agosto 11, 2021

A anomalia anti-existencial

"A Anomalia" foi premiado com o maior prémio francês de literatura, o Goncourt em 2020, que lhe deu notoriedade, mas sendo um prémio elitista raramente os seus premiados puderam apresentar-se ao público como tendo vendido mais de 1 milhão de exemplares, como foi anunciado já em maio deste ano. Por outro lado, as reações nas redes não seguem esta aparente unanimidade, já que os comentários se dividem entre a paixão e o desprezo. Uns seguem o elitismo do prémio, reverenciando a inteligência do romance, outros desacreditam o prémio, catalogando-o de verdadeira anomalia. Do meu lado, li-o como comédia social que fala de temas sérios mas que não se quer levado demasiado a sério. Se dúvidas houvesse, bastaria dizer que um dos personagens do livro é um escritor que também escreveu um livro chamado "A Anomalia", e enquanto tradutor já traduziu “À Espera de Godot" para klingon.


agosto 08, 2021

Aprender a arte ou o ofício? (The Secrets of Story)

Matt Bird fez um mestrado em guionismo na Universidade de Columbia, pelo qual pagou 60 mil dólares, passado um ano, quando se apresentou num estúdio para fazer o seu primeiro trabalho de escrita, pediram-lhe para realizar uma tarefa e ele entrou em pânico. Nunca tinha ouvido falar de “introduções de personagens” em séries de televisão, não fazia ideia do que era suposto fazer. Passados alguns anos, escreveu o livro “The Story Secrets” (2016) para, segundo ele, explicar como se fazem essas introduções, e para dizer que o mestrado da Columbia não tinha passado de uma “ilusão”, um “acampamento de fantasia”, mesmo uma “fraude”. Antes de falar sobre o que é o livro de Bird quero falar sobre o que é um mestrado, já que o que aqui se discute faz parte dos grandes equívocos sobre o Ensino Superior.

"Os meus professores tinham-me dito que eu era um grande escritor, então porque é que isto era tão difícil? Porque não conseguia fazer isto? Porque não tinha estas competências? Mas o que realmente me marcou neste incidente foi a terrível constatação de que, apesar da minha educação de luxo e de todos os elogios que me tinham feito, não sabia realmente o que estava a fazer. De todo". Matt Bird

agosto 07, 2021

agosto 05, 2021

"Framers" (2021): decisão e quadros mentais

Cheguei a este livro — "Framers: Human Advantage in an Age of Technology and Turmoil" (2021) de Kenneth Cukier, Viktor Mayer-Schönberger e Francis de Véricourt — pelo meu interesse nos processos de tomada de decisão, as escolhas que temos de fazer todos os dias, sempre que damos espaço à nossa agência no mundo, ou num qualquer artefacto interativo. A decisão é um processo altamente complexo, desde logo porque contribui para nos definir enquanto seres possuidores de livre-arbítrio. Assim sendo, e partindo do quadro humano que nos oferece tantas decisões quanto o número de seres humanos, percebe-se a dificuldade ou mesmo impossibilidade da tentativa de parametrizar processos de decisão humana. Para esse efeito bastaria ler Kahneman e Tversky:

julho 31, 2021

Samuel Beckett e a neurodiversidade

Comecei a ler “Molloy” de Samuel Beckett pouco depois de ter lido “The Pattern Seekers: How Autism Drives Human Invention” (2020) de Baron-Cohen, especialista internacional em autismo, e enquanto por acaso apanhava um episódio da série “The Good Doctor” [1] no Netflix, que retratava os dias de internato de um jovem médico autista. Com este fundo, comecei a ver a personagem Molloy emergir das páginas com uma caracterização muito distinta daquela que tinha criado a partir da leitura de resenhas e análises críticas da obra. Procurei saber mais sobre Beckett e descobri que o mesmo — tal como o seu mentor James Joyce — padecia do transtorno do espetro do autismo [2].

"Molloy" foi publicado pela primeira vez em 1951, em francês, pelas Éditions de Minuit. Só em 1955 Beckett realizaria a tradução para inglês.

julho 30, 2021

“The Frontiers of Knowledge" (2021) de A.C. Grayling

Publiquei ontem a resenha do livro “The Frontiers of Knowledge" (2021) de AC Grayling no n. 10 do Journal of Digital Media & Interaction, a revista científica do DigiMedia. Na resenha dou conta das abordagens seguidas por Grayling, contudo aqui quero aproveitar para dar conta do quanto me tocou pessoalmente, nomeadamente a escolha que Grayling fez na seleção das 3 áreas de fronteira: a física, a história e a psicologia. O facto de ter selecionado 3 áreas centrais que acompanho, colocou-me em total sintonia com o autor, fazendo com o que o livro se tivesse tornado para mim numa das leituras mais instigantes da última década. Se tiverem ficado com curiosidade leiam a resenha!

“The Frontiers of Knowledge. What We Know about Science, History and the Mind” (2021) de AC Grayling


julho 25, 2021

O Fim da Grande Ilusão

“O Fim do Homem Soviético: Um Tempo de Desencanto” (2013) é uma tentativa de Svetlana Alexievich de nos ajudar a compreender o que aconteceu com o fim da União Soviética. Escrito a partir da captação de centenas de relatos orais, técnica de escrita em que se especializou, a autora procura a partir do interior de pessoas reais construir um mapa de recordações que possam iluminar os efeitos humanos da decadência soviética. Não é um trabalho propriamente académico, já que o enfoque se dá na emoção, no sentir de cada entrevistado, e Alexievich nunca tenta abstrair, generalizar ou sintetizar as leituras. O foco é o particular, o individual, o subjetivo, o humanamente concreto. Naturalmente que isso nos obriga a uma leitura mais atenta, não podemos ler aqui tudo como verdade, ainda que tudo seja baseado no que dizem pessoas reais — a realidade é constituída pela multiplicidade de dimensões construídas pelo olhar de cada ser humano. Mas também percebemos que muito do que é dito não nos é totalmente estranho, e empaticamente conseguimos aferir parte da sua veracidade. 

Milan Kundera: A Arte do Romance

Milan Kundera diz a determinada altura, neste "The Art of the Novel" (1986), que em julho de 1985 tomou a decisão de não mais conferir entrevistas. Parece um preciosismo, uma excentricidade artística proveniente de um ego excessivamente inflamado. Mas ao ler esta obra percebemos duas coisas: Kundera é alguém muito cioso da forma das suas obras, com a música como berço soube usar todo o seu formalismo para criar uma literatura com formas por vezes quase matemáticas; por outro lado, olhando aos reparos que vai fazendo sobre a imprensa e traduções feitas do seu trabalho nos anos 1970, percebe-se que o cuidado era pouco, nomeadamente com um autor provindo de um país escondido atrás de uma "cortina de ferro". 

Versão audiobook apresentada numa belíssima narração de Graeme Malcolm

julho 24, 2021

2666: uma longa viagem

No final das 1000 páginas podemos fechar o livro e decidir ficar com as impressões criadas ao longo das semanas de leitura, sem realizar qualquer esforço de as organizar, de lhes dar um sentido. Essa vontade pode ser maior quando de frente a livros que são escritos com a intenção de se furtar a essas tentativas de catalogação ou organização de significados, como é o caso de “2666”. Ainda assim, enquanto leitores dotados de competências, por vezes obsessivas, na identificação de padrões e atribuição de significados, torna-se difícil não encetar esse esforço. As linhas que se seguem são assim o resultado da minha experiência de leitura, condensada e verbalizada num conjunto de ideias e parágrafos.