agosto 22, 2021

Lotaria: da tradição à dopamina

“A Lotaria” é o conto mais conhecido de Shirley Jackson. Publicado em 1948, na The New Yorker, gerou uma tal onda de reações no público, de estupefação e especulação sobre o sentido da história, mas também muitas, na forma de telefonemas e cartas, com ameaças à revista e à autora, tendo a história sido mesmo banida nalguns locais. A história é bastante curta, tem apenas 3 mil palavras, por isso leiam-na antes* de continuar a leitura que contém spoilers.

agosto 20, 2021

Apreciar a arte narrativa como "nadar num lago à chuva"

A Swim in a Pond in the Rain: in which four Russians give a master class on writing, reading, and life (2021) de George Saunders é um livro sobre a arte de contar histórias, em particular sobre arte do conto, em particular do conto russo. Não é um livro sobre "como escrever histórias", é um livro que discute a arte e ofício de quem escreve e os resultados do que se escreve. Saunders não apresenta um guião, nem uma estrutura para a desconstrução dos contos, antes apresenta os mesmos completos sobre os quais realiza, depois connosco, uma leitura próxima (close reading) de certas partes que podem focar-se: na forma, no estilo, no conteúdo, na relação com a vida dos autores, ou ainda em aspetos da tradução do russo. Ler e ouvir Saunders (o audiobook é narrado pelo próprio) falar sobre escrita e contos russos é um pouco como olhar para os olhos de uma criança quando se lhe coloca um prato cheio de doces na frente. A paixão transborda, oferecendo particular deleite a todos os comentários que vai fazendo a cada um dos contos ao longo da viagem proposta que nos oferece 7 contos (3 de Chekhov (In the Cart; The Darling; Gooseberries), 2 de Tolstói (Master and Man; Alyosha the Pot), um de Gogol (The Nose), e um de Turgenev (The Singers)).

agosto 18, 2021

Experiência literária potenciada pela música

Durante mais de 25 anos ouvi o álbum “The Songs of Distant Earth” (1994), de Mike Oldfield, sempre pensando que parecia uma banda-sonora, contudo sem nunca saber que o mesmo era homónimo de um livro de Arthur C. Clarke de 1986. Foi Rob Dickins, da Warner, que sugeriu em 1993 a Mike Oldfield que fizesse um álbum conceptual baseado no livro de Clarke. Oldfield não se sentiu particularmente atraído pela história, mas gostou da atmosfera e do título. Pelo seu lado, Clarke adorava a sua banda-sonora de “The Killing Fields” (1984). Do meu lado, tenho de concordar com Oldfield, a história é muito incipiente, mas ler o livro ouvindo o álbum cria uma experiência que por vezes roça a transcendência, capaz de nos fazer viajar além do nosso sistema solar...

agosto 16, 2021

A dúvida científica como certeza individual

Depois do responsável de um partido ter vindo dizer que não se tinha vacinado porque não tinha informação, de que com a vacina ou sem ela os sintomas de COVID seriam os mesmos. Depois, de uma manifestação anti-vacinas, em Odivelas, com dezenas de pessoas gritando contra o diretor da campanha de vacinação palavras como "assassino". Descubro hoje que o principal site internacional de suporte de dados contra as vacinas, com milhões de visitas, é obra de uma pessoa apenas, uma californiana que diz ter uma filha que sofreu efeitos secundários após a toma de uma qualquer vacina em 2019.

agosto 11, 2021

A anomalia anti-existencial

"A Anomalia" foi premiado com o maior prémio francês de literatura, o Goncourt em 2020, que lhe deu notoriedade, mas sendo um prémio elitista raramente os seus premiados puderam apresentar-se ao público como tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares, como foi anunciado já em maio deste ano. Por outro lado, as reações nas redes não seguem esta aparente unanimidade, já que os comentários se dividem entre a paixão e o desprezo. Uns seguem o elitismo do prémio, reverenciando a inteligência do romance, outros desacreditam o prémio, catalogando-o de verdadeira anomalia. Do meu lado, li-o como comédia social que fala de temas sérios mas que não se quer levado demasiado a sério. Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que um dos personagens do livro é um escritor que também escreveu um livro chamado "A Anomalia", e enquanto tradutor já traduziu “À Espera de Godot" para klingon.


agosto 08, 2021

Aprender a arte ou o ofício? (The Secrets of Story)

Matt Bird fez um mestrado em guionismo na Universidade de Columbia, pelo qual pagou 60 mil dólares, passado um ano, quando se apresentou num estúdio para fazer o seu primeiro trabalho de escrita, pediram-lhe para realizar uma tarefa e ele entrou em pânico. Nunca tinha ouvido falar de “introduções de personagens” em séries de televisão, não fazia ideia do que era suposto fazer. Passados alguns anos, escreveu o livro “The Story Secrets” (2016) para, segundo ele, explicar como se fazem essas introduções, e para dizer que o mestrado da Columbia não tinha passado de uma “ilusão”, um “acampamento de fantasia”, mesmo uma “fraude”. Antes de falar sobre o que é o livro de Bird quero falar sobre o que é um mestrado, já que o que aqui se discute faz parte dos grandes equívocos sobre o Ensino Superior.

"Os meus professores tinham-me dito que eu era um grande escritor, então porque é que isto era tão difícil? Porque não conseguia fazer isto? Porque não tinha estas competências? Mas o que realmente me marcou neste incidente foi a terrível constatação de que, apesar da minha educação de luxo e de todos os elogios que me tinham feito, não sabia realmente o que estava a fazer. De todo". Matt Bird

agosto 07, 2021

agosto 05, 2021

"Framers" (2021): decisão e quadros mentais

Cheguei a este livro — "Framers: Human Advantage in an Age of Technology and Turmoil" (2021) de Kenneth Cukier, Viktor Mayer-Schönberger e Francis de Véricourt — pelo meu interesse nos processos de tomada de decisão, as escolhas que temos de fazer todos os dias, sempre que damos espaço à nossa agência no mundo, ou num qualquer artefacto interativo. A decisão é um processo altamente complexo, desde logo porque contribui para nos definir enquanto seres possuidores de livre-arbítrio. Assim sendo, e partindo do quadro humano que nos oferece tantas decisões quanto o número de seres humanos, percebe-se a dificuldade ou mesmo impossibilidade da tentativa de parametrizar processos de decisão humana. Para esse efeito bastaria ler Kahneman e Tversky:

julho 31, 2021

Samuel Beckett e a neurodiversidade

Comecei a ler “Molloy” de Samuel Beckett pouco depois de ter lido “The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention” (2020) de Baron-Cohen, especialista internacional em autismo, e enquanto por acaso apanhava um episódio da série “The Good Doctor” [1] no Netflix, que retratava os dias de internato de um jovem médico autista. Com este fundo, comecei a ver a personagem Molloy emergir das páginas com uma caracterização muito distinta daquela que tinha criado a partir da leitura de resenhas e análises críticas da obra. Procurei saber mais sobre Beckett e descobri que o mesmo — tal como o seu mentor James Joyce — padecia do transtorno do espetro do autismo [2].

"Molloy" foi publicado pela primeira vez em 1951, em francês, pelas Éditions de Minuit. Só em 1955 Beckett realizaria a tradução para inglês.