abril 30, 2019

SciMed e a humildade em ciência

Entro na rede à procura de clínicas para fazer um exame de endoscopia, encontro uma perto de casa, entro e vejo que fizeram um vídeo explicativo do processo, acabo de ver o vídeo e como sempre faço, talvez por deformação profissional, vou ao YouTube ver de onde vem o vídeo, quantos o viram, comentaram, e que vídeos o YouTube me sugere mais. Surge um tal de "Dr. Lair Ribeiro - Ozonioterapia", não faço ideia do que seja, mas pelo título parece mais uma medicina alternativa. Começo a ver, invisto vários minutos e começo a pensar que o YouTube se tornou na maior arma de charlatanice da história. Pego no nome do senhor e faço pesquisa, nos primeiros cinco resultados aparece-me uma página do SciMed que me diz que o senhor, médico brasileiro, esteve recentemente em Portugal a debater com Rui Unas no Maluco Beleza. Em dúvida, entro no vídeo do Unas, vejo que se trata de uma entrevista de uma hora e meia, fico boquiaberto. Passo os olhos pelos comentários ao vídeo, só elogios ao senhor Lair!!! Volto ao artigo do SciMed, intitulado "Lair Ribeiro é um Charlatão – Análise Crítica às Suas Afirmações no Programa Maluco Beleza" no qual o médico João Júlio Cerqueira se dispõe a desmontar as falácias de Lair ao longo de um artigo longuíssimo (18 páginas). Se começo concordando, pensando em partilhar o texto para louvar o exemplo e esforço de desmontar falácias, quanto mais vou lendo mais incomodado me vou sentindo, já perto do final só sinto um trago amargo por cada novo parágrafo, até que bato com os olhos nos comentários dos leitores, uma enxurrada de ataques ao João em defesa de Lair, já com discussão xenófoba Brasil-Portugal pelo meio...


O sr. Lair pelos vistos perdeu-se no caminho da medicina, já que em tempos foi um médico de valor, inclusive investigou e publicou quase uma centena de artigos científicos, mas num certo momento da sua carreira algo lhe terá acontecido, porque abandonou a ciência, e começou a dedicar-se "à salvação dos mais necessitados" por meio das medicinas alternativas. Não sabemos se teve alguma experiência paranormal, ou se foi mera vítima da gula charlatã. Mas se o senhor é hoje um charlatão, não deixa de ter grande número de seguidores, tal como tem Edir Macedo, Olavo Carvalho ou Jordan Petersson. São pessoas dotadas de grande carisma, que acreditam estar imbuídas de uma missão, ou então são apenas pessoas despudoradas, capazes de tudo em nome de poder, fama e proveito económico.

Dito isto, não é difícil compreender que se movem ânimos intensos a favor e contra estas personagens. Não são apenas os seus defensores que se jogam na frente e dão o corpo em sua defesa. Todos aqueles que todos os dias trabalham em prol da sociedade, sentem-se de algum modo injustiçados por indivíduos que por graça do seu carisma contribuem apenas para destruir aquilo que vai dando tanto trabalho a criar, e por isso quando podem alinham-se também na primeira fila do pelotão, prontos a fuzilar. O João apresenta-nos um texto de puro fuzilamento. Em defesa do João podemos dizer que apresenta evidência, que desmonta os argumentos contrapondo com factos, reportando a estudos da comunidade internacional, que tornam claro quem tem razão, ou quem está mais próximo da verdade. Contudo, todo esse trabalho é destruído pelo tom do discurso, que por vezes conta mais do que o teor do conteúdo, mais ainda se tratando de esgrima argumentativa. E não adianta falar em falácias, ou conhecer as comuns falácias argumentativas, sem comunicação apropriada as ideias não se sustentam.

Começa logo na imagem usada para o artigo que dá o mote para a chacota que percorre todo o resto do texto. O João ainda começa por dizer que vai fazer uma “análise crítica”, mas logo a seguir inicia com termos como “missa habitual” seguido de “paletes de mentiras”, e ao longo de todo o texto, aqui e ali, vai como que encostando a ponta da faca da espingarda à barriga de Lair — “quem percebe o mínimo de medicina”, “ser evangelizado pelo Lair Ribeiro”, “é uma treta”, “tretólogo”, ”crendice”, “está tão gasto que dói”, “cheirar a mofo“ — ou até puro ad hominem disfarçado com “oligofrenia” e “culto oligofrénico”. Mas vai mais longe, embevecido pela sua luta, e vontade de fuzilar, leva tudo na frente cometendo erros graves como dizer: “Nenhum cientista que se preze cita livros para justificar posições.” Posso até conceder que na sua área não usem, mas a sua área não é toda a ciência. E mais, atacar assim o livro, enquanto objeto central do conhecimento, acaba por só levantar dúvidas à sua argumentação, mais ainda de todos aqueles que não trabalham com ciência e nem sequer sabem o que é um paper. Acrescentando por fim que o João acusa o Lair de se autocitar, vangloriando o Eu em vez da ciência, e depois acaba por ele próprio autocitar-se ao longo do texto várias vezes.


Chegado ao final, pergunto-me: o que retira o João de todo este trabalho, são horas e horas que estão ali (de análise de vídeos, desmontagem de argumentos, composição de imagens e diagramas, pesquisa e escrita)? É capaz de se sentir realizado porque despejou o saco, ventilou, pôs cá para fora toda a irritação de ver a ciência, e o seu trabalho, maltratados. Mas o João já se perguntou se aqueles que seguem o Sr. Lair deixam de o seguir depois de ler o João? A julgar pela discussão nos comentários ao texto do João, é fácil perceber que não. Para que serve então tudo isto?

O que me apraz dizer é algo que não é novo, que fazem falta nos cursos de medicina disciplinas que trabalhem a empatia dos médicos, que os ajudem a colocar-se no lugar do outro, neste caso teria sido muito útil ao João, perceber que ele não está a escrever para o seu Eu. Mas talvez mais importante do que isso, e já que vivemos tempos em que o Japão (já voltou atrás) e o Brasil (espero que volte atrás) querem acabar com os cursos de Filosofia, seria importante que todos os alunos de Medicina, mas não só, tivessem disciplinas de Filosofia, porque a Humildade Científica é o valor mais importante de qualquer aprendizagem científica.

4 comentários:

  1. Nos cursos de medicina actualmente existem várias cadeiras de ética, bioética, comunicação com o doente entre outras. Portanto o último parágrafo não faz sentido e está desfasado da realidade

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    1. Então o problema pode estar na forma como esses conteúdos estão a ser leccionados, ou em última análise, nos próprios alunos.

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  2. A forma de comunicar factos, desvaloriza a veracidade deles?

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    1. A forma de comunicar não perturba a veracidade dos factos comunicados, mas se impede que o outro os compreenda, de nada adianta comunicá-los.

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