A história que Dostoiévski nos quer contar assenta na idea do “Homem Ideal” — bom, honesto e altruísta — e o modo como esse homem, a existir, nunca poderia funcionar numa sociedade que é corrupta e egoísta em todas as suas dimensões. Dostoiévski terá dito que pretendia “representar um ser humano completamente belo“. É realmente isto que podemos ver na história de Jesus Cristo, é isto que podemos ver em "D. Quixote", e até podemos dizer mais recentemente em “Forrest Gump”. Mas é aqui que começa o problema, Míchkin não se parece com nenhum destes personagens. Míchkin não é nenhum idiota, mas também está longe de ser o "Homem Ideal".
Vejamos. Conhecemos Míchkin no seu regresso da Suíça onde esteve em tratamento à epilepsia. No comboio encontra companheiros russos que lhe falam de uma mulher muito bonita, Nastássia Filíppovna, por quem um deles está apaixonado. O que faz Míchkin? Primeiro deixa-se apaixonar por Nastássia apenas a partir da sua aparência, a fotografia é tudo o que lhe não sai da cabeça. E o que vai fazer depois, mesmo antes de verdadeiramente a conhecer? Vai tentar roubá-la às pessoas de quem supostamente era amigo. Quando ela lhe pergunta se deve casar com o amigo, o que diz ele?, que não, porque quer ele casar com ela. Que idiota é este afinal que depois de ter visto uma fotografia se apaixona, sem querer saber mais quem é a pessoa. Torna-se obcecado por ela, a ponto de magoar muitas outras pessoas e outras mulheres, e vive todo o livro a tentar possuí-la (ainda que não sexualmente)! Ora isto não encaixa na minha visão do Homem Ideal. As mulheres que se digladiam por Míchkin são ambas fúteis, à sua maneira, mas são estas que o cercam, é por elas que ele se interessa! Podíamos dizer que é idiota, mas como é que um idiota, se o fosse, teria tanto para filosofar habilmente sobre a vida? Como é que alguém tão desinteressado em tudo se torna obcecado por uma mulher, embora seja uma obsessão que o vai sendo, na sua inconstância.
Podemos antes dizer que Míchkin era um louco, e é por aí que o livro parece muitas vezes querer enveredar, mas até aí me perturba. Como pode Dostoiévski, que era ele próprio epilético, caracterizar alguém que sofre de epilepsia de louco, ou mesmo idiota. Sei bem que estamos no século XIX, mas custa-me ler uma caracterização destas, de alguém que sabia muito mais do que aquilo que mostra nas linhas desta obra. Mais para o final, quando a loucura começa a tomar conta do texto, surge a referência a “Madame Bovary”, mas Bovary além de ser mulher, e de carregar esse fardo numa sociedade completamente dominada por homens, tinha várias motivações para chegar ao estado a que chega. E aqui, é a epilepsia?
Não me parece. E a prova surge nos cadernos que Dostoiévski foi escrevendo à medida que foi desenvolvendo o romance, e que mostram de onde vêm a maior parte dos problemas de que aqui falo, as inconsistências. A escritora A. Susan Byatt que adora o livro, não deixa de lhe apontar criticas e numa parte da sua análise diz o seguinte:
“Anna [mulher de Dostoiévski] preservou os cadernos de notas, que mostram como tanto o enredo como os personagens estavam num estado fluído e num caos vulcânico, mesmo na altura em que o livro já estava a ser publicado como seriado. O bom príncipe aparece nas notas iniciais como orgulhoso e demoníaco, e como o violador da sua irmã adotada (que seria um protótipo de Nastássia Filíppovna). Bota fogo de forma criminosa e mata a própria esposa. Esta primeira parte, como parece, deveria ter sido poderosa. Mas Dostoiévski parecia não ter ideias muito claras sobre como proceder. A segunda parte seria fantasmagórica e divagante, sem estrutura mas agilmente enérgica.” A. S. Byatt, 2004, in The GuardianEste parágrafo explica todos os meus problemas com o “O Idiota”. As inconsistências e o personagem estão explicados, assim como a própria Nastássia ganha uma nova consistência, com a colagem a uma potencial ideia de paixão pela irmã. Ou seja, todo o livro parece ter nascido de uma ideia com traços profundamente góticos, dos quais ainda existem alguns resquícios mais para o final do livro. A uma determinada altura começamos a sentir a fantasmagoria, por vários momentos pensei mesmo que os personagens não existissem, fossem fantasmas, ou invenções das alucinações da cabeça do Príncipe. E em parte foi isso que me levou até ao final do livro. No meio de tanta insanidade e de um final do mais puro gótico que li nos temos recentes, esperava encontrar, até à última linha, uma qualquer explicação paranormal para tudo aquilo que Míchkin representava. Mas não, nada.
No final fiquei imensamente desconsolado. O que mais recordo da obra são personagens constantemente a entrar e a sair de cena, com mexericos atrás de mexericos, rumores atrás de rumores, diz que disse. Os personagens parecem estar todos a olhar uns para os outros à espera de algo, mas nunca nada chega a acontecer, nem se espera que aconteça. Vamos seguindo e vendo o Príncipe vaguear sem rumo, sem interesse por nada. Mesmo quando se lembra de Nastássia, logo a seguir já a esqueceu. E depois, de 100 em 100 páginas, aparece um diálogo mais profundo, com alguma discussão filosófica até interessante, mas que surge de modo extemporâneo em relação ao restante texto. Não, não o vejo como um grande livro, vejo-o como uma manta de retalhos, e ainda que alguns desses retalhos apresentem grande qualidade, não chegam para fazer uma grande obra. Pelo menos para mim não chegou.
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