julho 23, 2022

O Hotel de Vidro (2020)

“O Hotel de Vidro” surgiu depois do enorme sucesso conseguido com “Station Eleven (2015)”, transformado em série para a HBO. Neste sucessor, Emily St John Mandel continua a oferecer-nos excelência no contar de histórias, ligando personagens, lugares, tempos e eventos numa sucessão que nos agarra e faz virar página atrás de página. Se não existe relação entre as premissas de ambas as obras, o contar de histórias, no tom e ritmo, de emocionalidades suaves, distantes e pausadas aproxima-as tremendamente. Por sua vez, as premissas de ambos tratam temas fortes, no primeiro o pós-apocalipse, neste o colapso financeiro de 2008. Mandel cruza assim um sentimento na forma, do tipo cinema independente — de Hal Hartley ou Jim Jarmusch —, com premissas intensas tipo hollywoodescas, criando uma voz muito própria. Os seus livros não trazem grandes mensagens, não nos comovem em cada página, mas simultaneamente não nos abandonam nem deixam de nos fazer refletir, ficando connosco depois do final. Como se Mandel falasse a partir de uma posição que lhe permite dar a compreender os problemas, mas sentindo não deter qualquer poder para lhes responder. Este sentir surge como parte de uma certa melancolia que olha o mundo como um emaranhado de acontecimentos que se ligam e desligam pelo acaso, sem intenção nem desígnio.



julho 18, 2022

Na Minha Pele, uma série TV

Como se cresce e vai à escola com uma mãe que sofre de desordem bipolar tipo 1 (a mais grave) e um pai alcoólico que não trabalha, em Inglaterra, quando se tem 16 anos? É esta a premissa da série "In My Skin" que cruza comédia-negra com tragédia, e nos obriga a mudar de humor múltiplas vezes ao longo de cada episódio de 30 minutos dos 5 que constituem a série, sem contudo nos darmos conta disso. Esta abordagem narrativa cria um espelho da doença mental e aproxima-nos do interior da personagem principal, que é baseada na vida da criadora da série, Kayleigh Llewellyn.


julho 17, 2022

Biografia de von Neumann (2021)

Ao chegar ao fim de "The Man from the Future: The Visionary Life of John von Neumann" (2021), e tendo em conta a enorme particularidade do intelecto de Von Neumann — aos 6 conseguia fazer divisões com 8 dígitos de cabeça e conversar em grego antigo e latim, aos 8 trabalhava com cálculo diferencial e integral e falava Francês, Inglês e Alemão além do Húngaro, no entretanto leu uma história mundial em 45 volumes e conseguia recitar capítulos inteiros décadas mais tarde —, não consigo deixar de pensar que por mais que endeusemos alguns humanos em particular pelos seus aparentes enormes feitos, o certo de tudo é que estes nada fizeram sozinhos. Ananyo Bhattacharya esquiva-se a falar da pessoa de Von Neumann, centrando-se exclusivamente sobre os seus contributos teóricos. Para esse efeito, trabalha os contributos de Von Neumann para as múltiplas ciências — mecânica quântica, teoria dos jogos, implosão nuclear, arquitetura de computadores e a teoria dos autómatos—, e como esses conduziram no futuro outros a saltos aplicados na história da ciência e tecnologia do século XX. Deste modo Bhattacharya espera demonstrar que Von Neumann previa ou viajava no futuro, contudo, Bhattacharya esquece-se de fazer o mesmo trabalho olhando para o passado, e mais em particular para o lado. Sendo o trabalho de Von Neumann de grande valor, ele não teria existido sem todas as restantes mentes brilhantes com quem se cruzou, de Claude Shannon a Alan Turing, de Einstein a Kurt Gödel, de Erwin Schrödinger a Werner Heisenberg. Este endeusamento pela abstração de ideias pode ser interessante para os colegas das ciências duras, mas eu senti imensa falta do factor humano. Gostaria de ter aprendido mais sobre a pessoa por detrás do modelo usado por Stanley Kubrick para criar Dr. Strangelove, não só pelas profundas contradições morais, mas também para compreender melhor a base dos seus processos criativos.


GoodReads

julho 16, 2022

O Jogo da Linguagem (2022)

“The Language Game” (2022) é mais um importante contributo para a abordagem comportamental da linguagem em detrimento da abordagem inata. Já aqui tinha trazido o trabalho de Daniel L. Everett, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017), assim como "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamim Bergen, ou ainda “Origins of Human Communication” (2008) de Michael Tomasello. A abordagem de Morten H. Christiansen, da U. Cornell e Nick Charter, da U. Warwick, é inovadora, apresentando uma teorização, com base em estudos empíricos, que defende a interação humana como base da linguagem humana, propondo que a produção de linguagem ocorre a partir de jogos de charadas. Cada um de nós procura compreender o outro e pela improvisação fazer-se compreender da melhor forma possível. Quando em face de alguém com quem não partilhamos a mesma língua, partimos para o uso de sons, expressões, gestos, poses, desenhos, construindo charadas que o outro possa chegar a compreender. 

julho 11, 2022

Ouistreham (2022)

"Ouistreham" (2022) (Between Two Worlds) é um filme muito na linha do trabalho de Stéphane Brizé sobre as condições do mercado de trabalho na Europa, em particular em França, mas Emmanuel Carrére adiciona uma variável nova, que é o olhar de quem está acima e que se assume como defensor dessas classes, sem conhecer efetivamente o que é viver nessas condições. 


julho 03, 2022

A vida de Montaigne, segundo Bakewell

Adoro Montaigne, mas soube-me a pouco o livro de Sarah Bakewell, "How to Live, or a life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer" (2010) de quem tinha adorado "At the Existentialist Cafe: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), talvez porque sabia menos sobre Sartre, Beauvoir e Heidegger. Já me tinha acontecido com o livro de Stefan Zweig, "Montaigne" (1942), sobre o qual disse "não se pode chamar a um texto que aglutina um conjunto solto de ideias sobre alguém uma biografia". E agora com Bakewell, voltei a sentir um pouco disto mesmo. Contudo, refletindo, talvez o problema não esteja nos biógrafos, nem tão pouco no biografado, mas na obra principal deste. O brilho dos "Ensaios" (1580) está no modo como nos dá acesso ao modo de ver do próprio Montaigne. Lendo os Ensaios conseguimos em vários momentos calçar as suas botas e viajar pelo seu mundo. Uma viagem que segue pelo meio dos seus pensamentos, sem inícios nem fins, já que é de um modo associativo que cada ensaio se vai desenvolvendo e nos oferecendo acessos ao seu mundo interior e ao passado. Tentar transformar este mundo rizomaticamente livre num encadeado fixo de momentos temporais parece estar destinado à decepção.

julho 02, 2022

“Ethos” (2020), a jóia turca do Netflix

“Ethos” (2020) é uma série dramática turca e uma das jóias escondidas do Netflix. Partindo da telenovela turca faz o caminho inverso da nossa “Pôr do Sol” (2021), optando por usar os tropos não para gozo, mas para os maximizar em qualidade técnica e estética. No final, temos cinema sublime, com a câmara a contar a história e não as bocas dos atores, algo pouco visto em séries, mas não só, toda a composição visual dos cenários e guarda-roupa junto com atores de excelência deslumbrando-nos cena atrás de cena. A estrutura narrativa é também um prazer tremendo, seguindo uma lógica em rede (tipo “Magnólia” (1999)) muito bem desenhada capaz de nos surpreender e recompensar ao longo dos 8 episódios. Mas o que mais me marcou foi sem dúvida o tema do choque de classes e de valores, os cidadãos turcos seculares versus os cidadãos agarrados aos costumes da religião, e o modo como as crenças e os preconceitos corroem a identidade das mulheres, mas não só elas, e tudo com muito Jung à mistura.

junho 26, 2022

Despedida Boémia

"Adieu Bohème" é uma curta com uma premissa brilhante, ainda que não inteiramente nova, mas que se torna especial pelo modo como foi criada: uma performance ao vivo, gravada e transmitida em direto na web, com a banda sonora a ser criada noutro estúdio também em direto. A espontaneidade com algum humor no tratamento de uma questão íntima aparentemente insanável do exterior — o fim de uma relação — acaba por nos tocar e obrigar a pensar sobre o que somos e do que somos feitos neste nosso mundo feito de imagens.

"Adieu Bohème" (2017) de Jeanne Frenkel & Cosme Castro, Opéra National de Paris

junho 25, 2022

"Jerusalém", edição atualizada (2021)

Quis ler “Jerusalém” (2011/2021) de Simon Sebag Montefiore para tentar compreender um pouco melhor um fascínio que desconheço. Queria perceber como é que uma cidade que não contribuiu com qualquer ideia para o avanço da humanidade conseguiu manter-se sempre presente nas agendas do mundo ao longo de mais de 3 mil anos. A leitura, apesar de muito boa, deixou-me ainda mais perplexo. Montefiore faz um trabalho brilhante de inclusão que se sintetiza numa frase: "Naquele momento, o conceito de santidade no mundo judaico-cristão-islâmico encontrou o seu lar eterno". E assim podemos perceber que todo o fascínio da humanidade por esta cidade assenta numa fábula de Origem. A eterna indagação interior, “quem somos e de onde vimos?”, fez rumar ali, ao longo de milhares de anos, das mais altas personalidades de todas as três grandes religiões — reis, imperadores, califas, imãs, rabinos, papas. Muitos levaram consigo os seus exércitos, tendo Jerusalém sido sitiada, atacada e capturada dezenas e dezenas de vezes, incluindo duas vezes em que foi completamente arrasada, não restando pedra sobre pedra. Jerusalém nunca foi além do punhado de pedras num deserto, mas a sua resiliência demonstra o poder humano do contar de histórias.