Ao acabar a primeira temporada de “The Leftovers” estava estupefacto com a escrita. Puro malabarismo thriller, só conseguia pensar em "S.", "Annihilation" ou “Lost”, e em todas as séries que se baseiam em grandes eventos inexplicáveis — como “Flashforward” ou “Under the Dome” — e nos agarram, e nos prendem, mesmo sabendo nós que não existem respostas. Entretanto percebi que o cocriador de “The Leftovers” tinha sido também o cocriador de “Lost”, Damon Lindelof, e que a série vinha recomendada pelo próprio Stephen King. Como é que se consegue criar assim? A partir de tão pouco parecer dizer tanto, como se o dissesse diretamente a cada um dos espetadores, premindo os seus botões emocionais, mantendo-os ali presos ao fio narrativo, sabendo estes que nada há ali? Ajuda imenso a partitura de Max Richter que parece tudo fazer levitar e conduzir para um desejar acreditar, para entrar no mundo da série para sentir, sentir, sentir...
A principal técnica de escrita aqui usada é o mistério, tal como JJ Abrams revelou na sua TED, nada mais importa ao leitor/espectador. O virtuosismo assenta no conseguir apresentar o mistério de forma credível e levá-lo até ao limite, obrigando o recetor a imaginar tudo aquilo que é o seu próprio mundo, dentro do espaço que o autor lhe oferece. É isso que torna a abordagem tão emocionalmente poderosa, a dotação de carga pessoal.
Por outro lado, quando colamos o mistério ao sentido da vida humana tudo ganha outra dimensão, e é isso que tão brilhantemente foi feito aqui. Não existem respostas, porque não podem existir, tudo é um jogo, tudo é um questionamento contínuo, sem fim, aconteçam as coisas mais bizarras, ad hoc, aleatórias que aconteçam é a vida a ser apenas a vida... poderia escrever sem fim, e andaria sempre a volta disto, porque daqui não conseguimos sair, e por isso o melhor será deixar-vos com um conjunto de palavras que acabo de ler na Esquire, a propósito da temporada 3, mas que dão conta do que senti no final desta primeira temporada:
“Part of our human experience on this planet is finding peace in an existence defined by the unknown. Although we may seek calm in religion, in science, we'll never know the answers to those existential questions which have driven humanity since they crawled out of caves. Yes, we've unlocked a deeper understanding of physics and chemistry and comfort in Christianity or Buddhism, but that greater question—"why?"—will always be there. The Leftovers never set out to answer these bigger questions. It's a TV show—that would be ridiculous. Instead, The Leftovers was about the journey that we all experience in contemplating mortality, confusion, religion, loss, grief, and our own mind.” Matt Miller, in Esquire, (2017)
Depois de ter aqui listado os artefactos que mais contribuíram para o avanço do design de narrativa na última década — de que fazem parte videojogos, livros, novelas gráficas, filmes e fusões de media — agora trago a lista exclusiva de videojogos da década. Esta lista não pretende apresentar objetos pela sua inovação conceptual, mas antes dar conta das experiências de fundo narrativo mais marcantes desta década. O meio dos videojogos é imensamente diverso em termos de jogabilidade, contudo interessa-me aqui apenas dar conta dos videojogos com preocupações narrativas. O foco é então aquilo que se comunica e claro o modo como se socorre do meio para comunicar. Por isso a lista leva em conta também aspetos conceptuais, modos de fazer inovadores ou consistentes que sustentam essa comunicação. No fundo, foco-me aqui em videojogos com boas histórias, capazes de gerar experiências memoráveis plenas de significado, seguindo exatamente os mesmos moldes de uma seleção dos melhores livros ou filmes de ficção.
Estas são assim as obras que vamos continuar a referenciar no futuro para falar dos videojogos enquanto meio expressivo, não porque revolucionaram o meio, mas porque nos fizeram sentir e acima de tudo refletir. A escolha das primeiras obras desta lista dá conta disso ao mesmo tempo que demonstra a capacidade dramática alcançada, tanto em intensidade como em variedade de géneros ficcionais. A década foi imensamente rica.
Se a década anterior —Videojogos 2000—2009 — tinha dado conta do novo mundo aberto pelos videojogos à narrativa, esta segunda década consagrou as narrativas interativas nas suas múltiplas possibilidades conceptuais, a ponto de se tornarem meios de excelência de expressão da contemporaneidade. Ou seja, a evolução narrativa dos videojogos amadureceu, sendo estes hoje utilizados para dar voz a todos — dos modelos das grandes massas aos nichos e minorias. Aqui podemos encontrar não apenas grandes personagens nas suas sendas identitárias, como experienciar histórias na pele de personagens com que verdadeiramente nos identificamos — podendo escolher o nosso género ou cor da pele, assim como enamorar-se de um homem, uma mulher ou transgénero. Os videojogos narrativos deram finalmente uso ao potencial intrínseco da narrativa interativa — a personalização da experiência — e abriram horizontes até aqui muito pouco explorados pela ficção nos restantes media.
1. The Last of Us (análise)
2. Mass Effect 3 (análise)
3. The Witcher 3: Wild Hunt (análise)
4. Soma (análise)
5. The Walking Dead (análise)
6. Gone Home (análise)
7. Detroit: Become Human (análise)
8. What Remains of Edith Finch (análise)
9. Inside (análise)
10. Spec-Ops: The Line (análise)
11. Uncharted 4: A Thief's End (análise)
12. Red Dead Redemption 2 (análise)
13. Life is Strange (análise)
14. Kingdom Come: Deliverance (análise)
15. Heavy Rain (análise)
16. Papers, Please (análise)
17. Dishonored (análise)
18. The Last Guardian (análise)
19. Brothers: A Tale Of Two Sons (análise)
20. Firewatch (análise)
21. Horizon Zero Dawn (análise)
22. Neo Cab (análise)
23. Papo & Yo (análise)
24. My Child Lebensborn (análise)
25. 1979 Revolution: Black Friday (análise)
26. Middle-earth: Shadow of Mordor (análise)
27. Journey (análise)
28. Metro: Last Light (análise)
29. Celeste (análise)
30. That Dragon Cancer (análise)
Ficam por explorar vários videojogos de 2019, nomeadamente Disco Elysium, Outer Wilds e Death Stranding. Veremos se algum destes acabará por tornar-se referência nos próximos anos.
Mais uma década passada, mais um conjunto de artefactos narrativos que contribuíram para o avanço da nossa percepção sobre os modos como contamos e registamos histórias. Muitos destes parecem recuperar ideias com trinta, quarenta e até centenas de anos, mas acabam sempre por trazer algo de novo e impulsionar a reflexão sobre os modos de fazer. Nos primeiros lugares coloquei artefactos que abrem para media completamente distintos — filme-jogo, novela gráfica, novela objeto, filme interativo, jogo-livro, simulação-jogo —, que como se percebe pela categorização não são claros, ou melhor, não se encaixam num único medium, pela simples razão de que quebram as convenções dos supostos media de origem.
1. Her Story [Filme-jogo] (análise)
2. Here [Novela gráfica] (análise)
3. S. [Novela objeto] (análise)
4. Possibilia [Filme Interativo] (análise)
5. Return of the Obra Dinn [Jogo-livro] (análise)
6. Bury Me, My Love [Simulação-jogo] (análise)
8. Alma, A Tale of Violence [Webdoc] (análise)
9. Pearl [Animação 360º] (análise)
10. Florence [Novela Gráfica-jogo] (análise)
11. The Art of Pho [Motion comic] (análise)
12. Bandersnatch [Filme interativo] (análise)
13. Way to Go [RV] (análise)
14. The Random Adventures of Brandon Generator [Motion comic] (análise)
15. This War of Mine [Simulação-jogo] (Análise)
16. Pry [Livro multimédia] (Análise)
17. Thirty Flights of Loving [Videojogo experimental] (análise)
18. Lifeline [Simulação] (Análise)
19. CIA : Operation Ajax [Motion comic] (análise)
20. Thomas was Alone [Videojogo] (análise)
Nesta lista coloco apenas artefactos que surpreenderam no design da narrativa — estrutura e medium. Muitos dos objetos que o têm feito pertencem ao domínio dos videojogos, contudo aqui destaco apenas as inovações. Em termos de qualidade narrativa, tendo em conta história e jogabilidade, dedicarei uma lista própria aos videojogos narrativos brevemente.
Além destes, deixo ainda um conjunto de objetos ou abordagens a que vale pena ficar atento no futuro próximo, tais como os audiobooks de Choose-Your-Own-Adventure e os audiobooks da Marvel que poderão vir a garantir lugares privilegiados em sistemas como a Siri ou Alexa, ou ainda as séries para plataformas móveis de novelas gráficas interativas — Episode ou Choices — que apesar de estarem numa fase embrionária conseguiram já um público bastante alargado.
Para uma novela estruturalista, uma crítica estruturalista: 1) Conceito e Premissa: 5/5; 2) Execução Técnica: 5/5; 3) Experiência Estética 2/5. Nota final de 4, nada mau, mas será melhor ler sobre cada um dos itens para ver se a nota quantitativa reflete o interesse qualitativo da obra.
S. (2013) de J.J. Abrams e Doug Dorst
1. Conceito e Premissa
Começando pelo conceito que é sem dúvida o melhor, não sendo revolucionário, nunca antes um livro foi assim distribuído, de forma massiva comercial — carregado de postais, fotografias, excertos de jornal, notas, guardanapos com mapas, etc. Mas talvez melhor que essa componente que salta à vista pela fisicalidade, seja o uso da marginália para contar a história principal. David Foster Wallace já tinha usado as notas de rodapé, mas como extensão narrativa. Neste caso, são notas à mão, nas margens, a marginália, sendo nelas que se centra o veio principal da história que se quer contar.
Assim S. é composto por 5 canais de informação, ainda que interligados, perfeitamente autónomos:
1. Ship of Theseus, o romance regular, inscrito nas páginas do livro em tipografia de máquina, escrito por um alegado autor, Straka, focado na personagem principal, S. Ou seja, o romance interno.
2. A marginália, notas nas margens do romance “Ship of Theseus”, escritas por Eric e Jen, que usam as margens do livro que ambos requisitam numa biblioteca para: comunicar, investigar sobre o livro em si, e flertar. No fundo, o romance externo.
4. Notas de rodapé, que estendem o prefácio do Tradutor e Editor de “Ship of Theseus”, nais quais este vai dando conta da sua pessoa, e da sua relação com Straka.
3. Os insertos físicos — notas, mapas, obituários, cartas com várias folhas, etc. — servem de extensão aos três fluxos anteriores.
5. Artefactos digitais — sítios web, vídeos e documentos (ver no final) — que se podem encontrar na internet e que servem também de extensão aos três primeiros fluxos.
Sendo nós apresentados de imediato a estes 5 caudais de informação, torna-se complicado decidir por onde começar a ler, por isso não faltam sites e manuais explicativos (ver no final). Do meu lado, e enquanto leitor habituado a ler fluxo de consciência e obras pós-modernas, aconselho que se siga sem método. Ou seja, consuma-se de tudo um pouco e avance-se aos poucos. A uma determinada altura algum dos canais agarra-nos mais e seguimos, para depois voltar atrás, e depois voltar novamente à frente... Estas obras procuram leituras em modo exploratório.
Tendo em conta as múltiplas camadas, a própria premissa acaba por se desmultiplicar em diferentes possibilidades: ou seja, podemos dizer que estamos perante a leitura de um livro em modo social, já que acompanhados na leitura pelos comentários e notas de outras pessoas que o leram antes; ou podemos dizer que estamos perante um romance sobre um casal que se encontra por meio de um livro, oferecendo-nos a possibilidade de assistir ao desenrolar de todo esse romance; ou podemos ainda dizer, que assistimos a um romance mistério, em que buscamos saber a identidade do seu autor, sendo ajudados pelos leitores das notas nas margens, e ainda pelo tradutor nas notas de rodapé, e ainda por todos os elementos físicos e digitais sobre aquele universo.
2. Execução Técnica
O livro que temos nas mãos foi sonhado e idealizado por JJ Abrams, o criador da famosa série Lost, e muitos outros trabalhaos de grande sucesso, de entre todos a sua maior proeza, em minha opinião, foi ter-se transformado no realizador e escritor das duas mais importantes séries de FC cinematográficas, Star Trek e Star Wars. Dizer isto, é como dizer que JJ Abrams tem carta branca para criar e produzir o que bem lhe apetecer. Embora considere que se tiverem visto Lost, compreenderão muito bem de que é feito S., sugiro ainda assim que vejam a Ted Talk realizada por Abrams, na qual ele explica a natureza da sua força criativa como residente na geração de universos-história de mistério.
Dito isto, preciso agora de dizer que o livro não é escrito por JJ Abrams. Abrams exerce aqui o cargo que tem vindo a privilegiar, o de produtor. Deste modo, consegue dar vida a muito mais projetos do que se tivesse de os concretizar efetivamente. Assim, o livro foi inteiramente escrito por Doug Dorst, um escritor americano, escolhido por Abrams para implementar a sua ideia. Além destes, houve ainda todo um trabalho direção de arte, de Paul Kepple, e um trabalho de design e ilustração de Ralph Geroni que garantem a execução final da ideia, tornando visual e palpável a ideia imaginada por Abrams e escrita por Dorst.
O resultado final é soberbo. S. é um livro objeto de excelência, aprecia-se cada momento com o livro, no manusear e na apreciação dos detalhes, dos relevos e texturas, das inscrições que oferecem marcas de autenticidade, tão próximas de o serem que dificilmente o podemos desmentir. É tudo tão perfeito, da qualidade do papel usado, tanto no guardanapo, como na fotografia e postais, a notas em papel de hotel, fotocópias, é toda uma viagem física. Por outro lado, o trabalho de Dorst na produção de mistério é perfeita, seguindo completamente o género de Abrams, instigando-nos a querer mais e mais, interligando tudo. Ou seja, tecnicamente é uma obra imensamente conseguida, totalmente coerente, capaz de garantir harmonia à multimodalidade de media usados.
3. Experiência estética
É pena que neste último ponto não se repitam os louvores, já que este seria talvez o mais importante. Porque a questão que se coloca sempre é se compensa tanta elaboração conceptual e técnica, se não se conseguiria o mesmo ou até mais, com menos. Ou ainda, de um outro ângulo, mais questionável, se toda esta parafernália multimodal não está apenas a servir de camuflagem a um trabalho menor.
Ora o problema que temos, não sendo conceptual nem técnico, é de ordem exclusivamente artística. Quer isto dizer que o problema está nas escolhas feitas em termos do conteúdo da história a contar. Reitero que o problema não é técnico, todos os elementos modais estão imensamente bem trabalhados. Dorst escreve bem e sabe urdir mistério garantindo o envolvimento do leitor. O problema decorre das histórias e personagens escolhidas, tudo muito fraco. O romance Ship of Theseus, apesar de emular uma obra de 1949, não pode usar isso como desculpa para se limitar a mero relato de aventura misteriosa. Os personagens são todos irrelevantes, estamos todo o tempo atrás do enredo que nos arrasta de local em local, com a cenoura do mistério. Se no início funciona, porque somos agarrados pela vontade de querer saber quem é S, à medida que se estende o mistério, e se faz resvalar o mesmo para várias outras camadas interpretativas, percebe-se que não existe interesse em dar respostas, e o nosso interesse começa a cair. Mas o pior surge quando passamos para a marginália, e percebemos que temos dois estudantes de literatura a discutir detalhes de um mero romance de aventuras que nada mais tem a oferecer além da superficialidade do enredo. Tal agrava-se quando os seus diálogos e conversas não apresentam qualquer preocupação literária e se focam apenas nas teorias da conspiração sobre crimes e identidades, tornando toda a discussão entre eles completamente irrelevante. Isto retira encanto aos artefactos físicos e digitais, porque deixa de nos interessar ir atrás, porque se os personagens não são críveis, então deixa de ser possível olhar para tudo aquilo como algo autêntico ou sequer relevante.
Para mim, o problema torna-se altamente evidente quando colocamos esta obra ao lado de Possession (1990) de A.S. Byatt. Uma obra na qual seguimos também dois académicos que procuram informações sobre um escritor esquecido e no qual nos afundamos, sem ter acesso a qualquer um dos magníficos recursos colocados nas mão de Abrams, mas temos o génio de A.S. Byatt que em texto corrido nos dá a sorver tantas ou mais camadas de informação, tudo num tomo único. No fundo, o que falta em S., é aquilo que falta em Hollywood, expressão pessoal, tudo é feito em nome do lucro, as histórias não se querem pessoais, nem vincadas de valores, mas antes universais, entendíveis pelo maior número de pessoas, capazes de gerar alguns momentos de diversão e que se fechem sem incomodar muito. S. é assim uma obra tecnicamente soberba que pouco ou nada tem para exprimir.
“Facing It” (2018) é um filme de animação de estudante brilhante que além de apresentar uma história atual e impactante, recorre a um conjunto muito diversificado de técnicas de animação, misturando múltiplos media, para dar conta do sentir dos personagens. A curta é o resultado do projeto final do mestrado em Direção de Animação, National Film and Television School (UK), de Sam Gainsborough, depois de se ter licenciado em Screenwriting for Film and TV na Bournemouth University, em 2013. Ao longo do ano passado o filme foi galardoado com imensos prémios e nomeações.
Tecnicamente temos: pixilation, plasticina, chromakeying, motion tracking e rotoscoping. Os personagens são pessoas reais, filmadas com máscaras e marcadores faciais, em movimentos adaptáveis ao stop-motion do filme. Os grandes planos foram novamente filmados com fundo verde, para servir o rotoscoping e mistura com a plasticina. Os marcadores da face foram usados para a substituição das expressões, via motion tracking, com as animações criadas em plasticina.
É um trabalho audiovisual impressionante, pela mistura de técnicas que requerem competências muito distintas, e pelo resultado final imensamente conseguido em termos de coerência estética. Não só as técnicas foram fundidas sem deixar rasto, como a cinematografia e a cor trabalham em perfeita sintonia para fazer passar a história de Gainsborough. Vale a pena ver o making of, depois do filme, e ler a entrevista no Director's Notes.
No meio de tudo, gostei particularmente da técnica utilizada na modelação da plasticina, no modo como as dedadas em vez de serem limadas, para se tornarem invisíveis, são enfatizadas para oferecer textura e expressividade à superfície plástica. Em certos momentos, nomeadamente quando animados, o modo como Gainsborough trabalha os rastos das dedadas fazem lembrar as texturas produzidas pelas pinceladas de Van Gogh.
"Shaun always feels separate and isolated from the confident, happy world around him. Whilst waiting for his parents in a busy pub, Shaun struggles valiantly to join in with the admirably happy people in the crowd, but the more he tries, the more he goes awry. As everything in the pub goes from bad to worse, Shaun finds himself confronted by the painful memories that made him who he is. His feelings, memories and desires overwhelm him and by the end of the evening he is ready to explode…"
O meu imaginário do Holocausto era até agora estruturado a partir dos relatos de Primo Levi, Viktor Frankl e das imagens de Claude Lanzmann. Três obras não-ficcionais, dois relatos na primeira-pessoa da experiência vivida em Auschwitz, e uma visita, 40 anos depois, retratada por múltiplas vozes que por lá passaram e assistiram, dentro e fora, em primeira pessoa ao morticínio. "Son of Saul" (2015) é ficção, tal como "Come and See" (1985) de Klimov, mas diferentemente desse, não o parece. São ambos obras de grande intensidade visceral, talvez das mais viscerais a que assisti, mas "Son of Saul" distingue-se pelo naturalismo utilizado que impregna a obra de um caráter quase documental, tornando tudo ainda mais intenso, se é que tal é possível... posso, contudo, dizer que vai além da camada emocional, as opções de câmara implementadas para dar a ver obriga a uma racionalização do espectador, o que torna a experiência particularmente perfurante.
Já me tinha interrogado sobre o como se "passaram as coisas", e o filme de Lanzmann é ainda mais instigador ao mostrar tudo muito depois, mas de modo estático obrigando-nos a imaginar. Aliás essa foi uma opção propositada de Lanzmann, o mesmo que depois de ver “A Lista de Schindler" disse:
"The Holocaust is above all unique in that it erects a ring of fire around itself, a boundary that you cannot cross, because it is impossible to convey a certain absolute horror; claiming to do so is to be guilty of the gravest transgression. Fiction is a transgression; I am deeply convinced that there is a prohibition on representation." Claude Lanzmann
Podemos assim dizer que optar pelo modo de Spielberg é como mostrar a dor humana à distância, a partir do conforto de um camarim. Mas Nemes quebra o tabu, atira o pudor janela fora e coloca-nos dentro da maior Fábrica de Morte alguma vez criada, colados à carne de um simples trabalhador judeu, obrigando-nos a ver tudo, ainda que pelas franjas do enquadramento. Claro que para tal foi preciso a performance brutal de Géza Röhrig.
Regina Pessoa fez apenas 4 filmes em 20 anos — “A Noite”, 1999; “História Trágica com Final Feliz”, 2005; “Kali, o Pequeno Vampiro”, 2012 e “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”, 2019 — mas foram suficientes para criar uma identidade autoral no cinema de animação internacional. Poucos segundos de visionamento de qualquer um destes quatro filmes atira-nos imediatamente para o universo cultural e estético de Regina Pessoa. Muitos passam toda uma vida à procura dessa identidade sem nunca a encontrar enquanto a Regina o parece ter conseguido logo no seu primeiro filme. Sendo algo impressionante, o questionamento sobre o seu processo criativo tem sido uma constante e a Regina não se tem furtado ao mesmo. Contudo, como acontece com os grandes criadores, a melhor forma de responder surge quase sempre pela mão da sua preferência expressiva, ou seja, do meio expressivo de eleição, e é isso que acaba tornando este seu último filme “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” tão relevante, e talvez o mais importante de todos.
O principal marcador da identidade de Regina Pessoa reside na sua técnica de animação. Criada inicialmente a partir da gravura em placas de gesso, oferece-lhe um movimento texturado (traços de linhas que preenchem as formas e se movimentam) muito singular. Colado a esse movimento visual surge depois a particularidade do seu design de personagens que recorre a uma fusão entre o geométrico e o orgânico da texturização que lhe garantem uma particular estranheza, algo que se tem acentuado com o evoluir do seu design de personagens. Por fim, e ainda no campo visual, temos o domínio da luz que é utilizada para acentuar as texturas mas especialmente para a produção de sombras e sua elevação a elementos centrais do cenário. Todo este enquadramento visual vai além da mera identidade visual, serve uma função comunicativa que é denotada pela particularidade das histórias contadas, mas essencialmente pelos motivos narrativos escolhidos e pelo tom dos mesmos. Ou seja, o universo ficcional dos filmes da Regina Pessoa circula à volta de personagens destacados da normalidade, não porque o desejam, mas porque a isso são votados pela sociedade, funcionando as suas histórias como modos de verbalização do interior desses personagens. Por isso a componente visual acaba sendo tão relevante, já que é ela a principal responsável por dar conta do tom do sentir dos seus personagens. No fundo, estamos a falar de uma abordagem profundamente expressionista, que se destacou no cinema alemão dos anos 30 (séc. XX) e que nos diz que o cinema da Regina é um cinema profundamente sensorial.
Personagens dos 4 filmes de Regina Pessoa, da esquerda para a direita: “A Noite”; “História Trágica com Final Feliz”; “Kali, o Pequeno Vampiro”; “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”
Neste sentido, podemos dizer que o seu último filme, “Uncle Thomas, Accounting for the Days”, aprimora toda a sua linguagem, todos os elementos se elevam tecnicamente, acabando por abrir novas direções, mas sem perder as raízes e funções estéticas da sua identidade. Por outro lado, o tema escolhido, que para mim vai muito além do tio especial porque dá conta da génese do próprio processo criativo, acaba por exponenciar ainda mais toda a componente afetiva da obra. Quando surgem os últimos quadros e reconhecemos o cabelo da autora nos traços da sombra animada, é impossível não sentir um toque, quase um arrepio, pela profunda conexão estabelecida com a autora. Diga-se que por Regina fazer um cinema muito expressivo pode para uma boa parte dos espetadores não ocorrer uma relação imediata, nomeadamente se se detiverem na busca de lógicas explicativas dos personagens ou se estiverem à espera de twists narrativos muito conclusivos. Se não conhecerem a obra da Regina e sentirem essa distância, aconselho um segundo e um terceiro visionamentos para poderem entrar dentro do universo e começarem a sentir o pulsar do texto animado.
O filme foi entretanto disponibilizado na rede, pela NFB (ver abaixo), para poder ser visto por todos, enquanto aguardamos que se confirme a nomeação do filme para o Óscar de Melhor Curta de Animação 2019. É a segunda vez que a Regina está na shortlist (seleção de 10 filmes), a primeira foi com "História Trágica com Final Feliz”, esperemos que desta vez a Academia saiba reconhecer o seu trabalho. Não que seja necessário, os seus filmes foram todos amplamente premiados nos mais importantes festivais internacionais da arte de animação, mas não deixa de ser merecido.
Encontrei este livro por acaso na Fnac, não o comprei logo, mas como não o esqueci acabei por o mandar vir. A razão porque me interessou tanto foi a dupla de conceitos: modelos e decisões. Em relação ao primeiro, é o modo como prefiro trabalhar a minha investigação, estou sempre à procura de situações, casos e exemplos em busca de padrões que possam depois ser replicados e potencialmente escalados, no fundo criar modelos de conhecimento. Em relação ao segundo, as decisões estão intimamente relacionadas com os processos de escolha humanos que são no fundo a base do design de interação, servindo amplamente desde as aplicações e jogos às narrativas interativas. Ou seja, olhei para este livro como um compêndio de ideias de potencial aplicação imediata, embora tal depois não tenha propriamente acontecido, mais porque parte dos modelos, os mais interessantes, já os conhecia, e os restante se distanciavam bastante do meu domínio de aplicação. Não esquecer que é um livro mais dirigido aos domínios da gestão.
"The Decision Book: Fifty Models for Strategic Thinking" (2008) de Mikael Krogerus e Roman Tschäppeler
Os 50 modelos são categorizados em 4 modos: melhoria do próprio; compreender-se melhor; compreender os outros melhor; e melhoria dos outros. Um conjunto de modelos são sobejamente conhecidos, alguns já mesmo enquanto teoria, deixo uma lista desses: Análise SWOT; Flow; Pareto Principle (80/20); Modelo da Cauda Longa; Compasso Politico; Ciclo do Hype; Difusão; Feedback, Pirâmide Marlow; Dilema do Prisioneiro; Capital de Bourdieu. Os autores utilizam estes modelos, mas adaptam-nos em função dos seus contextos, nomeadamente da realidade Britânica ou de conteúdos mais mainstream.
Modelo do Capital Social de Bourdieu
Por vezes surgem algumas generalizações nesses modelos algo questionáveis, mas o interessante está nos modelos, no modo como podemos triar os conteúdos usando-os. Ou seja, olhem para os modelos como formas de aplicação aos problemas, e não como teorizações do real. Por outro lado, como o livro é pequeno não sobra muito espaço para discussão e menos ainda aprofundamento, por isso olhem para o livro como cardápio, para depois ir atrás.
Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.
ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.
O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.