguma admiração suscitada, deixou-me sem motivação para o continuar a ler. James realiza um trabalho soberbo de análise dos processos da consciência humana, na senda do que já nos tinha dado Balzac e Dostoiévski, capturando a nossa atenção ao longo de páginas e páginas de escalpelização dos mundos interiores dos seus personagens. Diga-se que James era irmão de William James, um dos grandes pioneiros da psicologia. O problema surge no conteúdo, nos personagens trabalhados, pela pertença à aristocracia, ou a uma burguesia muito próxima, que torna aquilo que se conta muito pouco interessante.

novembro 17, 2020

Transcend: The New Science of Self-Actualization (2020)

Maslow é para mim um dos mais importante teóricos da psicologia, nomeadamente do domínio da motivação humana, por isso este trabalho de Barry Kaufman, "Transcend: The New Science of Self-Actualization" (2020), enquanto tentativa de atualização do maior legado de Maslow, a Pirâmide de Necessidades Humanas de 1943, é uma obra fundamental. Não deixa de impressionar como uma teoria criada há quase 80 anos continua tão atual como quando proposta, no entanto existe sempre espaço para melhorar, e é isso que Kaufman aqui se propõe. 

Neste livro Barry Kaufman, assente na Pirâmide de Necessidades e em estudos multidisciplinares — de áreas como “positive psychology, social psychology, evolutionary psychology, clinical psychology, developmental psychology, personality psychology, organizational psychology, sociology, cybernetics, and neuroscience” — juntamente com um estudo aprofundado do legado e dos últimos escritos deixados pro Maslow, apresenta uma revisão da proposta na forma de “Sailboat Metaphor”.

Representação da “Sailboat Metaphor” de Barry Kaufman

Neste conceito o foco deixa de ser a “necessidade” e passa para a “auto-realização”. No modelo de Maslow essa realização surgia apenas no topo da pirâmide, Kaufman propõe uma revisão em que oferece mais espaço à conceptualização da realização humana, tornando-a central para aquilo que definimos como “sentido da vida”. Assim, e como se pode ver na imagem, mantém-se um conjunto de necessidades que estão situadas dentro do barco, fundamentais para garantir a segurança dos indivíduos e mantê-los à tona da água. No topo do barco, surge a vela, aquela que nos pode levar “mais longe” se aprendermos a manejar a mesma. 

“To use the sailboat metaphor, while we each travel in our own direction, we’re all sailing the vast unknown of the sea (…) you don’t ‘climb’ a sailboat like you’d climb a mountain or a pyramid. Instead, you open your sail, just like you’d drop your defenses once you felt secure enough. This is an ongoing dynamic: you can be open and spontaneous one minute but can feel threatened enough to prepare for the storm by closing yourself to the world the next minute. The more you continually open yourself to the world, however, the further your boat will go and the more you can benefit from the people and opportunities around you. (…) And if you’re truly fortunate, you can even enter ecstatic moments of peak experience—where you are really catching the wind. In these moments, not only have you temporarily forgotten your insecurities, but you are growing so much that you are helping to raise the tide for all the other sailboats simply by making your way through the ocean. In this way, the sailboat isn’t a pinnacle but a whole vehicle, helping us to explore the world and people around us, growing and transcending as we do.”

Esta metáfora é bastante mais rica que a da pirâmide, desde logo porque se introduz com dinâmica, o que permite compreender o funcionamento de cada elemento na dimensão tempo. Mas também porque a separação realizada, entre a segurança, ou necessidades fundamentais, e o crescimento humano, leva o modelo bastante além na compreensão da auto-realização humana, algo que urge compreender para podermos trabalhar as nossas sociedades em registos aceitáveis de sanidade mental.

Kaufman propõe uma visão além do barco, correspondendo ao céu acima do mesmo, no qual pode acontecer a chamada transcendência do humano:

 “At the top of the new hierarchy of needs is the need for transcendence, which goes beyond individual growth (and even health and happiness) and allows for the highest levels of unity and harmony within oneself and with the world. Transcendence, which rests on a secure foundation of both security and growth, is a perspective in which we can view our whole being from a higher vantage point with acceptance, wisdom, and a sense of connectedness with the rest of humanity.”

Confesso que esta parte relativa a transcendência, e que no fundo dá nome ao livro foi a que menos me falou. Compreendendo o objeto de Kaufman, e até que o próprio Maslow passou os últimos anos a trabalhar neste campo, considero-o demasiado próximo da individualidade de cada um, excessivamente íntimo, o que acaba fazendo com que aquilo que se propõe se pareça mais com abordagens espirituais e de auto-ajuda, do que fruto da ciência. 


Não me parece que a metáfora de Kaufman venha substituir a de Maslow, mas julgo que a complementa, acabando por a tornar mesmo mais relevante, no sentido em que o trabalho de Maslow continua atual e assim a ser atualizado.

outubro 01, 2020

"Metro Exodus" (2019)

"Metro 2033" (2010) foi uma enorme surpresa, "Metro: Last Light" (2013) elevou a qualidade em todas as dimensões, nomeadamente direção de arte e narrativa, tornando difícil qualquer nova sequela e por isso acaba a não surpreender a sensação de mera incrementação de "Metro Exodus" (2019) que se limita a adicionar enxertos de mundo-aberto. A partir do meio da jornada já só o fechar da última página parece manter-nos a jogar, mas continuar até ao final leva-nos à redenção da experiência, do jogo como um todo, em impacto e prazer estético de uma forma quase memorável.

setembro 09, 2020

A publicação de "Engagement Design" (2020)

O meu mais recente livro, "Engagement Design: Designing for Interaction Motivations", foi publicado a meio de março 2020, exatamente aquando do início da quarentena provocada pela pandemia COVID-19. Tinha intenção de dar conta da publicação do mesmo no blog e nas redes sociais, mas com a quarentena e todos os impactos da mesma acabou por ser algo sempre protelado. Aproveitando agora o início do novo ano letivo fiz um pequeno texto sobre a publicação do livro, focado na génese e motivação por detrás da sua escrita, assim como na inovação da proposta que apresenta.

Este livro começou a ser germinado no ano 2014/2015, como obra de introdução ao design de interação, com um forte enquadramento no domínio da Interação Humano-Computador (IHC), na altura com o intuito de publicar o mesmo na editora portuguesa FCA, onde tinha publicado o "Videojogos em Portugal: História, tecnologia e arte" (2013). Contudo, pouco depois de anunciar que ia escrever o livro dei por mim dentro de uma espiral de acumulação de material sobre a área, não conseguindo parar de colecionar obras, textos, capítulos, modelos, projetos... Quanto mais informação acumulava mais me questionava sobre a relevância de escrever um livro introdutório que iria ser igual a tantos outros, mesmo que sendo em português, língua em que existiam parcos recursos.

Foi apenas quando resolvi escrever o primeiro capítulo que me dei conta da minha insatisfação com a área, em particular na aplicação das metodologias do design de interação ao design de jogos e em geral ao design de media interativos. Tinha ocorrido uma mudança grande no discurso da IHC, com o foco a mudar da Usabilidade para a Experiência, mas quanto mais lia sobre a experiência e o tão em voga UX, mais me desolava. Na verdade, parecia-me que pouco tinha efetivamente mudado. A experiência era algo tão vago e ambíguo que parecia servir apenas de moldura, mantendo-se em uso muitas das mesmas metodologias que eram utilizadas nos estudos da usabilidade.

Foi então que me dei conta da necessidade de concretizar o conceito de Experiência, e ao fazê-lo acabei chegando ao conceito de Engajamento. O que importava a quem discutia a Experiência era que essa fosse significativa para os utilizadores, mas o significado em si não podia ser medido, sequer antecipado, já que cada indivíduo tem um mundo de experiências prévias que contaminam sempre qualquer nova experiência. Por isso era preciso trabalhar algo mais formal que fosse generalizável, e o engajamento permitia isso mesmo. Ao trabalhar o design para o engajamento podíamos aperfeiçoar a experiência sem depender dos elementos subjetivos, porque estávamos a adequar a forma estética, funcional e de criação de significado a um conjunto de generalizações humanas. 

Para chegar a generalizações relevantes no modelo tive de trabalhar perfis e esses acabariam por ser desenhados em função da personalidade, de modo que os traços de personalidade humana acabariam por traçar a base daquilo que viria a definir no livro como "streams of engagement" (fluxos de engajamento). Ou seja, usamos a personalidade para generalizar o design da interação, a partir do que podemos, nas fases subsequentes, aprofundar em função da resposta dos utilizadores particulares de cada universo cultural, e em função do tema concreto do artefacto a desenvolver. Para ter uma noção rápida do que o livro pretende e como pode ser utilizado, podem ler o texto “Applying the Engagement Design Model” que fiz para acompanhar a saída do livro.

Com o capítulo escrito, que acabaria por ser o segundo do livro, enviei a proposta para a Springer, em inglês, e o retorno acabou sendo imensamente positivo, o que me motivou a avançar com os restantes capítulos e a criação do modelo final proposto no livro. Ou seja, o livro que tinha começado como estudo introdutório a uma disciplina, acabaria por tornar-se num livro de investigação sobre um tema e apresentação de um novo modelo de design não apenas teórico mas aplicável. Quando terminei o livro, enviei o mesmo ao Jeffrey Bardzell que fez o favor de escrever o prefácio que acabaria por surgir depois no livro.

Claro que tudo isto é passado, o meu interesse é agora procurar aplicar e melhorar o modelo proposto nos projetos a desenvolver no DigiMedia, e que possa servir a comunidade científica na busca por uma melhor compreensão do próprio design de interação e de experiência. Com o feedback que for recebendo, continuar a trabalhar para otimizar o modelo, nomeadamente nos diferentes domínios do design de interação em que possa vir a ser aplicado.

maio 31, 2020

Design de Experiência através do “Power of Moments”

“The Power of Moments: Why Certain Experiences Have Extraordinary Impact” (2017) é o terceiro livro que leio dos irmãos Heath depois de “Made to Stick: Why Some Ideas Survive and Others Die” (2006) e “Switch: How to Change Things When Change Is Hard” (2010). Direi que este “Power of Moments” se aproxima bastante de “Made to Stick” pela estrutura, mas em termos de objetivos congrega os dois anteriores. Em “Made to Stick” tínhamos o modo como podíamos desenhar experiências que permanecessem na memória das pessoas. Em “Switch” tínhamos o modo como poderíamos contornar as dificuldades que se colocam à mudança. Em “Power of Moments” juntam-se ambos e temos então a discussão sobre o modo como o design de experiências pode contribuir para a transformação de pessoas. Percebe-se que é o mais ambicioso dos três, mas apesar de algumas boas ideias dificilmente entrega o que promete, principalmente pela dimensão da ambição. Ainda assim vale a leitura para quem trabalha na área.

abril 27, 2020

O Enigma de Nabokov

Li vários livros de Nabokov, li sobre a sua pessoa, os seus gostos, preferências e aversões, fui visitar a sua casa de infância e juventude quando estive em São Petersburgo, no entanto nunca compreendi muito bem porque era um autor que eu amava sem conseguir amar completamente a sua obra. “Lolita” deslumbrou-me totalmente em termos formais, contudo, nenhum outro livro seu alguma vez se aproximou. Ao mesmo tempo, não conseguia compreender o seu total desprezo por Dostoiévski, chocava-me ler o que dizia sobre ele, não muito diferente do que me choca ler o que diz Lobo Antunes sobre Fernando Pessoa. E agora, depois de ler "Fala Memória" (1951), julgo ter finalmente compreendido o enigma, sobre o que me deterei nas próximas linhas.
Nabokov teve uma infância digna da monarquia, mas com pais profundamente preocupados com a sua formação, tendo ele, por inclinação própria, sabido bem aproveitar tudo o que lhe foi oferecido. Antes de ter sido exilado, em fuga da Revolução Russa, para Cambridge em 1919, onde foi fazer o seu curso com cerca de 20 anos, tinha já viajado por quase toda a Europa. Aprendeu inglês antes do russo, falava e escrevia fluentemente além destas o francês e o alemão. O seu pai era profundo amante de literatura e ofereceu-lhe todo um mundo de leituras desde a mais tenra idade. Nabokov teve todas as condições para aceder ao melhor de tudo o que ser humano tinha criado até então nas artes literárias. Além disso, começou a prática de escrita desde muito cedo. Juntando a inclinação própria e diga-se alguma sorte pela particularidade oferecida pela sinestesia e o ambiente apropriado, Nabokov iria tornar-se num maestro das letras. A sua prosa evoluiria, o poético ganharia enorme densidade, e isso serviria para impulsionar intensamente a sua arte. Contudo, sinto que Nabokov seria sempre mais artesão do que artista.

Sempre considerei estranhos os dois papéis mais reconhecidos em Nabokov, escritor e colecionador de borboletas, por qualquer razão nunca senti que combinassem. No entanto, a relacioná-los colocava a beleza. A beleza das suas frases e a beleza dos padrões das borboletas. Foi agora, ao ler as suas memórias que compreendi o quão essas duas partes se aproximam, e como definiam a própria escrita de Nabokov. Desde logo, essa relação é evidente no modo distante e frio como fala da sua infância e família, como se tivesse estado sempre a janela vendo os eventos passar. Perto do final, demonstra para meu maior espanto, o prazer que retirava da criação de problemas de xadrez (estes problemas consistiam em montar uma jogada no tabuleiro e definir um número máximo de jogadas permitidas para fazer xeque-mate). O gosto por jogar xadrez não é per se qualquer motivo de surpresa, mas obter profundo prazer na conceção e resolução de problemas formais é um marcador indissipável da psicologia de um criador.

Esta análise que faço está naturalmente imbuída do trabalho que tenho vindo a desenvolver no campo dos perfis psicológicos e do modo como estes definem a nossa curiosidade e motivação, no modo como nos predispõem para o envolvimento com a realidade. Tendo eu definido três perfis — Abstracionista, Experimentador, Dramatista —, Nabokov parece não se encaixar em nenhum, ou encaixar nos dois mais opostos. Em favor do abstracionista, Nabokov apresenta o seu lado colecionista obsessivo e a resolução de problemas. Para o lado dramatista, Nabokov apresentava naturalmente a sua literatura e os seus romances. Contudo, da análise da sua literatura e relação com as qualidades de cada perfil, a conclusão a que chego é que Nabokov foi muito mais abstracionista do que dramatista, ou seja, foi alguém focado em sistemas e estruturas, pouco interessado em pessoas e nos seus dramas, algo que espero demonstrar nos pontos seguintes:


1 – Nabokov não gostava de Dostoiévski porque não compreendia a dramatização da psicologia humana colocada em cena por este. Para Nabokov a escrita era fraca, os enredos repetitivos, faltava beleza formal. Mas Nabokov na verdade não compreendia o que se passava efetivamente no interior de Raskólnikov, e menos ainda daqueles que o liam.

2 – Do mesmo modo Nabokov ridicularizava Stendhal, Balzac, Mann, Faulkner, Camus ou Roth, escritores que muito fizeram pelo avanço do psicologismo no romance, em choque frontal com a larga maioria dos escritores e críticos e de forma ostensiva. Na verdade, Nabokov não conseguia chegar a certos tipos de escrita, não por não ser capaz, mas porque não lhe tocavam, não lhe falavam.

3 - Durante alguns anos admirei Nabokov por ser frontal e falar abertamente contra Sigmund Freud, contudo só agora compreendi que aquilo que o incomodava nada tinha que ver com os seus métodos muito pouco científicos, mas apenas e só com o facto deste trabalhar a psicologia humana.

4 – A curiosidade de que Nabokov terá visitado os 46 estados americanos, referido neste livro mais de uma vez, em busca de borboletas, é mais do que isso, é um elemento central para compreendermos o seu comportamento obsessivo. Nada o faria impedir de ir atrás das suas metas e objetivos, eles foram sempre o seu norte.

5 – Do mesmo modo, os ataques a Boris Pasternak e Alexander Solzhenitsyn, os dois russos a ganhar o Nobel (1958 e 1970) quando Nabokov já era considerado um génio das letras, têm mais que ver com o competitivo inato em Nabokov do que com qualidades desses autores ou até mesmo inveja. O Nobel é um prémio, apesar da competição ser algo exótico no domínio da narrativa, das histórias e das letras, mas era isso apenas que interessava a Nabokov, atingir os objetivos.

6 — Um dos seus livros mais estudados é um poema, mas não é um poema qualquer. “Pale Fire” é um conjunto de significados escondidos por debaixo da capa e forma de um poema, mas “Pale Fire” não é nenhum poema, porque antes de o ser é um puzzle. Os críticos deslumbram-se com as intrincadas métricas que perfazem o poema de exatas  999 linhas, e o modo como os cantos podem ser lidos em série ou paralelo, abrindo caminho ao chamado hipertexto e cibertexto. “Pale Fire” é um problema textual criado por Nabokov, tal como os problemas que adorava criar para xadrez.


Tudo o que elenquei não diz que Nabokov não era escritor, nem que não era dotado de génio na escrita, mas diz-nos que Nabokov era fraco contador de histórias e que na verdade tinha pouco para dizer. O seu foco foram eram coisas e objetos, os humanos eram para si secundários, não relevantes, tal como diz o próprio George Steiner:
"O caso de Nabokov parece envolver uma desumanidade profunda, ou, mais precisamente, uma desumanização. Há compaixão em Nabokov, mas é superada em muito pelo desdém elevado, sombrio." George Steiner, Grandmaster, The New Yorker, December 10, 1990, pp. 153-157.
Para alguém que se considerava a si mesmo um génio e que prezava a arte acima de tudo, parece parco. Porque se admitimos a um cientista que se foque nos objetos em vez das pessoas é porque o seu trabalho contribui para o avanço do conhecimento humano que por sua vez servirá a todos. Já quando um artista se foca apenas na sua arte, no virtuosismo da mesma desligada de tudo e todos, é apenas a si mesmo que serve. No final de cada livro seu, fico sempre encantado com a forma, com a estrutura, com o virtuosismo, mas o que retiro verdadeiramente da leitura sabe a pouco. O único livro em que a forma me bastou, talvez porque tinha de bastar para compensar a abjeção da história contada foi “Lolita”, e é falando sobre esse que quero terminar, porque acredito que o enigma aqui desvelado nos pode ajudar a compreender um pouco melhor essa obra.

“Lolita” apresenta uma escrita absolutamente singular. Não é mera poesia, é toda a textura textual que cria um sentimento de espanto e surpresa no modo como o universo nos vai sendo oferecido, do ritmo do texto às metáforas ricas. Por sua vez, toda essa beleza é contraposta à descrição do mais profundo horror. Esse horror continua, até hoje, a não ser compreendido por quem o lê, gerando interrogações e dúvida sobre o que verdadeiramente está em questão na história que se conta. Contudo, a partir do que discuti acima, parece-me que a explicação está no perfil psicológico de Nabokov, alguém profundamente focado em coisas, não em pessoas. O seu foco era o livro, a obsessão pelo texto perfeito era total, já os personagens e os eventos eram apenas mais uma história, igual a tantas outras. O enigma emerge assim pela falta de empatia de Nabokov, pelo modo como se alheava completamente da relação emocional criada pelos personagens das suas obras com os seus leitores. O abjeto e nojo são por demais evidentes em “Lolita”, contudo Nabokov não parece apresentar nunca consciência de tal ao longo de todo o livro. Claro que se podem evocar sentidos escondidos na relação entre a beleza do texto e a beleza da ninfeta, contudo nada dessas interpretações poderá esconder o negrume do que se apresenta. Ou mais facilmente poderíamos dizer que pessoas más não fazem más histórias, para o que bastaria evocar Raskólnikov, mas para tal o escritor não poderia "esquecer-se" de evidenciar de que lado estava.

janeiro 19, 2020

Virtual Illusion: textos de 2019 mais lidos

Este ano tinha decidido não listar os textos mais lidos, contudo como acabei dando conta de várias mensagens perdidas no blog, e andei a responder às mesmas, acabei por me fixar nos números, e extrair a lista que costumava fazer anteriormente. Na verdade, é interessante para o blog, porque permite a algumas pessoas repescar textos que lhes tinham passado, mas para mim acaba sendo também um profundo exercício de viagem mental no tempo que me permite olhar para as ideias do lado de fora. Permite-me não só recordar certos momentos de composição, mas mais importante do que isso obriga a refletir sobre essas ideias e a tentar compreender se ainda se mantém ou se foram entretanto alteradas. Por isso, talvez faça em breve este exercício para a última década, poderá ser muito interessante viajar dentro de posts ao longo de 10 anos.
1. Sobre o mito: “desde que se leia”, abril 2019
2. Quem fala inglês na Europa e porquê, janeiro 2019
3. SciMed e a humildade em ciência, abril 2019
4. Quando é necessário dizer Não, maio 2019
5. Talento ou motivação para criar?, maio 2019
6. Leonardo, março 2019
7. A ciência de Steven Pinker, e dos seus, junho 2019
8. Design de narrativa, desenho de significado na experiência interativa, abril 2019
9. Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável, janeiro 2019
10. Como ler um livro, outubro 2019
11. Viajar, uma volição de posse, abril 2019
12. Brincando com a mente, Claude Shannon, março 2019
13. Uriel da Costa (1585-1640), março 2019
14. Como começou a linguagem: a história da maior invenção da humanidade, agosto 2019
15. 5 razões porque é difícil fazer videojogos, julho 2019

janeiro 06, 2020

Saunders, o Bardo retornado

Lembro-me de quando "Lincoln no Bardo" (2017) saiu, da comoção da crítica e do público, seguida de múltiplos prémios, mas só agora que o li me apercebi totalmente da motivação do uso da expressão Bardo. O meu primeiro contacto com a definição tinha sido exatamente por via do budismo do Tibete, no qual o conceito se define como espaço-tempo que intermedeia a morte e o renascimento. Contudo esta definição do termo é menos comum no ocidente, onde o bardo define também os contadores de histórias medievais — sendo um epíteto muito associado hoje a Shakespeare —, principais responsáveis pelas histórias que se contavam, nomeadamente das façanhas de reis e nobres, criadores da cultura que preservaria momentos e pessoas para a eternidade. Assim, enquanto fui contactando com o livro fui-me sempre movendo entre ambas as definições, apesar de ir lendo que se tratava de uma história passada num cemitério, lia também que era onde os fantasmas contavam as suas histórias. Quando agora resolvi entrar no livro e parei para ler um pouco sobre o mesmo, percebi que era concretamente do bardo tibetano que se falava, dito pelo próprio autor que utilizou tudo aquilo que condicionou o enterro do filho de Lincoln como motivo para o seu enredo no além. Contudo, e talvez contaminado por tudo isto que disse, ao chegar ao final do livro fiquei honestamente em dúvida. Sim, estamos naquele momento após a morte, em que os fantasmas/almas/pessoas aguardam pelo que há-de vir, que cada autor/pensador vai definindo em função da influência religiosa — do bardo ao purgatório, passando pelo limbo — mas na verdade, o que temos neste livro são histórias, histórias de vidas simples e de presidentes quase-reis. Saunders não só "foi" ao Bardo pescar essas histórias, como se transformou ele próprio no Bardo que as relata para todo o sempre.
Entrando no livro, aconselho previamente o visionamento de “Lincoln” (2012), um filme muito acessível sobre os momentos marcantes da presidência de Abraham Lincoln, em que Steven Spielberg explica porque este 16º presidente se tornou num dos três mais influentes da história dos EUA. Para além disso, interessa saber que um, dos três de quatro dos seus filhos que morreram, tendo morrido em 1962, em plena Guerra Civil americana, ficou temporariamente num cemitério em Washington até ser trasladado com o pai em 1965 para a morada final no Illinois. Saunders aproveita este hiato tornado acontecimento, com tudo aquilo que historicamente o circundou, para produzir a sua ficção.
Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln no filme "Lincoln" (2012) de Steven Spielberg

“Lincoln no Bardo” poderia assim ser mais um livro de ficção-histórica, ainda que original pela componente fortemente fantasiosa, ao utilizar o pós-morte para dar conta dos efeitos e impactos da História, mas é mais do que isso. Porque se tudo isto que até aqui relatei parece original, dá apenas conta do contexto daquilo que é a verdadeira originalidade da obra. Saunders queria mais, não fosse ele reconhecido pela sua veia mais cómico-sarcástica, por isso além das vozes dos mortos, resolveu ir buscar vozes reais de registos deixados por múltiplas pessoas que viveram os dias que cercaram o dia retratado no livro. Deste modo, temos além da ficção, registos reais transcritos com aspas — de diários, cartas, registos estatais, livros, jornais, etc. — que Saunders entremeia num relato único. É uma escrita imensamente comum no meio académico — a narração do investigador intermediada com as citações de múltiplos outros autores em debate —, mas imensamente estranha em romance, mesmo histórico.
Lincoln lendo para o seu filho mais novo, Thomas "Tad" Lincoln

Contudo se o ponto de partida (o bardo) e a estrutura (intermediação entre ficção e registos escritos reais) eram já caso para oferecer o rótulo de originalidade, o que realmente faz do livro uma obra original é a inovação de Saunders, ao transformar a forma para nos dar a sentir diferentemente. Ele faz isso exatamente através do cruzamento entre o real e o ficcional, nomeadamente entre as vozes/pensamentos/corpos dos mortos e dos vivos. O presidente Lincoln é dado a ver e a sentir como em nenhuma outra obra antes, tal como aquilo que sente um pai quando perde um filho, e um filho que parte e deixa o pai para trás. Claro que o momento é per se imensamente melodramático, mas o relato de Saunders está longe da lamechice, antes cruza habilmente humor e melancolia, como tão raras vezes se pôde já ver. Porque é de verdade histórica que se trata, de humanos que existiram, mas é de muitos outros que sendo meras invenções em busca da consciência do estado em que se encontram, servem de veículos, de autênticos condutores, entre mundos, pessoas e sentires.
"Lincoln in the Bardo: 360 VR Video" (2017) The New York Times

Notas finais. Além do Booker, o livro foi adaptado a audiolivro tendo sido utilizadas vozes de 160 atores para dar conta da imensidade humana que atravessa o livro, tendo ainda um excerto sido adaptado para uma instalação do New York Times, que pode ser experienciado em parte no Youtube 360º.

dezembro 22, 2019

Explicação dos Pássaros (1981)

Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.

ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.

O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.

dezembro 21, 2019

Comportamento: sobre o nosso melhor e o pior

As razões que fazem de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) um livro obrigatório para todos os que estudam o Humano são as mesmas que Robert M. Sapolsky utiliza para descrever o comportamento humano enquanto “arco multifactorial”. Ou seja, o comportamento humano é apresentado enquanto resultado de um conjunto alargado de fatores biológicos e experienciais, produzindo a necessidade em Sapolsky de escrever um livro evocando um conjunto imensamente alargado de ciências — da biologia à psicologia, passando pela neuroendocrinologia, genética, psicologia evolucionária, primatologia, economia comportamental, teoria dos jogos, educação e ainda a antropologia, a política e a filosofia — não dando primazia a qualquer uma destas, antes buscando em cada uma as partes que contribuem para o resultado final do comportamento humano. Sapolsky não diferencia os genes da experiência, antes coloca ambos como pólos de um eixo dimensional entre os quais atuam múltiplos e variáveis fatores, e em que cada um destes afeta o funcionamento do anterior e posterior, tornando impossível determinar com certeza o que produz o quê. Este problema é o cerne das ciências que estudam o humano e acaba por explicar porque as humanidades nunca se vergaram às ciências. A leitura do comportamento, seja ele expressivo ou meramente funcional, requer além da descrição processual, que a ciência fornece, uma interpretação desse processo que só as humanidades podem fornecer. Por outro lado, é neste problema ou impossibilidade de fechar o ciclo causal que reside o núcleo do nosso livre-arbítrio.
Para entrar na abordagem proposta por Sapolsky apresento um excerto da Introdução que sintetiza a essência:
A behavior has just occurred. Why did it happen? Your first category of explanation is going to be a neurobiological one. What went on in that person’s brain a second before the behavior happened? Now pull out to a slightly larger field of vision, your next category of explanation, a little earlier in time. What sight, sound, or smell in the previous seconds to minutes triggered the nervous system to produce that behavior? On to the next explanatory category. What hormones acted hours to days earlier to change how responsive that individual was to the sensory stimuli that trigger the nervous system to produce the behavior? And by now you’ve increased your field of vision to be thinking about neurobiology and the sensory world of our environment and short-term endocrinology in trying to explain what happened.
And you just keep expanding. What features of the environment in the prior weeks to years changed the structure and function of that person’s brain and thus changed how it responded to those hormones and environmental stimuli? Then you go further back to the childhood of the individual, their fetal environment, then their genetic makeup. And then you increase the view to encompass factors larger than that one individual—how has culture shaped the behavior of people living in that individual’s group?—what ecological factors helped shape that culture—expanding and expanding until considering events umpteen millennia ago and the evolution of that behavior.
(…)
There are not different disciplinary buckets. Instead, each one is the end product of all the biological influences that came before it and will influence all the factors that follow it. Thus, it is impossible to conclude that a behavior is caused by a gene, a hormone, a childhood trauma, because the second you invoke one type of explanation, you are de facto invoking them all. No buckets. A “neurobiological” or “genetic” or “developmental” explanation for a behavior is just shorthand, an expository convenience for temporarily approaching the whole multifactorial arc from a particular perspective.”
Do meu lado pessoal, e além do que introduzi acima, o que me fez apaixonar pelo livro foi o facto do caminho científico-teórico reproduzido por Sapolsky ao longo do livro estar tão de acordo com o percurso que eu próprio tenho feito no estudo da Emoção e Cognição, e no modo como estas impactam a interação, comunicação e expressão humanas. Desde logo a evocação de Robert McLean e o cérebro triúnico, assumindo que é mais metáfora do que ciência, mas assumindo que é fundamental para compreendermos o funcionamento do processo cognitivo e emotivo do nosso cérebro. Passando depois pela discussão sobre a Amígdala, o Córtex Frontal, os Marcadores Somáticos, a Testosterona, a Oxitocina, a Serotonina e a Dopamina que impactam a Motivação, a Curiosidade e o Brincar, o Vínculo Parental, a Seleção Natural, a Seleção Sexual que por sua vez impactam os Genes e os transformam, desenvolvendo variações dimensionais do Competitivo ao Colaborativo, produzindo a Empatia que regula os níveis do "Nós vs. Eles". Muito disto foi amplamente discutido por tantos outros autores aqui evocados por Sapolsky desde o grande mentor Darwin até Dawkins, Damásio ou Kahneman, passando por Harlow, Zimbardo, Milgram e Pinker ou ainda Voltaire, Hobbes e Rousseau. Este percurso requer obrigatoriamente a multidisciplinaridade como poderão ver na minha prateleira Human Engagement no GoodReads.

Existem tantas partes do livro relevantes que gostaria de aqui transcrever, muitas delas apenas como re-afirmação de ideias e conceitos, outras como crítica social assente naquilo que a ciência nos vai deixando entrever, outras como portas para novas investigações e interesses. Mas é um livro impossível de sintetizar em duas ou três páginas, é um livro que precisa de ser lido e relido, apesar das suas 800 páginas, para que possamos interiorizar a compreensão da ciência existente e ganhar assim um maior entendimento sobre o que somos:
“Neuroimaging studies show the dramatic sensitivity of adolescents to peers. Ask adults to think about what they imagine others think of them, then about what they think of themselves. Two different, partially overlapping networks of frontal and limbic structures activate for the two tasks. But with adolescents the two profiles are the same. “What do “you think about yourself?” is neurally answered with “Whatever everyone else thinks about me.” (Cap. 6)
“Are we a pair-bonded or tournament species? Western civilization doesn’t give a clear answer. We praise stable, devoted relationships yet are titillated, tempted, and succumb to alternatives at a high rate. Once divorces are legalized, a large percentage of marriages end in them, yet a smaller percentage of married people get divorced—i.e., the high divorce rate arises from serial divorcers (...) Measure after measure, it’s the same. We aren’t classically monogamous or polygamous. As everyone from poets to divorce attorneys can attest, we are by nature profoundly confused—mildly polygynous, floating somewhere in between.” (Cap. 10)
“Worldwide, monotheism is relatively rare; to the extent that it does occur, it is disproportionately likely among desert pastoralists (while rain forest dwellers are atypically likely to be polytheistic). This makes sense. Deserts teach tough, singular things, a world reduced to simple, desiccated, furnace-blasted basics that are approached with a deep fatalism. “I am the Lord your God” and “There is but one god and his name is Allah” and “There will be no gods before me”— dictates like these proliferate (...) In contrast, think of tropical rain forest, teeming with life, where you can find more species of ants on a single tree than in all of Britain. Letting a hundred deities bloom in equilibrium must seem the most natural thing in the world." (Cap. 9)
“That when it comes to empathy and compassion, rich people tend to suck (..) Across the socioeconomic spectrum, on the average, the wealthier people are, the less empathy they report for people in distress and the less compassionately they act (..) (a) wealthier people (as assessed by the cost of the car they were driving) are less likely than poor people to stop for pedestrians at crosswalks; (b) suppose there’s a bowl of candy in the lab; invite test subjects, after they finish doing some task, to grab some candy on the way out, telling them that whatever’s left over will be given to some kids—the wealthier take more candy. (..) Make people feel wealthy, and they take more candy from children. What explains this pattern? (..) wealthier people are more likely to endorse greed as being good, to view the class system as fair and meritocratic, and to view their success as an act of independence — all great ways to decide that someone else’s distress is beneath your notice or concern.” (Cap. 12)
“But Pinker failed to take things one logical step further—also correcting for differing durations of events. Thus he compares the half dozen years of World War II with, for example, twelve centuries of the Mideast slave trade and four centuries of Native American genocide. When corrected for duration as well as total world population, the top ten [of world ever conflicts] now include World War II (number one), World War I (number three), the Russian Civil War (number eight), Mao (number ten), and an event that didn’t even make Pinker’s original list, the Rwandan genocide (number seven), where 700,000 people were killed in a hundred days." (Cap. 17)
Contudo, e apesar de tantos e tantos estudos, a verdade é que determinar o comportamento humano, as suas razões ou efeitos continua a ser imensamente complexo, e por isso termino com a grande conclusão do livro, que para mim é inspiradora:
If you had to boil this book down to a single phrase, it would be “It’s complicated.” Nothing seems to cause anything; instead everything just modulates something else. Scientists keep saying, “We used to think X, but now we realize that...” Fixing one thing often messes up ten more, as the law of unintended consequences reigns. On any big, important issue it seems like 51 percent of the scientific studies conclude one thing, and 49 percent conclude the opposite. And so on. Eventually it can seem hopeless that you can actually fix something, can make things better. But we have no choice but to try. And if you are reading this, you are probably ideally suited to do so. You’ve amply proven you have intellectual tenacity. You probably also have running water, a home, adequate calories, and low odds of festering with a bad parasitic disease. You probably don’t have to worry about Ebola virus, warlords, or being invisible in your world. And you’ve been educated. In other words, you’re one of the lucky humans. So try.
Finally, you don’t have to choose between being scientific and being compassionate.
No final do livro, no Epílogo, Sapolsky lista um conjunto de grandes conclusões, cerca de 30, das quais opto por destacar 5:

  • “Repeatedly, biological factors (e.g., hormones) don’t so much cause a behavior as modulate and sensitize, lowering thresholds for environmental stimuli to cause it.”
  • “Cognition and affect always interact. What’s interesting is when one dominates.”
  • “Adolescence shows us that the most interesting part of the brain evolved to be shaped minimally by genes and maximally by experience; that’s how we learn—context, context, context.”
  • “Often we’re more about the anticipation and pursuit of pleasure than about the experience of it.”
  • “We implicitly divide the world into Us and Them, and prefer the former. We are easily manipulated, even subliminally and within seconds, as to who counts as each.”

O livro já foi editado em Portugal pela Temas & Debates, sob o título "Comportamento: A Biologia Humana No Nosso Melhor e Pior".

outubro 31, 2019

Autoajuda para artistas?

"The Artist's Way: A Spiritual Path To Higher Creativity" (1992) é um livro muito problemático porque contém ideias muito interessantes misturadas com ideias muito censuráveis. Claramente que apelando ao nosso sentido crítico qualquer um pode extrair a parte boa e negligenciar a má, contudo é preciso ter algum arcaboiço de experiência de vida para compreender os problemas do que vai sendo apresentado, o que não acontecerá com alguém até aos vinte e poucos anos. Isto torna-se ainda mais problemático quando o livro serve exatamente melhor alguém em crescimento, alguém em busca do seu caminho, com necessidade de alguém que lhe fale daquilo que sente e que lhe diga que não está sozinho. Em parte, quase me atreveria a dizer que para quem está na bifurcação das escolhas de futuro profissional, o livro pode ser todo ele bastante interessante, mesmo o lado mau, já que ele funciona como um garante extra de motivação para essa escolha. Contudo, considero que deixar-se seduzir por este tipo de discurso, apesar de poder ajudar nessa fase, pode vir a trazer bastantes dissabores, mais à frente, quando se perceber que a realidade é distinta daquela aqui apresentada.


Vou elencar alguns dos elementos imensamente positivos e relevantes para quem pretende seguir uma carreira artística, seguido dos vários problemas enunciados ao longo do discurso:

Lado Positivo e Criativo

  • Proposta de escrita de "morning pages" (todos os dias de manhã escrever 3 páginas do que nos vier à cabeça, para alguns isto já acontece com o Diário, para outros com um blog...)
  • Proposta de escrever a partir do nosso passado, a partir de sonhos não realizados, de gostos e preferências de criança, de objetos espaços e locais que falam ao nosso Eu.
  • Proposta de escrever sobre vidas imaginárias que gostaríamos de ter vivido.
  • Todo o modo como trabalha os bloqueios criativos, especialmente os medos e a baixa autoestima para garantir a criação de espaços e tempos criativos, tal como parar de nos recriminar, de nos culpar, queixar ou questionar a capacidade de fazer.

Lado Problemático

Para além de ser um livro de autoajuda, vem ainda disfarçado de livro de terapia, o que acentua o problema destes livros que se baseiam exclusivamente na experiência pessoal dos autores, suportados em mero anedotário, não corroborados por quaisquer estudos. Funcionará muito bem para pessoas que se enquadrem no tipo de personalidade e experiência de vida da autora, mas dirá muito pouco a uma grande parte de leitores. Alguns dos exemplos problemáticos que esta abordagem nos dá:

  • Uma visão demasiado assente em princípios teológicos, disfarçados pelos conceitos do movimento New Age.
  • Uma visão demasiado egocêntrica, por vezes quase a roçar o Objetivismo de Ayn Rand 
  • Demasiada ingenuidade (ou de sobranceria) quanto às definições da Arte, agravando-se na definição do Artista.

Se querem um livro sobre como desenvolverem-se como artistas, não posso deixar de recomendar vivamente o livro de Stephen King “On Writing: A Memoir of the Craft” (2000), ainda que baseado na experiência do autor, resulta de um método aplicado durante décadas e com largos frutos, não havendo lugar a justificações transcendentes. O que é feito neste livro é a tradução em texto de um processo criativo, o que permite a qualquer pessoa aprender pela imitação, sem espaço para qualquer autopiedade.

Por outro lado, e agora falando em concreto das pessoas, porque isso é também relevante, já que a autora faz questão de trazer a sua vida pessoal para o centro da cena, a verdade é que pesquisando a vida e obra de Julia Cameron, não existe aquilo que à partida pareceria existir, ou seja, uma vida de produções artísticas, nem grandes nem pequenas, apenas uma mão cheia, sendo a coisa mais importante um episódio da série Miami Vice, e o casamento de um ano com Martin Scorsese. Cameron escreveu mais de 20 livros, mas todos após o sucesso deste, e todos a falar destas mesmas coisas. Ou seja, seguir Cameron não é um processo de imitação do processo de desenvolvimento de um artista, mas antes ouvir boas palavras de incentivo à persistência. No fundo Cameron tornou-se uma guru da autoajuda para iniciantes ou desejosos de se tornarem artistas, e isso também explica muito das discussões em sua defesa que encontramos na net.

maio 19, 2019

La Storia (1974)

Adorei o tratamento do interior da personagem principal, Ida, principalmente as primeiras 100 páginas, é delicioso. Assim como, mais a frente, tudo aquilo que envolve Ida e os filhos. Ela, eles, e a suas relações, seus medos e anseios, assim como Roma e os mundos criados pela imaginação deles, é tudo soberbo, sublime. Morante tem uma capacidade extraordinária para metaforizar os sentires, que são depois apresentados por uma escrita elegante, de elevada elaboração sem nunca se deixar levar em excessos de forma. Se tivesse permanecido no nível dessas primeiras 100 páginas, teria entrado diretamente para a minha lista de livros de sempre, o problema é que à medida que vamos avançando os problemas vão-se avolumando, muito por força das idiossincrasias da autora, e que passo listar:



— Inúmeras descrições de sonhos que não acrescentam nada ao relato. Uma abordagem claramente colada às ideias muito em voga da psicanálise dos anos 1970.
— Personagens com capacidades supranaturais, como falar com cães, sem qualquer razão nem motivação.
— Personagens que são aprofundadas e imensamente alongadas, mas que nada acrescentam à narração.

E a mais grave:

— Apresentação da epilepsia como algo maléfico.

Sente-se uma escritora demasiado presa a ideias dos anos 1970, o que não será alheio ao imenso sucesso do livro em Itália, tendo vendido mais de meio milhão de exemplares quando saiu, apesar da crítica não lhe ter sido favorável. Umberto Eco diria mesmo: "Talvez um dia venhamos a perceber que o romance aparentemente popular, era na verdade uma obra culta, muito meta-literária, quem sabe..." Apesar da crítica desfavorável, e do quase esquecimento da obra, ela marca presença na conceituada lista de 100 Obras do grupo do livro norueguês, criada em 2002.

Do meu lado, acredito que a popularidade do livro se deve a dois elementos: um histórico e sentimental; o outro de posicionamento político. O livro retrata a Itália no período do fascismo seguido do nazismo, entregando uma visão do interior de Roma em tempo de guerra e ocupação, que funciona como registo e ao mesmo tempo, pela forma como está escrito, parece transportar-nos para dentro dessa altura com imensa força. Por outro lado, Morante apresenta uma crítica política devastadora contra o capitalismo mas também contra o comunismo, parecendo colocar-se ao centro, que como sabemos é a área mais popular na política. Por causa disso acabaria por afastar dela alguns dos conceituados artistas italianos dessa época (ex. Pasolini), contudo eu não diria que Morante defende um centro político, apesar de algumas críticas apresentadas à anarquia, ao longo de todo o livro, são várias as vezes em que o movimento surge como o último reduto possível para a autora.

Libertação de Roma em 1944 pelos Aliados

Morante teve uma vida algo atribulada, sempre mergulhada em depressões, com vários suicídios no seu caminho, tendo ela inclusive tentado pôr fim à sua vida já na reta final. Deixo um excerto de uma carta escrita ao marido Alberto Moravia:
"Se tu soubesses a desordem da minha mente, que mal-grado tudo consigo esconder, e a incerteza que tenho a cada momento, a impressão de esterilidade, a que se junta a paixão deveras estranha e quase inaudita que em diferentes formas me calhou, terias ainda mais pena de mim do que já tens.
Não penses que não te sou grata pela maneira como me tratas e da qual me recordarei sempre. Estou muito mal, não sei se conseguirei tornar a encontrar um equilíbrio em alguma coisa. Queria poder trabalhar verdadeiramente, ou amar verdadeiramente, e seria feliz em dar a alguém ou a alguma coisa tudo aquilo que posso, contanto que a minha vida se cumprisse finalmente e encontrasse descanso no coração."
(fonte)

Ler mais:
Nazismo: ouro e livros, VI

maio 04, 2019

Talento ou motivação para criar?

Quando uma filha (14) ganha um concurso ficamos contentes, imensamente alegres por ela, mas quando ganha um concurso a nível nacional de escrita (criativa em inglês), que descobrimos apenas que ela participou quando soubemos que ganhou, além de nos fazer sentir felizes, questiona-nos: como e porquê? Não podendo deter-me no artefacto, foi escrito na hora do concurso em resposta ao tema e à mão e por isso não o pude ainda ler, detenho-me então sobre o seu percurso, não meramente escolar, mas essencialmente no ambiente que lhe foi proporcionado. Muito rapidamente me dou conta de algo que já há algum tempo vinha desmontando sobre a criação de talentos, não basta o ambiente social, nem sequer o investimento e trabalho árduo. Existe algo mais.


Nos últimos anos tenho-me dedicado a tentar compreender o modo como se criam os chamados talentos, no sentido de compreender a motivação e envolvimento humanos. Trabalho com media interativos, e por isso tenho como objeto central da minha investigação compreender o modo como o ser humano se envolve ou engaja com a realidade e os outros, descobrir o que é necessário para convencer alguém a agir, a sair da sua passividade do mero consumir para interagir. Dos estudos que fui lendo, notei uma ênfase enorme na necessidade de esforço e trabalho, relatados em análises de grandes nomes das mais diversas áreas, desde o Cristiano Ronaldo a Pele, passando por Kournikova, mas também Avicii ou Lady Gaga, passando pelas estrelas criativas do cinema romeno Cristian Mungiu ou Cristi Piu, ou inovadores tecnológicos como Bill Gates e Steve Jobs, ou ainda nomes maiores como Mozart ou Proust [1, 2, 3, 4].

A ideia que passa, no final de entrarmos nestes universos de desmontagem académica dos processos de formação de talento, é de que é tudo criado por nós, que existe uma fórmula que podemos seguir para desenvolver qualquer talento, a ponto de podermos concluir que pode ser atingido por qualquer ser-humano desde que se esforce para tal. Mas em todos esses estudos fui sempre apontando um detalhe, que parece menor, mas é fundamental, a motivação intrínseca. Aquilo que nos move internamente. Não estou a falar do célebre “jeito”, menos ainda “dom”, mas de motivação para investir horas diárias a chutar numa bola, a programar, ou a escrever, porque todos os exemplos dados acima tiveram isso, nenhum deles foi formatado para ser o que é, foram eles que foram sempre além daquilo que o ambiente lhes pedia, porque queriam mais. Ou seja, não nascemos com um dom para ser cantores ou escritores, mas nascemos com inclinações que nos predispõem a sacrificar tudo o resto em nome daquilo que mais gostamos.

O exemplo que tenho em casa mostra bem isso. Claramente que é uma miúda privilegiada, com acesso a centenas e centenas de livros espalhados por toda a casa, assim como centenas de DVD e videojogos, ao que se acrescentam vários serviços de conteúdos online na televisão, consolas e computador. Mas tem as suas inclinações que a separam totalmente do irmão (10), que tem acesso exatamente ao mesmo entorno material e social. Adora cinema e séries mas não gosta de jogos de mestria ou abstratos, é boa aluna, mas não é brilhante, não se colocando ao lado das suas colegas que correm as pautas a cincos. Se os mando continuamente ler aos dois, já que os ecrãs são a sua maior perdição, ela vai lendo vários livros ao longo do ano, enquanto ele parece estar sempre a fazer provas de superação sempre que vai ler, a única coisa que vejo capaz de agarrar o seu foco, até agora, tem sido os jogos, digitais ou físicos.

Ela não lê desenfreadamente, pois por uma qualquer razão só gosta de ler quando vai para a cama à noite. Ainda ontem lhe perguntava pelo Harry Potter, só leu até ao 5º volume, por outro lado, viu os 8 filmes provavelmente mais de meia-dúzia de vezes. Do mesmo modo, leu ainda apenas os primeiros quatro livros do Game of Thrones, mas está quase a acabar a série. É alguém que adora histórias, independentemente do medium. Começou a ver longas-metragens completas da Disney aos 2 anos, enquanto o irmão, já com 10 anos, continua a perder o interesse nos filmes antes de chegarem ao fim. Quando era mais pequena levava-a a eventos com performers que contavam histórias e ela deliciava-se. E isto é talvez aquilo que vem inscrito na sua motivação, o universo das histórias, contadas, visualizadas, escritas e imaginadas. Não fomos nós em casa que lhe dissemos que as histórias eram relevantes, é algo que a atrai, que a motiva, que puxa pela sua curiosidade e a faz mover. Agora, claramente que precisa de alguém que a vá guiando que lhe mostre a diversidade criativa existente, mas mais do que isso, que existe algo para além do mero consumo, que ela também pode ser parte desse mundo de criação, e isto tem sido algo para o qual a mãe tem dado o maior contributo cá em casa. Entretanto, do que conseguimos perceber, tem vindo a dar os seus passos, mas tudo no segredo do seu quarto e dos seus cadernos pessoais, desconhecendo nós que qualidades ou fragilidades possui, mas a julgar por este concurso, parece estar a dar alguns frutos.

Desta pequena súmula volto a retirar o essencial daquilo que considero ser o papel principal da Escola, ajudar as crianças a encontrarem o seu próprio filão interior. O que gostam, como se vêem, o que os move e demove. São muitas as disciplinas que se ensinam na escola, e eles não precisam de ser bons em todas, menos ainda excelentes, e por isso talvez devessem ser ainda mais as disciplinas, as áreas abordadas, dada a amplitude de possibilidades de realização que o mundo complexo em que vivemos nos proporciona, ou pelo menos abrir-se mais o leque em termos de valências extra-curriculares. É por isso que além do que a escola oferece, lhe proporcionamos ainda o acesso a escolas de dança (ballet) e música (orgão). Acredito que é na frequência da multidisciplinaridade que as crianças e jovens poderão encontrar o seu modo, a sua força intrínseca, criar o seu espaço de ação interior e exterior, e virem a ser capazes de agir no seio dos outros de modo consequente.

Deixo ainda uma nota de agradecimento à escola e aos professores portugueses, que a sociedade teima em desprezar, em apontar o dedo atirando farpas de que tudo está sempre igual a quando por lá passaram. Mas a escola de hoje é diferente, porque os professores de hoje têm uma formação muitíssimo superior à que tinham os nossos professores. São muitas, imensas as atividades que todos estes professores criam e gerem ao longo do ano em cada escola, de Norte a Sul, desde os concursos de escrita criativa, a debates argumentativos, a construção de robôs, e modelação e impressão 3D, passando por programação de jogos, simuladores, jornais escolares, reportagens, olimpíadas de matemática, experiências, audições, intercâmbios, exposições, etc. etc. Claro que a maior parte de tudo isto está nas mãos dos professores individualmente, são eles sozinhos que retiram do tempo da sua família para dedicar sábados e fins de dia para que os alunos tenham mais do que aquilo que vem inscrito nas matrizes estandardizadas de conteúdos. Provavelmente precisamos de mudar essas matrizes, precisamos de uma matriz menos sobrecarregada e de fazer dos projetos individuais dos professores projetos de escola, e julgo que de certo modo é isso que está a ser feito com a chamada Autonomia e Flexibilidade Curricular, aguardemos pelos seus frutos. E bem-hajam.


[1] O Talento é Sobrestimado, 2012
[2] Outliers, 2011
[3] Código do Talento, 2014
[4] Necessidades e Realização Pessoal, 2018

março 08, 2019

Multimodalidade e expressividade nos videojogos

Acaba de ser publicado na revista científica Observatório o artigo "Multimodality and Expressivity in Videogames" no qual abordo a multimodalidade e expressividade nos jogos digitais, sob a perspectiva da comunicação audiovisual, discutindo dimensões críticas em relação à alfabetização e experiência dos videojogos. Começo por apresentar uma visão geral sobre como criamos sentido a partir dos media audiovisuais, para depois enquadrar o foco na natureza cognitiva multimodal dos jogos digitais. Segue-se uma discussão sobre as razões que fazem com que os jogos digitais se tenham tornando mais relevantes do que o vídeo, discutindo as diferenças dos dois meios em termos de aprendizagem, nomeadamente na distinção entre as representações vicárias e enativas.


Ao longo da discussão, realizada no artigo, dou conta das novas possibilidades abertas pela multimedia e jogos digitais, tanto na integração de diferentes modos, como pela oferta de um novo modo, a interatividade, que, como argumentou Bruner, abre novos espaços de representação pela enatividade. Além disso, demonstro como os jogos aproveitam a motivação para extrair comportamentos ativos dos jogadores, ou seja, as ações solicitadas pelo design de jogo que garantem o engajamento e interesse em continuar a jogar para além das abordagens simplistas (estímulos extrínsecos).

Aceder ao artigo completo que se encontra em acesso aberto.

fevereiro 04, 2019

Logoterapia por Viktor Frankl

Viktor Frankl nasceu em Viena, 1905, de uma família de judeus. Com apenas 16 anos escreveu um ensaio sobre Freud, que lhe enviou, e este considerou digno de publicação no Journal of Psychoanalysis. Tendo estudado com Freud e Adler, deixaria de os seguir mais tarde. De 1933 a 1937 fez a sua residência em neurologia e psiquiatria, centrado nos tópicos da depressão e suicídio, tendo sido responsável pelo "Selbstmörderpavillon", o "pavilhão dos suicidas" onde tratou milhares de pacientes com tendências suicidas. Em 1942 foi deportado para o gueto de Theresienstadt na antiga Checoslováquia, uma espécie de ante-câmara dos campos de exterminação e ao mesmo tempo fachada modelo para enganar as autoridades internacionais do tratamento que estava a ser dado aos judeus. Chega a Auschwitz em Outubro 1944, levando consigo a sua única posse, um manuscrito em que traçava os primeiros princípios de uma teoria por si desenvolvida, a Logoterapia. É transportado para o campo de Türkheim em Março 1945, e é libertado em Abril 1945. Esposa, pai, mãe e irmão morrem nos campos, sobrevive a sua irmã.


Frankl tornou-se piscoterapeuta, tendo para o seu trabalho desenvolvido a teorização que denominou de Logoterapia, como tal considerada a "Terceira Escola Vienesa de Psicoterapia", sendo as outras duas, a psicanálise de Freud, e a psicologia de Adler. Como explica Frankl, enquanto a psicanálise se centra na avaliação do passado, no questionamento das razões traumáticas, a logoterapia centra-se no futuro, na busca de razões para continuar a viver. A denominação surge pelo "logos", razão em grego, já que Frankl definia como cerne da sua teoria a busca da razão, ou seja, de "um sentido para a vida". O "sentido da vida" de Frankl diz respeito a cada sujeito individual, não se defendendo qualquer sentido generalizável a todos os sujeitos. A teorização surge agregada a um conceito de Nietzsche, "Will to Power" (vontade de poder), e à máxima "Aquele que tem um motivo para viver pode suportar quase tudo." Este conceito de Nietszche que era usado por Adler, foi transformado por Freud como "Will to Pleasure" (vontade de prazer), e por Frankl "Will to Mean" (vontade de sentido).

A logoterapia assenta em três grandes princípios: a) existe sempre um sentido para a vida, mesmo a mais miserável; b) a motivação principal assenta na vontade de descobrir o sentido da vida; c) nós temos liberdade de encontrar sentido naquilo que fazemos e experienciamos,  mesmo aquando duma situação de enorme sofrimento. Deste modo, Frankl defende na Logoterapia, três métodos para podermos encontrar o sentido das nossas vidas:

(1) criar uma obra ou realizar uma ação;
(2) experimentar algo ou encontrar alguém;
(3) atitude face ao sofrimento inevitável, em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.

Frankl seguiu estes princípios enquanto preso nos campos de concentração, que acabariam por o salvar em momentos de encruzilhada e dilema. Muitos pereceram e ele sairia vivo dos campos, embora como diz, por sorte do acaso. Ainda assim, se as decisões que tomou o levaram a ter sorte, o mais importante não é ter tido essa sorte, mas antes ter decidido por si como fazer, e não se ter deixado condicionar pelas pressões e aparências em cada momento. O livro divide-se numa primeira parte que relata a sua passagem pelos campos, e uma segunda que dá conta destes princípios. Na primeira parte, Frankl não nos dá nada de muito novo, o que ele próprio admite, e se refreia mesmo de detalhar, mas reflete sobre alguns dos comportamentos no campo, que acabam dirigindo-se ao âmago desta teorização, e de que deixo aqui algumas passagens:
“On entering camp a change took place in the minds of the men. With the end of uncertainty there came the uncertainty of the end. It was impossible to foresee whether or when, if at all, this form of existence would end.”
“Former prisoners, when writing or relating their experiences, agree that the most depressing influence of all was that a prisoner could not know how long his term of imprisonment would be (..) A well-known research psychologist has pointed out that life in a concentration camp could be called a “provisional existence.”
“A man who could not see the end of his “provisional existence” was not able to aim at an ultimate goal in life. He ceased living for the future, in contrast to a man in normal life. Therefore the whole structure of his inner life changed; signs of decay set in which we know from other areas of life. The unemployed worker, for example, is in a similar position. His existence has become provisional and in a certain sense he cannot live for the future or aim at a goal. Research work done on unemployed miners has shown that they suffer from a peculiar sort of deformed time—inner time—which is a result of their unemployed state. Prisoners, too, suffered from this strange “time-experience.” In camp, a small time unit, a day, for example, filled with hourly tortures and fatigue, appeared endless.”
“In this connection we are reminded of Thomas Mann’s The Magic Mountain, which contains some very pointed psychological remarks. Mann studies the spiritual development of people who are in an analogous psychological position, i.e., tuberculosis patients in a sanatorium who also know no date for their release. They experience a similar existence—without a future and without a goal.”
“One of the prisoners, who on his arrival marched with a long column of new inmates from the station to the camp, told me later that he had felt as though he were marching at his own funeral. His life had seemed to him absolutely without future. He regarded it as over and done, as if he had already died. This feeling of lifelessness was intensified by other causes: in time, it was the limitlessness of the term of imprisonment which was most acutely felt; in space, the narrow limits of the prison. Anything outside the barbed wire became remote—out of reach and, in a way, unreal. The events and the people outside, all the normal life there, had a ghostly aspect for the prisoner.”
“The prisoner who had lost faith in the future—his future—was doomed. With his loss of belief in the future, he also lost his spiritual hold; he let himself decline and became subject to mental and physical decay.”
Um último ponto sobre a logoterapia, e diferença face aos sistemas de auto-ajuda, é que esta se afasta completamente da ideia de se objetivar à felicidade. Na logoterapia, o sofrimento é visto como algo inevitável no ato de estar vivo, e a felicidade deve ser vista apenas como consequência do encontrar de um sentido ou significado da vida, não devendo ser procurada per se, já que o simples ato de a procurar implica a infelicidade de a não conseguir atingir. Encontrar uma razão, conduz a uma felicidade que logo termina para se iniciar nova busca de sentido. O significado não existe como absoluto, mas como etapas. O que verdadeiramente importa é o caminho, o processo, a busca pelo sentido, a tentativa de definir o sentido, e não o fim. Frankl definiu o significado da sua vida como, "ajudar os outros a encontrarem o sentido das suas vidas".

O livro é bastante curto, o relato de memórias rápido ainda que bastante atmosférico. A segunda parte mais teórica é ainda mais curta. Fica alguma sensação de falta, de aprofundamento, mas o contacto com o livro e a logoterapia é per se suficienente para justificar o contacto com o livro e a vida de Frankl.

dezembro 24, 2018

“Gris”, experiência sensorial

Desconfiei da beleza visual de “Gris” (2018) porque foram inúmeras as vezes, no passado, em que tal se revelou mera superfície sem qualquer substrato. Algumas das resenhas que li inclinaram-me mesmo a deixá-lo para jogar apenas em 2019. No entanto, algo fez com que o comprasse na Steam junto com mais alguns jogos nas promoções deste Natal. Por isso, se sabia que a ilustração me ia deslumbrar, esperava pouco do resto, nomeadamente acreditava que a jogabilidade seria fraca, e que por isso o fluxo seria um tanto arrastado, tudo muito suportado no campo visual apenas. Nada poderia estar mais errado, “Gris” é um exercício de completo domínio de todas as artes envolvidas na criação de um artefacto interativo: da ilustração à interação, passando pela câmara, animação, som e música.



Sendo um jogo de plataformas, não se espere nada que o relacione com outros plataformas deste ano, seja “Celeste” (2018) ou menos ainda “Iconoclasts” (2018) ou “Dead Cells” (2018). “Gris” é uma experiência singular, não existe nada que se lhe assemelhe, é uma obra marcada por uma intensa direção artística. Posso talvez invocar, no plano visual, “Child of Light” (2014), e no campo experiencial, do fluxo interativo, o trabalho de Jenova Chen, “Journey” (2012). Mas se Chen é um visionário do fluxo de interação, Conrad Roset é apenas um artista de aguarela, o que quer dizer que “Gris” não é uma obra de uma pessoa apenas.

A equipa por detrás de “Gris” é composta por três pessoas, todas baseadas em Barcelona. O artista Conrad Roset (1984), que já expôs um pouco por todo o mundo, desde o MoMA em Virginia, ao Show Studio em Londres, passando pela Steven Kasher Gallery em Nova Iorque ou TiposInfames em Madrid, imensamente comissionado para trabalhos de ilustração, possui um significativo número de seguidores. Desenvolveu um estilo próprio, facilmente reconhecível, assente na aguarela colorida em contraste com fortes formas a tinta preta, socorrendo-se bastante da silhueta e sensibilidade femininas como motivação. Em segundo, temos Roger Mendoza que trabalhou na última década na indústria AAA, fazendo programação de IA e gameplay, essencialmente para a série Assassin’s Creed, tendo trabalho no "Assassin’s Creed III" (2012), "Assassin’s Creed IV" (2013) e "Assassin’s Creed: Syndicate" (2015). E por fim, Adrian Cuevas, outro especialista em tecnologia e programação, que também veio dos AAA, onde esteve envolvido em “Far Cry 3” (2012), “Tom Clancy's Rainbow Six: Siege” (2015), e “Hitman: The Complete First Season” (2017). Mendonza e Cuevas resolveram deixar os AAA, e em 2016 juntaram-se a Roset para criar o Nomada Studio em Barcelona. Com dois especialistas em tecnologia, treinados ao mais alto nível para garantir a fluidez do gameplay, e um especialista em arte visual, algo de qualidade teria de ser possível criar.




As competências que suportam a criação de “Gris” explicam porque a ideia que tinha, do indie belo mas gorado, não aconteceu. Roset tinha uma visão criativa, mas Mendoza e Cuevas sabiam como lhe dar forma, como a sustentar ao longo de 5 horas, e contribuir para o densificar dessa visão. Quando se entra em "Gris" e começamos a jogar, mesmo não sabendo nada sobre as pessoas por detrás da obra, sentimos de imediato um trabalho altamente apurado, refinado e polido por alguém que sabe muito bem o que está a fazer. Além disso, estes tiveram ainda a humildade de procurar quem sabia mais do que eles, em áreas como a animação, o irmão de Roset foi buscar Adrian Miguel, que já tinha trabalhado em "Invizimals", e para o sound design, Mendoza trouxe Ruben Rincon, que já tinha trabalhado para “Assassin’s Creed III” e para o português “Between Me and the Night” (2016). Para coroar todo este trabalho, e encorpar completamente as aguarelas de Roset, posso dizer que a entrada de Berlinist, banda composta por Gemma Gamarra, Luigi Gervasi e Marco Albano e responsável pela banda sonora, eleva o jogo em vários patamares experienciais. Os Berlinist trabalham bastante no campo ambiental e atmosférico, em certos momentos pareceu-me existir um traço futurista, a fazer lembrar a banda sonora de "Blade Runner 2049" (2017) de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer.

Pegando neste último ponto, o da experiência, é nele que “Gris” mais investe. Na minha modelação do Design de Experiência tenho dividido o mesmo em três camadas — funcional, sensorial e significado. “Gris” não está propriamente focado no significado, em contar uma história, “Gris” desenvolve-se completamente no plano sensorial. Ou seja, “Gris” trabalha a interação pela forma, busca impactar e transportar emocionalmente o jogador, mais do que fazê-lo pensar nesta ou naquela ideia. Assim como a narrativa não é o fundamento, o jogo também não o é, ele está lá como está a história, mas são ambos suporte. O foco são mesmo as imagens e a música que juntos garantem uma experiência audiovisual interativa única, suficientemente abstrata para que possamos preenchê-la com as nossas experiências, deixando-nos guiar pelo pautamento emocional que nos vai sendo imposto.