Este mapa de conceitos explica muitos dos problemas do livro de "Enlightenment Now" (2018). No entanto se Pinker se coloca do lado do positivismo para defender o seu modo de ver, quando lhe interessa passa para o lado do interpretivismo, nomeadamente no que toca a atacar académicos como Bauman ou Foucault ou filósofos como Nietzsche.
No capítulo sobre Ciência, Pinker ataca diretamente Bauman e Foucault, rotulando-os de pós-modernos, anti-verdade, anti-ciência, anti-dados, tudo rótulos que não colam com nenhum dos autores, mas de que Pinker abusa para assim poder agregar valor ao trumpismo, populismo, conspiracionismo, etc. etc. O pior é que ao fazê-lo, rotulou esses dois autores com estes mesmos rótulos, o que é do muito ponto de vista, não um erro grosseiro, mas uma filha-da-putice (peço desculpa pela linguagem). É inadmissível que Pinker para defender as suas ideias, atire para a lama dois dos mais respeitados pensadores das ciências sociais, duas mentes dotadas de uma capacidade visionária impar. Não vou defender Foucault, que tem andado na boca de muitos, mas sobre o ataque a Bauman tenho de falar.
Pinker não compreendeu, ou não quis compreender Zygmunt Bauman. Optou por simplesmente pegar nele e metê-lo no saco duvidoso em que estavam Adorno e Horkheimer, levando de arrasto o próprio Foucault. Ao fazê-lo cometeu um erro que destruiu tudo o que tinha para dizer. Adorno era um filósofo da Estética, não era sociólogo, ainda assim não se pode dizer que tenha só dito banalidades, muito do seu discurso de ataque à Arte Moderna na relação com o Nazismo faz algum sentido, claro que no final as suas teorias valem o que valem, falo extensivamente sobre isto na análise do “Doutor Fausto” (1947) de Mann (análise). Mas Bauman não era crítico de arte, foi um dos mais importantes sociólogos do século XX, judeu-polaco fugido dos Nazis para União Soviética, o seu impacto cresceu durante toda a segunda metade do século, recebendo as mais diversas premiações e condecorações científicas. Pinker comete um erro que vejo amiúde, misturar a discussão sobre Arte pós-moderna com a análise sociológica que define o tecido social como pós-modernista.
Vejamos então como para defender a sua visão otimista Pinker opta por dizer que a ciência não trouxe mais guerra, antes o contrário, e por isso não aceita que Bauman veja os nazis, o Holocausto, como fruto do Iluminismo. Ora, em primeiro lugar, isso mesmo diz Bauman, a evolução científica trouxe mais paz, mas isso não serve para eliminar a ciência da leitura, antes serve sim para tornar o Holocausto uma aberração ainda maior. Pinker do alto do seu racional lógico é incapaz de aceitar a anomalia à regra. Repare-se então como o tamanho e a brutalidade do que foi feito no Holocausto não é igual a nada na História anterior. Desde logo aqui seria preciso questionar-nos, então porquê agora? Mas Pinker, em vez de questionar, atira para o lado, do mesmo modo como faz noutros assuntos ao longo do livro, e menoriza mesmo, dizendo sobre o Holocausto apenas e só que racismo sempre existiu.
É preciso ler Bauman, ler como ele desmonta toda a máquina Nazi desde a burocracia à criação de rotina e desumanização, todo o modo como se constrói o distanciamento moral do ato violento. Nada disto era possível noutro tempo, porque nunca antes houvera civilizações tão racionalmente avançadas e organizadas para criar uma máquina que funcionasse sem controlo central, em cadeias autónomas. Repare-se como passados 75 anos não se sabe se a ordem para uma Solução Final chegou alguma vez a existir, pelo menos registos escritos não existem (ver “Shoa” (1985) análise), porque talvez a ordem nunca tenha mesmo sido proferida, mas tenha resultado de um conjunto de ideias, ordens, pressões, que se foram amontoando e culminaram em algo que provavelmente ninguém conseguiria sequer imaginar enquanto sujeito humano normal, e sim, a maior parte daqueles alemães eram pessoas normais, empáticas, com aversão à violência, mas o sistema conseguiu furar essas barreiras do humano. Repare-se ainda no modo como a racionalização científica atuou sobre a ideia de raça, não pela simples ideia da diferenciação de raças, mas pela lógica e causalidade, como fica explanado num excerto de Goebbels que Bauman cita:
"There is no hope of leading the Jews back into the fold of civilized humanity by exceptional punishments. They will forever remain Jews, just as we are forever members of the Aryan race." GoebbelsOu seja, o racional está ali, não há como transformar judeus em arianos, por isso só nos resta aniquilá-los. A razão é lógica, só a compaixão poderia derrubar este racional, algo completamente inaceitável num sistema brutalmente lógico como o Nazi. Veja-se como as pessoas foram selecionadas para ser levadas para os campos, no caso de judeus regulares era direto, mas para aqueles que tinham casado fora do reduto judeu, criou-se uma fórmula de cálculo das gerações até às quais se contava o parentesco e a presença de sangue judeu. Isto não é algo que um grupo de simples racistas se lembrasse de fazer, isto é feito assim para garantir a solidez da razão lógica, inquestionável, justificando plenamente a ação (leia-se “La Storia” (1974) (análise)).
É muito triste ver Pinker a desancar em Bauman e Foucault, dizendo barbaridades como o facto de eles não utilizarem dados quantitativos, ou de se dedicarem a meras abstrações (sendo a abstração o reino por excelência do racionalismo e positivismo) e depois pondo-os no mesmo saco de comentadores de jornais, e extremistas que atacam a ciência a partir do seu mero fervor religioso, ou simplesmente, porque financeiramente não lhes dá jeito, como no caso dos Republicanos e o aquecimento global.
Mas não posso dizer que me tenha surpreendido totalmente, Pinker é psicólogo, mas o seu discurso está completamente imbuído de positivismo, mesmo que ele vá dizendo amiúde que a ciência é um contínuo refinar de hipótese e teses, amiúde vai dizendo que a ciência é a última verdade. Ora um posicionamento destes é inaceitável. Não podemos querer tudo, não podemos querer fazer da ciência religião e política, porque ela nunca quis tal lugar. Sim, vivemos tempos de Humanismo, em que as religiões caíram e resta-nos a ciência, mas usemos a ciência para nos ajudar, não para nos controlar. Aliás, é isso mesmo que se discute em “Doutor Fausto”, o problema da racionalização é que impede o subjetivismo, levado ao extremo seremos todos tão racionais quanto iguais, e nisso a única coisa que poderemos ganhar é o fim da nossa liberdade interior.
No fundo Pinker ataca todos, tanto os que ousam duvidar do discurso científico, como aqueles que duvidam de tudo ou simplesmente são lunáticos, e assim acaba a juntar-se à turba de lunáticos, atirando indiscriminadamente sem olhar a quem. Se alguém ousa falar mal da ciência, deve ser imediatamente excomungado. Esquece Pinker que a ciência só existe enquanto criação humana, não nos foi enviada por nenhuma entidade exterior e divina. Como tal a ciência tanto nos dá a Penicilina como nos dá Hiroshima. Não se pode simplesmente contorcer o discurso, porque se não não estamos a falar de ciência, mas de política, de aniquilação do pensamento daqueles que não podem exercer pensamento crítico.
No fundo, falta a Pinker tudo aquilo que ele passa mais de metade do livro a pregar: abertura suficiente para reconhecer que só podemos viver em paz se nos aceitarmos uns aos outros nos diferentes modos de viver. Porque o progresso científico sendo um ganho fenomenal para a raça humana, deve evoluir ao ritmo que for possível, e não ao ritmo que teoricamente, ou racionalmente, nos pareceria desejável. Para fechar, deixo um apanhado do último capítulo, que entretanto tinha colado no Facebook, e que julgo falar por si, sobre o que podem esperar deste livro, em termos de cientificidade:
“If one wanted to single out a thinker who represented the opposite of humanism (indeed, of pretty much every argument in this book), one couldn’t do better than the German philologist Friedrich Nietzsche”Atente-se na irracionalidade dos pesos colocados nesta interpretação, pois aqui Pinker esquece completamente a sua preciosa busca pela verdade, pelos dados de suporte. Para Pinker, um movimento de transformação global da sociedade, em que a ciência tudo revoluciona pela força da tecnologia colocada ao serviço da industrialização, não tem qualquer relação com o Holocausto. Mas um simples professor universitário que passou por várias crises de insanidade, pode perfeitamente ser o responsável pelas guerras mais devastadoras até à data.
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“Nietzsche helped inspire the romantic militarism that led to the First World War and the fascism that led to the Second.”
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“Nietzsche posthumously became the Nazis’ court philosopher”
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“The link to Italian Fascism is even more direct”
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“The connections between Nietzsche’s ideas and the megadeath movements of the 20th century are obvious enough: a glorification of violence and power, an eagerness to raze the institutions of liberal democracy, a contempt for most of humanity, and a stone-hearted indifference to human life.”
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“So if Nietzsche’s ideas are repellent and incoherent, why do they have so many fans? (..) A sample: W. H. Auden, Albert Camus, André Gide, D. H. Lawrence, Jack London, Thomas Mann, Yukio Mishima, Eugene O’Neill, William Butler Yeats, Wyndham Lewis, and (with reservations) George Bernard Shaw,”
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“he was a key influence on Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Jacques Derrida, and Michel Foucault, and a godfather to all the intellectual movements of the 20th century that were hostile to science and objectivity, including Existentialism, Critical Theory, Poststructuralism, Deconstructionism, and Postmodernism.”
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“the [Nietzsche] mindset has sat all too well with all too many of them. A surprising number of 20th-century intellectuals and artists have gushed over totalitarian dictators, a syndrome that the intellectual historian Mark Lilla calls tyrannophilia (..) Ezra Pound, Shaw, Yeats, Lewis (..) H. G. Wells (..) Sartre, Beatrice, Sidney Webb, Brecht, W. E. B. Du Bois, Pablo Picasso, Lillian Hellman (..) Foucault, Louis Althusser, Steven Rose, Richard Lewontin (..) Graham Greene, Günter Grass, Norman Mailer, Harold Pinter, Susan Sontag"
Leituras adicionais recomendadas:
. The World's Most Annoying Man, Current Affairs, Maio 2019
. Unenlightened thinking: Steven Pinker’s embarrassing new book is a feeble sermon for rattled liberals, New Stateman, Fevereiro 2018
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