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outubro 09, 2021

O Mapa do Conhecimento

Adorei a viagem proporcionada pelo livro "The Map of Knowledge" de Violet Moller. A obra pode não ser perfeita, podem existir problemas e erros, mas tendo em conta o que se pretendia, uma visão geral sobre a travessia do conhecimento durante a Idade Média, e não uma discussão sobre a veracidade histórica ou importância dos conceitos e teorias, a obra é muito conseguida. A sua leitura oferece-nos um enquadramento do registo e movimento do conhecimento ao longo de mais de 1000 anos, ajudando a compreender melhor certos lugares, os seus rituais e os seus personagens. Para além disso, no final, emerge algo ainda mais importante, o modo particular como se cria ciência, as suas necessidades e condições para o florescimento.

setembro 26, 2021

Incas e Europeus: para que servem as histórias alternativas?

"Civilizations" é um excelente sucessor de "A Sétima Função da Linguagem" (2015) (análise VI), deixando para trás as teorias da comunicação para se focar na história da descoberta do Novo Mundo, só que agora o Novo Mundo já não é a América, mas a Europa. "Civilizations" usa um artifício inicial para garantir imunidade adquirida às populações das Américas aquando da chegada dos espanhóis, a partir do que se desenvolve todo um volte-face. Assim, em vez de termos Pizarro a dominar Atahualpa, como muito bem nos conta Jared Diamond, em "Guns, Germs, and Steel" (1997) (análise VI), temos Atahualpa a dominar Carlos V, o grande Imperador Romano-Germânico. 

Representação do Deus Sol Inca

setembro 19, 2021

A Torre de Montaigne

Enquanto leio "Civilizations" (2019) de Laurent Binet dou por mim atirado para um castelo que possui uma torre, na qual se encontra uma biblioteca com traves munidas de inscrições em latim e grego. Acreditando ser a biblioteca de Montaigne (1533 — 1592) fui procurar informação na rede e acabei recolhendo um conjunto de imagens que aqui deixo. Pode ser que um dia, quando volte a passar por Bordéus, ainda consiga fazer um desvio e vá visitar tão iluminada torre.

agosto 20, 2021

Apreciar a arte narrativa como "nadar num lago à chuva"

A Swim in a Pond in the Rain: in which four Russians give a master class on writing, reading, and life (2021) de George Saunders é um livro sobre a arte de contar histórias, em particular sobre arte do conto, em particular do conto russo. Não é um livro sobre "como escrever histórias", é um livro que discute a arte e ofício de quem escreve e os resultados do que se escreve. Saunders não apresenta um guião, nem uma estrutura para a desconstrução dos contos, antes apresenta os mesmos completos sobre os quais realiza, depois connosco, uma leitura próxima (close reading) de certas partes que podem focar-se: na forma, no estilo, no conteúdo, na relação com a vida dos autores, ou ainda em aspetos da tradução do russo. Ler e ouvir Saunders (o audiobook é narrado pelo próprio) falar sobre escrita e contos russos é um pouco como olhar para os olhos de uma criança quando se lhe coloca um prato cheio de doces na frente. A paixão transborda, oferecendo particular deleite a todos os comentários que vai fazendo a cada um dos contos ao longo da viagem proposta que nos oferece 7 contos (3 de Chekhov (In the Cart; The Darling; Gooseberries), 2 de Tolstói (Master and Man; Alyosha the Pot), um de Gogol (The Nose), e um de Turgenev (The Singers)).

julho 30, 2021

“The Frontiers of Knowledge" (2021) de A.C. Grayling

Publiquei ontem a resenha do livro “The Frontiers of Knowledge" (2021) de AC Grayling no n. 10 do Journal of Digital Media & Interaction, a revista científica do DigiMedia. Na resenha dou conta das abordagens seguidas por Grayling, contudo aqui quero aproveitar para dar conta do quanto me tocou pessoalmente, nomeadamente a escolha que Grayling fez na seleção das 3 áreas de fronteira: a física, a história e a psicologia. O facto de ter selecionado 3 áreas centrais que acompanho, colocou-me em total sintonia com o autor, fazendo com o que o livro se tivesse tornado para mim numa das leituras mais instigantes da última década. Se tiverem ficado com curiosidade leiam a resenha!

“The Frontiers of Knowledge. What We Know about Science, History and the Mind” (2021) de AC Grayling


junho 22, 2021

Da História de Roma Antiga

Nos últimos anos tenho lido várias obras que abordam o império romano — em particular "O Infinito num Junco" de Irene Vallejo, "Augustus" de John Williams e "Memórias de Adriano" de Marguerite Yourcenar, ou ainda os próprios clássicos romanos "A Eneida", Seneca ou Lucrécio — e por isso a curiosidade sobre a Roma Antiga foi aumentando. Inevitavelmente fiz a aproximação primeiro através da monumental obra de Edward Gibbon, “The History of the Decline and Fall of the Roman Empire”, publicada em 1776, contudo, pouco depois de a iniciar descobri a existência de uma outra obra sobre Roma, “SPQR: A History of Ancient Rome” bastante mais recente, de 2015, de Mary Beard, professora de cultura clássica respeitada e por vezes equiparada a Gibbon. Decidi então deixar Gibbon de lado e seguir com Mary Beard. As razões para o fazer foram várias, como dou conta a seguir, mas no final sinto que fiz bem, essencialmente porque me permitiu encerrar a curiosidade que tinha, e explicarei porquê. Entretanto, consegui terminar o visionamento da série "Rome" (2005) da HBO, da qual dou conta no final.

Existe uma edição portuguesa, traduzida pelos Carvalho & Guerra e editado pela Bertrand.

junho 20, 2021

Olhares com milhares de anos

Os Retratos Fayum são retratos realistas pintados sobre placas de madeira colocados sobre múmias do Egipto Romano, entre o I e o III séculos d.C., na região de Fayum, um oásis junto ao Nilo. Estes retratos formam uma coleção com de cerca de 1000 obras, fazendo desta a maior coleção sobrevivente do estilo e técnica. A técnica, segundo legados escritos, terá sido iniciada por volta do século IV a.C. na Grécia, contudo, devido à natureza perecível dos materiais não existem legados desse tempo. Esta coleção, como muita da arte egípcia, só chega até nós graças às altas temperaturas que resultam em baixa humidade naquela região, ao que se junta ainda o facto de ter sido enterrada e assim não acessível durante milénios.

Retratos de múmia Fayum, dos séculos I a III d.C (Imagens: 1, 2, 3)

maio 14, 2021

Meio Sol Amarelo (2006)

Conheci Chimamanda Ngozi Adichie através da sua TED talk “O Perigo da História Única” que me deslumbrou pela oratória e assertividade. Desde então tive sempre curiosidade de a ler, mas só agora o fiz tendo começado com este que é o seu segundo livro “Meio sol amarelo”. Não me desiludiu, embora esperasse mais, mas é uma belíssima obra, e uma grande homenagem à história da Nigéria, nomeadamente para quem acredita que nós somos feitos das histórias que contamos. 

maio 03, 2021

A Caverna dos Sonhos Esquecidos

"Cave of Forgotten Dreams" (2010) é um documentário de Werner Herzog sobre a Caverna Chauvet, no sul de França, que contém algumas das mais antigas imagens criadas por humanos (435), há cerca de 32.000 anos. O tom da voz de Herzog é bom e funciona bem na criação da experiência, já os seus comentários e as questões que coloca aos entrevistados deixam muito a desejar. Apesar disso, o documentário é poderosíssimo por nos dar a ver algo que está vedado ao público, mas mais do que isso, por nos aproximar imenso de algo que foi criado há milhares e milhares de gerações e se parece tanto com aquilo que continuamos a criar hoje. É quase espiritual...

abril 24, 2021

"As Faces Esquecidas de Palmira" (2021)

Estreia hoje no canal Arte o documentário "As Faces Esquecidas de Palmira" que pode ser visto no site do canal de forma gratuita até ao dia 22 junho. Arranjem 80 minutos para ver porque vale todos os minutos. Possui audio em francês e alemão, e legendas em inglês e italiano. O documentário foi produzido pelo Arte mas dirigido por um realizador sírio, Meyar Al-Roumi (1973), oferecendo-nos um acesso ao coração da cidade, o que foi, as lendas à sua volta e o que representa hoje. O filme leva-nos numa viagem no tempo até à época áurea da cidade oásis que funcionou como centro de ligação entre a Ásia, África e Europa, nos primeiros 300 anos d.C. Não sobrou muito, mas o documentário dá conta de um excelente trabalho de arqueologia levado a cabo pela dinamarquesa Rubina Raja que conseguiu até à data reunir mais de 3500 peças provenientes de Palmira e que se encontram espalhadas por todo o globo.

março 14, 2021

O Infinito aberto pela Escrita e o Livro

O Infinito num Junco” é um livro sobre os Clássicos — cultura da Grécia e Roma antigas — focado na invenção da Escrita e do Livro, escrito num tom bastante leve, arredado do formalismo da Academia na qual a autora Irene Vallejo (1979) se doutorou, e que ninguém esperava ver tornar-se num sucesso de vendas em 2020. Em Espanha, além dos múltiplos prémios, saíram mais de 25 edições, e em menos de um ano já vai com mais 30 de traduções — português, francês, holandês, etc. O que tem esta obra para gerar tanto interesse?


fevereiro 22, 2021

A resposta é: 42

Foi publicado há dias, 19 fevereiro, um artigo na Science sobre a crise ambiental ocorrida há 42 mil anos, motivada pela inversão dos polos magnéticos da Terra que produziu alterações no campo de forças que protege o planeta da influência de raios cósmicos. A equipa australiana, liderada por Alan Cooper e Chris S. M. Turney, batizaram o evento como “Adams event”, como homenagem a Douglas Adams que escreveu "The Hitchhikers Guide to the Galaxy" no qual inscreveu o nº42 como fonte da vida. Mas o mais importante são os três grandes efeitos referenciados: o desaparecimento de megafauna; a extinção dos Neandertais; e por último, e que mais me interessou, o surgimento das pinturas nas cavernas.

Imagem retirada do vídeo produzido pela Universidade Nova South-Wales, Sydney (ver abaixo)

janeiro 31, 2021

Platão versus Aristóteles

 “The Cave and the Light: Plato Versus Aristotle, and the Struggle for the Soul of Western Civilization” é uma obra de grande fulgor, de Arthur Herman, sobre a história ocidental da filosofia e da ciência, contada em pouco mais de 700 páginas e a partir de um simples conceito: todas as ideias dos últimos 2500 anos são o resultado de um debate continuado entre Platão e Aristóteles. Herman não defende que tudo dependeu deles, não faz deles deuses, mas diz antes que aquilo que forma a força a motriz da evolução da sociedade ocidental, assenta na constante oposição entre os que se sentem influenciados por uma visão do mundo platonista, e aqueles que se sentem influenciados por uma visão do mundo aristotélica. A obra tem sido alvo de alguns ataques, pelo conservadorismo do autor, mas quem quiser aproveitar o trabalho realizado, apoiado por uma boa escrita, encontrará aqui muito para aprender.

dezembro 27, 2020

O Mito de uma Revolução sem Sangue

As histórias que contamos e a História nem sempre estão em sintonia. Prevalecem as teorias que queremos, a verdade distorcida pela preferência do como deveria ter acontecido, desprezando-se os elementos que possam perturbar essa visão una e coerente, mesmo que longe da verdade. O caso dos mortos do 25 de Abril 1974 é um caso paradigmático disso mesmo. Se perguntarem à grande maioria dos portugueses, residente ou não no nosso país, eles responderão como esta Guia ou este Polícia responderam em julho 2015:

Guia em Lisboa: "Desculpe, mas deve estar enganada. Não morreu ninguém no 25 de Abril."

Polícia em Lisboa: "Mortes no 25 de Abril? Aqui? Só pode estar enganada."

E no entanto, os mortos existiram, mas mais importante ainda, as pessoas existiram, tinham famílias que deixaram para trás em nome de uma Revolução. Famílias que os continuam a recordar, apesar de lhes dizermos na cara, enquanto país, que os seus entes nunca existiram. 

"Seis nomes sem biografia, encontrados no virar de uma página, são como seis cadáveres desconhecidos, nos quais por pouco não se tropeça ao cruzar uma esquina (...) João Guilherme de Rego Arruda, José James Harteley Barneto, Fernando Luís Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Giesteira, António Lage e Manuel Cândido Martins Costa (...) Há 45 anos, foi aqui que eles morreram e de imediato começaram a ser esquecidos."

Isto impressiona mais quando o que se diz a seguir se continua a viver nas nossas livrarias em 2020:

"Este livro não falará de personalidades e vedetas da Revolução de 1974 ou, em particular, do Estado Novo; já há tomos suficientes nas livrarias dedicados ao assunto. Só biografias do ditador de Santa Comba Dão encontram-se pelo menos cinco no mercado – as personalidades canhestras da História sempre foram objeto de contemplação."

Fábio Monteiro tenta traçar nestas páginas um conjunto de biografias dos nomes que deram a vida pela nossa liberdade, mas faz mais do que isso, presta um Serviço Público ao país pela Homenagem que realiza aos 6 cidadãos portugueses, fazendo aquilo que o nosso Estado em quase 50 anos nunca teve coragem de fazer. A história do estudante de filosofia açoriano, João Arruda, é particularmente dolorosa de ler, mas não é menos a de Fernando Giesteira, de José Barneto e Fernando Reis, e sim também as daqueles que todos desejam apagar: António Lage e Manuel Costa.

A placa colocada na Rua António Maria Cardoso, não é um reconhecimento do Estado Português, mas de um conjunto de cidadãos anónimos

Apesar de ser um livro de tom jornalístico, Monteiro não se limita a descrever o que aconteceu e suportar com factos da época, relatos escritos ou fotografias, juntando-lhes o essencial que são as entrevistas realizadas com família sobrevivente, ao longo de todo o livro, o autor procura compreender as razões, dá corpo à interpretação do sucedido, não apenas do esquecimento nacional, mas também do esquecimento de cada nome em particular, das suas implicações familiares, mas também políticas.

“Ninguém neste país se lembra do meu pai e dos outros que, como ele, morreram no dia 25 de Abril. As pessoas da minha idade não sabem sequer que houve mortos naquele dia.” Filho de José Barneto

E é isto que continuamos a contar uns aos outros como fica claro nesta citação que Fábio retira da revista Visão Júnior, de 2016, responsável por moldar as crenças dos mais novos:

“Durante o dia, a população de Lisboa foi-se juntando aos militares. E o que era um golpe de Estado transformou-se numa verdadeira revolução. A certa altura, uma vendedora de flores começou a distribuir cravos. Os soldados enfiavam o pé do seu cravo no cano da espingarda e os civis punham a flor ao peito. Por isso se falava de Revolução dos Cravos. Foram dados alguns tiros para o ar, mas ninguém morreu nem foi ferido.”

Uma nota final. Não se pretende com este reavivar de memórias esquecer muitas outras mortes, à mão dos subalternos do Ditador que governou este território por mais de 40 anos. Essas mortes, serão para sempre lembradas, mesmo quando certas franjas da nossa sociedade se erguem para enaltecer alegadas de virtudes de quem ignorou completamente o povo que julgava para si, e para os seus, estar a governar. Nem, também, se pretende apontar o dedo a quem ousou levantar-se e por fim a tão pérfida governação, porque com ou sem mortos, fizeram aquilo que foi necessário para recuperar a Liberdade para todos os portugueses.

novembro 01, 2020

Cinema: Genocídio da Ucrânia 1932-33

Acabei de ver "Mr. Jones" (2019), no TV Cine, e nem acredito que o filme saiu com este título, mas pior ainda que passou quase despercebido. O filme relata a descoberta internacional do Genocídio da Ucrânia nos anos 1932-33 provocada por Estaline, por um jornalista inglês, Gareth Jones. Depois de publicar, em Inglaterra, o que tinha visto na sua passagem clandestina pela Ucrânia, Gareth Jones viu-se alvo de uma campanha de difamação, chegando a ser desdito em plena primeira página do New York Times por um jornalista ganhador do Pulitzer e correspondente em Moscovo. Jones não recuou, conseguiu fazer-se ouvir e dar voz a milhões de mortos na Ucrânia, mas acabaria por pagar com a vida alguns anos mais tarde, às mãos da polícia secreta da URSS. O filme de Agnieszka Holland é duro, mas consegue colocar-nos dentro do mundo relatado, levando-nos a sentir a dor da revolta.
O filme impactou-me bastante porque desconhecia esta passagem da história da Ucrânia e o jornalista Gareth Jones. Os criadores aproveitaram para juntar Gareth Jones num almoço, alegadamente ficcional, com George Orwell, mas ainda assim sustentado pelas palavras do próprio Orwell que diz ter baseado a escrita de "A Quinta dos Animais" (1945) em Estaline e na URSS. Ao longo do filme, vamos ouvindo Orwell recitando a escrita do livro, podendo ligar a alegoria por ele criada à descoberta de Jones.

Recomendo totalmente o visionamento.

outubro 08, 2020

Mantel e a criação de conhecimento pelo drama (Thomas Cromwell vol. 3, 2020)

A leitura deste terceiro volume — "O Espelho e a Luz" (2020) — foi um prazer imenso, tendo sentido a presença de Hilary Mantel sempre ali, no pé de cada página, como que construindo e abrindo caminho para o nosso deleite, com um texto dotado de imponente e virtuosa forma escrita, assim como de enorme detalhe histórico, garantindo a completa ressurreição de um passado esquecido. São três volumes, mas é um livro único, de 2000 páginas, que nos faz atravessar a vida de alguém que viveu como comum mortal no século XVI, conseguindo subir a pulso até ao topo do seu mundo, para terminar de forma brutal. A escrita, altamente elaborada, emana em si uma paixão enorme da autora por Thomas Cromwell, mas acima de tudo pelo trabalho que faz, corroborado pelas entrevistas que foi dando em que se percebe que viveu e respirou a obra durante todos estes anos. Termino a leitura da trilogia com grande admiração pela criadora, nomeadamente pelo engenho na construção criativa a partir de história deixada em meros relatos descritivos, esparsos e dispersos, assim como pelo investimento de 15 anos da sua vida na criação deste legado.

"Thomas Cromwell" (1534) por Hans Holbein e "Hilary Mantel" (2015) por Louise Weir

Em 2017 Mantel foi convidada pela BBC para criar um conjunto de lições, para as conceituadas Reith Lectures. O título escolhido por ela foi: "Resurrection: The Art And Craft", o que serve na perfeição para enquadrar o seu trabalho. Ao longo dessas cinco aulas, assim como das várias entrevistas, percebe-se que o objetivo de Mantel não é apenas escrever sobre um caso histórico, nem criar uma novela. Mantel objetiva mais alto, dizendo-se uma historiadora frustrada, acabou por tentar sê-lo na literatura, e de certa forma podemos dizer que o consegue. Esta trilogia, por ser novelizada, não pode ser vista como ato de historiar, no seu sentido académico, mas o trabalho e o resultado é de tal forma minucioso e colado à documentação histórica, que não se pode simplesmente ignorar. Isto é evidente na sua resposta à possibilidade de alterar factos históricos para intensificar o drama:

"I would never do that. I aim to make the fiction flexible so that it bends itself around the facts as we have them. Otherwise I don’t see the point. Nobody seems to understand that. Nobody seems to share my approach to historical fiction. I suppose if I have a maxim, it is that there isn’t any necessary conflict between good history and good drama. I know that history is not shapely, and I know the truth is often inconvenient and incoherent. It contains all sorts of superfluities. You could cut a much better shape if you were God, but as it is, I think the whole fascination and the skill is in working with those incoherencies." Mantel em entrevista na Paris Review, n. 212, Abril 2015

Por isso não admira a reação da academia britânica, nos anos recentes, com todo um revivalismo de livros e trabalhos à volta da pessoa de Thomas Cromwell, o que quer dizer que ela tocou em pontos chave do conhecimento histórico. No caso de Mantel, a historicidade serve apenas a verosimilhança, ela não está preocupada em ensinar como se passaram as coisas, ou definir com o máximo de certeza os elementos. Ela utiliza o conhecimento existente para de certo modo conseguir entrar pela história adentro e recuperar o sentir humano de quem viveu nesses tempos. A tal ideia de trazer de novo à vida as pessoas de um mundo anterior e dar-lhes voz. Mantel vê-se um pouco como uma "medium", um canal de ligação entre o passado, os seus fantasmas, e o mundo atual. 

"The contradictions and the awkwardness—that’s what gives historical fiction its value. Finding a shape, rather than imposing a shape. And ­allowing the reader to live with the ambiguities. Thomas Cromwell is the character with whom that’s most essential. He’s almost a case study in ­ambiguity. There’s the Cromwell in popular history and the one in academic history, and they don’t make any contact really. What I have managed to do is bring the two camps together, so now there’s a new crop of Cromwell biographies, and they will range from the popular to the very authoritative and academic." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

No fundo, podemos ver esta sua abordagem como um modo distinto de fazer História, por via da dramatização. Tal como na psicologia se usa o drama e o jogo de papéis para levar as pessoas a compreenderem-se melhor a si mesmas, julgo que a História pode usar da dramatização para conseguir chegar mais perto de quem fez o que é relatado nos registos. Porque os registos são na sua maioria listas, descrições, datas, quantidades, elementos soltos e dispersos. Claro que isso não é algo simples de fazer. Repare-se como ela descreve o processo:

"I was a bit surprised by my own process sometimes, because when you’re reading the historical record, I think you’re always looking for history in its purest form. You’re looking for inventories and lists, particularly lists of people’s possessions, and pages of account books, and the prices of things, because there’s no agenda behind those, so you can trust them in a sense.

And I suppose what surprised me quite early in the book was how those would come to life for me. What seems like just an item on a list, or the price of something in a column of figures, would spark off a whole train of thought." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

A académica, Mary Robertson, especialista em Thomas Cromwell, e a quem a trilogia é dedicada por Mantel, refere a sua admiração por esta forma concreta de ir além na produção de conhecimento:

“In some ways it takes a greater skill to work with everything that is known—and from that add your imagination to craft a convincing story—than it does just to make it up.” Mary Robertson no The Huntington, October 2012

Algo que não deixa de ser secundado pelo crítico do NYT, James Wood:

"If you want to know what novelistic intelligence is, you might compare a page or two of Hilary Mantel’s work with worthy historical fiction by contemporary writers such as Peter Ackroyd or Susan Sontag. They are intelligent, but they are not novelistically intelligent. They copy the motions but rarely inhabit the movement of vitality. Mantel knows what to select, how to make her scenes vivid, how to kindle her characters. She seems almost incapable of abstraction or fraudulence; she instinctively grabs for the reachably real." James Wood na New Yorker, Abril 2012

Eu sinto isto na leitura, mas sinto isto ainda mais nas várias entrevistas que fui lendo e vendo dela, no modo como o seu pensamento é ágil, rápido e incisivo. Numa entrevista, deste mesmo ano, pelo espanhol ABC podemos ler Mantel comparando o mundo de há 500 anos com o atual — reis e políticos, a peste e o COVID — e perceber como conhece bem o funcionamento das entrelinhas que regulam o poder e as sociedades. Num ponto, aprofunda a importância do romance histórico de forma muito arguta:

"Se abre una brecha entre lo que sabemos ahora y lo que los personajes sabían en su época. El historiador emplea la mirada retrospectiva, es la herramienta fundamental de su oficio, pero esa mirada puede hacer que sintamos, erróneamente, que somos mucho más listos que las personas que vivieron antes que nosotros. La novela histórica estimula la empatía, el ejercicio crucial de ponernos en el lugar de otro. Nos permite pensar sobre la responsabilidad individual, sobre cómo controlamos nuestra vida (o lo intentamos), sobre la causa y el efecto, sobre el destino, si es que existe tal cosa, y sobre qué consecuencias imprevistas pueden derivarse de nuestras acciones con el tiempo. Puede ser superficial o producir la ficción más profunda sin esfuerzo aparente." Mantel em entrevista ao ABC, Setembro 2020 

Ao terminar o livro, tive de respirar fundo, o adeus a Cromwell é de tal forma intenso e vivido, impossível de realizar por qualquer outro meio que não a literatura, que nos deixa ali estacados. Sim, o livro trata de política, do modo como o poder é manipulado pela retórica e pelo controlo sub-reptício dos atores envolvidos, mas o livro vai bastante além disso, dá-nos a sentir o modo como a vida humana trespassa tudo, como todos os nossos orgãos estão envolvidos. Não é mera cognição, na maior parte do tempo não se discute sequer o quê e o como concretos, mas apenas os sentires, os respirares. Daí que Mantel introduza imenso detalhe sobre roupa e têxteis, sobre cozinha e gastronomia, sobre o tempo e temperatura, sobre a decoração e as telas que se vão pintando. Mantel cria um mundo completo, e coloca os personagens dentro dele a "brincar", o que se passa além disso requer conhecimento histórico prévio nosso, ou pesquisa durante a leitura, mas nem sequer é vital. O foco não é saber quem era o Papa, ou o Imperador, ou Rei de França, mas é a vida tal como vivida naquele círculo restrito de personagens. Como alguns referiram, esta trilogia funciona como uma viagem ao passado, em que nos é dado a ver uma parte do que se passou, ou um espelho para esse passado como diz Mantel:

"But I’m interested in a way that as you go through your life, your memories change. It’s quite wrong to say that the past doesn’t change. It changes behind you, and every time you try to remember back, in a sense, you’re making a fresh version. What you’re doing is you’re holding up a mirror, and really, that’s why the book is called The Mirror and the Light, because it’s a mirror to the books that have gone before and it has fresh light." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

E talvez funcione tão bem porque Mantel manteve-se fiel a Cromwell toda a trilogia. O livro poderia ser uma grandiosa história recontada, com detalhes e perspetivas de múltiplas personagens, algo comum e que serve para nos oferecer uma análise menos enviesada, porque podemos comparar as diferentes perspetivas. Mantel não teve pudor em fixar-se detrás do olhar de um único personagem, e um personagem que os registos históricos tendem a mostrar como maquiavélico, logo muito pouco credível. Daí que tudo o que vamos vendo parece embater contra o que sabemos daqueles tempos, porque aquilo que estamos ali a viver (reviver) é pelos olhos de Cromwell. Ele pode ter sido o maior filho-da-mãe da história inglesa, mas na sua cabeça ele era um visionário e o maior benfeitor de sempre, e é com o isso que Mantel nos obriga a debater. Aliás, no primeiro livro deixei-me de tal forma seduzir que acreditei em tudo o que ele dizia, no segundo e terceiro livro, já ciente do que tinha na minha frente, comecei então a debater-me com o personagem, e tudo se torna ainda mais instigante. O que ele pensa, como os outros reagem a ele, de que o vão acusando, e como conseguimos nós interpretar tudo isso. Porque repare-se que nenhuma vez o narrador/autor, muito pouco presente, sai em defesa de Cromwell ou de qualquer outro, o trabalho aparece como se estivéssemos a assistir àquela realidade, mas pelos olhos dele, cabendo-nos identificar o que pode ser mais real ou menos real.

Diga-se que esta forma de contar histórias, apesar de estarmos diante de prosa, parece-se muito mais com o drama. Existe uma quase ausência de reflexão ou discussão por parte do narrador/autor e mesmo do próprio personagem através de quem vemos a realidade. Nós estamos dentro da cabeça de Cromwell, mas não vemos o mundo através dos seus pensamentos e reflexões, apenas o vemos através dos seus olhos. Ou seja, Mantel, ao contrário de Pessoa que nos atira para dentro do emaranhado de pensamentos de Bernardo Soares, coloca-nos imediatamente por detrás dos seus olhos. A narração descreve continuamente o momento presente, o que está a ser feito, a quem como e porquê. Vemos a ação a decorrer, como se Mantel estivesse a encenar o passado, e não a discorrer sobre ele. Mas nem por isso, ou talvez por isso, a escrita não deixa de ser altamente elaborada, e por conseguinte a leitura laboriosa no descortinar do que está a acontecer em cada momento. 

De certa forma, esta abordagem enviesada por um olhar e pelo modo presente contribuiu para a definição do estilo de Mantel e para criação de um engajamento continuo dos leitores, como ela explica:

"the writer knows the outcome, so does the reader - but the characters don’t. You have to persuade your readers to be in 2 places at once. They can’t suspend their knowledge of what happened – they’re above the characters, looking down on them. But at the same time, if you’ve done your job, they’re moving forward with the characters, inhabiting their world. The suspense grows in the gap; the reader wants to know not so much what happens, as how the characters will react when it happens. The reader has to hold his or her own knowledge in suspension – hold reaction back. That’s what creates tension. You see them rushing towards their fate – you know, you fear for them, but you can’t stop them." Mantel entrevistada pelo Iowa Review, Junho 2017

É por isso que apesar da história de Inglaterra me dizer pouco ou nada, menos ainda um tempo dessa que se tornou popular por intrigas do foro privado da vida de reis e rainhas, li até ao final e com tanto prazer. Não me interessava em particular saber mais sobre Henry VIII, Anne Boleyn, Anne de Cleves ou Thomas Cromwell, mas o mundo recriado por Mantel, de tão vívido, gerou uma impressão continua tão forte que o meu engajamento nunca se desligou. Aliás repare-se como é a própria autora a dizer isto sobre o tema histórico em questão:

"When I began work on the French Revolution, it seemed to me the most interesting thing that had ever happened in the history of the world, and it still does in many ways. I had no idea how little the British public knew or cared or wished to know about the French Revolution. And that’s still the case. They want to know about Henry VIII (...) the imagination is parochial. I couldn’t have picked anything less promising, from a commercial point of view, than the French Revolution." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

setembro 12, 2020

Schopenhauer por Yalom

"A Cura de Schopenhauer" (2000) do psicanalista-romancista Irving D. Yalom é mais uma viagem de associação de ideias entre a Filosofia e a Psicologia. Depois de "Quando Nietzsche Chorou" (1992) recuou no tempo, à maior influência de Nietzsche, para nos falar de Arthur Schopenhauer. A abordagem é distinta do primeiro livro, desta vez não temos Schopenhauer em cena, antes temos alguém que o segue religiosamente e precisa de se tratar. O tratamento segue de perto as teorias de Schopenhauer, e enquanto dura Yalom aproveita para intercalar uma breve história da vida de Schopenhauer. Se o tratamento não me surpreendeu, já que as abordagens apresentadas pouco vão além do conhecimento que já tinha da obra de Schopenhauer, a sua breve história, que desconhecia, foi o que mais me impressionou. É um livro interessante e instigante, mas ligeiro, talvez menos por culpa de Yalom e mais do próprio Schopenhauer.

Há 25 anos, enquanto passava por uma depressão causada por um coração partido, li “Dores do Mundo” de Arthur Schopenhauer. O impacto foi intenso, poderoso, não posso dizer com certeza, mas acredito que me ajudou a sair do buraco, o que está em consonância com muito do que se discute neste livro. No entanto, agora ao reler muitas dessas ideias, que na altura revolucionaram a minha noção do mundo, senti-as ultrapassadas. Schopenhauer anteviu um conjunto de ideias a que a biologia e psicologia só iriam chegar 50 ou 100 anos depois, porém parece ter-se deixado enredar por elas, não tendo nunca conseguido progredir na compreensão de si mesmo ou do mundo.

De forma sucinta, Schopenhauer apresenta algumas ideias revolucionárias para o seu tempo, nomeadamente quando trabalha o amor e a paixão como atributos biológicos que nos impelem, enquanto espécie, para a reprodução. Esta ideia antecede, muitos anos, o surgimento da Teoria da Evolução Humana de Darwin, num tempo em que ainda não existia sequer a disciplina da psicologia, quanto mais psicologia evolucionária. Deste modo, Schopenhauer retira o peso do indivíduo e coloca-o sobre a humanidade. Não somos únicos, não somos nós que desejamos, é o facto de sermos humanos que nos compele a esse desejo, à "vontade de". Para Schopenhauer somos uma espécie de máquinas biológicas com instruções pré-gravadas das quais não podemos escapar. Somos continuamente levados a querer mais e mais de tudo, a desejar ter ou conseguir, para assim que se consegue o que se desejou, nos deprimirmos até que reiniciamos um novo ciclo de querer e desejo. Schopenhauer escreveu a sua obra máxima, “O Mundo como Vontade e Representação” sobre a vontade e o desejo, e passou toda a sua vida ao redor destes conceitos, o que fez afastar o meu interesse e não chegar nunca a terminar a leitura dessa sua obra maior.  Deixo um excerto da "A Cura de Schopenhauer" que trata a ideia central:

“Todos os temas principais da vida passam pela ousada análise filosófica de Schopenhauer, inclusive o desejo sexual, assunto que os filósofos anteriores evitaram. Ele iniciou a discussão com uma afirmação surpreendente sobre a força e omnipresença desse desejo.

[Schopenhauer] “Depois do amor à vida, o sexo é a maior e mais ativa força e ocupa quase todas as vontades e pensamentos da porção mais jovem da humanidade. Ele é a meta final de praticamente todos os esforços humanos. Exerce uma influência desfavorável nos assuntos mais importantes, interrompe a toda hora as ocupações mais sérias e às vezes inquieta por algum tempo as maiores mentes humanas. (...)

(...) A resposta de Arthur (...) antecipa em um século e meio muito do que iria tratar a psicologia evolucionária e a psicanálise. Ele afirma que não somos guiados pela nossa necessidade, mas pela necessidade da nossa espécie. "Embora os dois envolvidos ignorem, o verdadeiro fim de toda história de amor é gerar uma criança", continua ele. "Portanto, o que realmente dirige o homem é um instinto dirigido para o que é melhor para a espécie, embora o homem pense que procura apenas a intensificação do próprio prazer".”

O problema de Schopenhauer foi a sua resignação à descoberta desta nossa condição. Podemos saber que a nossa biologia nos orienta e predestina, mas sabemos também que a nossa psicologia nos liberta. Somos parte natureza, parte cultura, não somos só uma, nem outra, somos fruto da mistura. Julgo que Yalom acaba dando conta dessa questão ao querer aqui curar Schopenhauer, mas fá-lo de uma forma muito indireta. Gostaria de ter visto uma maior incisão na questão, contudo compreendo que Yalom não pretendia redimir Schopenhauer, nem alterar a História do filósofo. 

Como disse, na abertura do texto, a história de Schopenhauer foi algo que me impressionou, a sua origem familiar, nomeadamente a sua mãe, Johanna Schopenhauer. Pode ler-se a sua pessoa de muitas formas, mas a emancipação realizada após a morte do marido, a sua entrada em grande no mundo das letras alemãs, assumindo a sua posição de mulher, numa altura em que as mulheres não eram aceites nos círculos intelectuais, é impressionante. Aliás, fez-me pensar sobre o quanto da obstinação e lado destemido da personalidade de Schopenhauer não foi herdado da sua mãe, algo que fica patente na forma como chocaram. Por outro lado, um ponto relevante, apesar de nada de novo, é o constatar mais uma vez que a fama e o sucesso da arte nada têm que ver com o valor das obras. Johanna foi uma das mulheres mais lidas na Alemanha enquanto viveu, tendo escrito cerca de 20 livros. Porém, do que escreveu apenas um livro foi traduzido para inglês, e outro para espanhol, sendo muito difícil encontrar livros seus, com a sua obra praticamente esquecida. Já o filho, que enquanto vivo pouco ou nada vendeu, tendo vivido da pequena herança que o pai lhe deixou, tem hoje a sua obra traduzida em dezenas de línguas, continuando a ser editada, impressa e vendida por todo o mundo.

setembro 03, 2020

Tragam os Corpos (Thomas Cromwell, volume 2)

A saga continua com grande desenvoltura, a descrição e o enredo funcionam em torrente tornando a leitura deste segundo livro muito mais rápida. Ajuda também o facto de Mantel ter aligeirado o labirintismo da escrita, é tudo bastante mais claro, ou então já aprendemos a respirar nas suas malhas. Por outro lado, fiquei um pouco desgostoso com a primeira parte na qual Mantel parece querer corrigir algum exagero do primeiro tomo no que toca a pessoa de Thomas More, e acaba por apontar o dedo a Cromwell. Passa mesmo a ideia que Mantel parece querer rever o que disse, talvez por ter sofrido duras críticas dos historiadores, não sei, mas sei que o seu Cromwell perde brilho, torna-se menos visionário e mais vingativo, afastando-me dele a ponto de a meio do livro dizer para mim que já não leria o terceiro. Contudo a segunda parte funciona num crescendo tão grande, imparável em direção à apoteose final, fazendo esquecer tudo o que de menos bom tinha encontrado.
"O Livro Negro" é a tradução portuguesa de "Bring Up the Bodies"

Contribui talvez para esta minha percepção mais crítica de Cromwell e benevolência com More, o facto de entre os dois livros ter revisto o filme "A Man for All Seasons" (1966) no qual Cromwell é muito mal tratado, e More é elevado a patamar de santo. Mas tudo isso se apaga porque este segundo tomo já não pertence a More mas a Boleyn. É ela quem sobe ao cadafalso, e assim percebemos, pela lógica, quem subirá ao cadafalso no final do terceiro volume.
Tower of London, local central da ação desta saga, para onde eram enviados os nobres para aguardar julgamento

Este livro tem as suas nuances, momentos altos, tal como por exemplo a discussão política sobre o que deve ou não deve fazer o Estado:

“It was too much for the Commons to digest, that rich men might have some duty to the poor; that if you get fat, as gentlemen of England do, on the wool trade, you have some responsibility to the men turned off the land, the labourers without labour, the sowers without a field. England needs roads, forts, harbours, bridges. Men need work. It’s a shame to see them begging their bread, when honest labour could keep the realm secure. Can we not put them together, the hands and the task? But Parliament cannot see how it is the state’s job to create work. Are not these matters in God’s hands, and is not poverty and dereliction part of his eternal order? To everything there is a season: a time to starve and a time to thieve. If rain falls for six months solid and rots the grain in the fields, there must be providence in it; for God knows his trade. It is an outrage to the rich and enterprising, to suggest that they should pay an income tax, only to put bread in the mouths of the workshy. And if Secretary Cromwell argues that famine provokes criminality: well, are there not hangmen enough?”

Mas talvez o ponto mais alto seja mesmo a descrição que Cromwell faz do modo como se gere a comunicação com um Rei, no caso particular com Henry VIII é genial. Claro que o génio aqui é Mantel, a forma como ela planeia e preenche e todas as frentes, e imagina o xadrez político em redor do Rei:

“As a child, a young man, praised for the sweetness of his nature and his golden looks, Henry grew up believing that all the world was his friend and everybody wanted him to be happy. So any pain, any delay, frustration or stroke of ill-luck seems to him an anomaly, an outrage. Any activity he finds wearying or displeasant, he will try honestly to turn into an amusement, and if he cannot find some thread of pleasure he will avoid it; this to him seems reasonable and natural. He has councillors employed to fry their brains on his behalf, and if he is out of temper it is probably their fault; they shouldn’t block him or provoke him. He doesn’t want people who say, ‘No, but…’ He wants people who say, ‘Yes, and…’ He doesn’t like men who are pessimistic and sceptical, who turn down their mouths and cost out his brilliant projects with a scribble in the margin of their papers. So do the sums in your head where no one can see them. Do not expect consistency from him. Henry prides himself on understanding his councillors, their secret opinions and desires, but he is resolved that none of his councillors shall understand him. He is suspicious of any plan that doesn’t originate with himself, or seem to. You can argue with him but you must be careful how and when. You are better to give way on every possible point until the vital point, and to pose yourself as one in need of guidance and instruction, rather than to maintain a fixed opinion from the start and let him think you believe you know better than he does. Be sinuous in argument and allow him escapes: don’t corner him, don’t back him against the wall. Remember that his mood depends on other people, so consider who has been with him since you were with him last. Remember he wants more than to be advised of his power, he wants to be told he is right. He is never in error. It is only that other people commit errors on his behalf or deceive him with false information. Henry wants to be told that he is behaving well, in the sight of God and man. ‘Cromwell,’ he says, ‘you know what we should try? Cromwell, would it not reflect well on my honour if I…? Cromwell, would it not confound my enemies if…?’ And all these are the ideas you put to him last week. Never mind. You don’t want the credit. You just want action.”

Enquanto lia estes livros fui também pensando o quão errado estamos quando pensamos que ser Rei, ou nobre, significa poder fazer tudo o que se quer. Ter acesso a tudo como mais ninguém. Ser nobre implica um tal espartilho de responsabilidades sociais que não deixa espaço para mais nada. Qualquer passo ao lado pode ditar a perda dessa nobreza, e o fim do aparente sonho cor-de-rosa. Ao longo destes dois livros percebemos como Henry VIII queria apenas um filho varão, mas toda a sua vontade, dinheiro e súbditos não eram suficientes para lhe dar o que mais queria. Percebemos também que Boleyn foi mais do que um capricho, foi uma necessidade imposta pelo espartilho das obrigações de ser-se Rei. Aliás, isto mesmo parece ter sido o que esteve na base da recente saída de Harry da monarquia britânica, pois se lá continuasse teria de obedecer a um conjunto tão apertado de protocolos que dificilmente se poderia considerar como uma pessoa livre.

Anne Boleyn in the Tower (1835) de Édouard Cibot

Mantel é brilhante na escrita, mas são os rasgos psicológicos que nos agarram que nos fazem sentir aquele mundo-história e nos permitem não só viajar no tempo mas aprender com as vidas de pessoas que à partida nada teriam que ver connosco. São homens e mulheres, não são deuses, carregados de fragilidades, receosos do dia de amanhã como qualquer outro mortal que foi posto neste mundo para todos os dias lutar pela sua preservação e sobrevivência.

Nota final para a tradução. A tradução do primeiro livro — Maria Beatriz Sequeira — está primorosa, a do segundo livro — Miguel Freitas da Costa — está boa, não posso dizer que seja inferior, mas senti-a diferente, não sei o quanto terá que ver com as próprias alterações introduzidas por Mantel no seu discurso. Mas se puxo este assunto é porque me desgostou a tradução do título. Se no primeiro se manteve um titulo inglês, ainda que sendo um nome, quem é que os autorizou a mudar o nome da obra criada por Mantel? Se em inglês se intitula "Bring Up the Bodies" e a frase aparece traduzida quase no final do livro como "Tragam os Corpos", porque é que o livro em português vai assumir o título de um capítulo muito anterior — O Livro Negro. Este título diz respeito a um conjunto de códigos de conduta real que ainda que imensamente relevantes, e relacionados com as tais questões de protocolo, mas distintas daquilo que é o objeto de destaque escolhido pela autora, e que está mais focado na apoteose por ela criada? Não se compreende, não deixando de irritar esta vontade de se procurar sobrepor ao autor.

Anne Boleyn, a única desta saga a ser deacapitada com espada, uma suposta clemência do Rei (autor desconhecido)

agosto 23, 2020

Thomas Cromwell, volume 1

“Wolf Hall” (2009) de Hillary Mantel, à semelhança de “Guerra e Paz” (1868) de Leo Tolstói, apresenta-se como ficção histórica, no sentido em que oferece primazia à criação de um mundo-história ficcional construído sobre alicerces de factos reais. O cenário escolhido por Mantel é o do reinado de Henry VIII, que ficou conhecido, além do divórcio com Catarina e o casamento, à revelia do Papa, com Anne Boleyn, por impor a Reforma Protestante em Inglaterra, terminando com a subjugação da coroa britânica a Roma, no século XVI. Iniciada na Alemanha por Lutero, a Reforma encontraria em Inglaterra dois rivais: Thomas More contra, Thomas Cromwell a favor. Mantel resolveu ir contra à corrente e criar o mundo de “Wolf Hall” a partir dos olhos da pessoa mais mal-amada, Thomas Cromwell, produzindo uma obra de grande relevo estético e interesse histórico. Este livro é apenas o primeiro volume de uma trilogia, mas podemos ver nele, desde já, uma forma de escrita única assim como uma representação bastante audaz da pessoa de Thomas Cromwell.

Thomas More e Thomas Cromwell, ambos pintados por Hans Holbein, o primeiro em 1527, o segundo em 1533

A Forma Escrita

Começando pela escrita, esta é não-linear, seguindo Joyce, Woolf ou Faulkner, mas não é fluxo de consciência, é algo que podemos aproximar mais de Lobo Antunes, no sentido em que o desenvolvimento narrativo se faz por cenas, aparentemente desligadas, que vão ganhando forma apenas à medida que vamos avançando e interligando as mesmas, como peças de puzzle, permitindo-nos reconstruir, mentalmente, e compreender o que nos está a ser apresentado. 

Seria suficiente para elevar o patamar de exigência à leitura, mas Mantel introduz ainda variações no verbo da narração e no ponto de vista. Uma narrativa é uma história que aconteceu, é passado, mais ainda quando falamos de há 500 anos atrás, no entanto Mantel narra tudo no tempo presente. Não diz “ele fazia” ou “atravessaram o rio”, mas antes diz “ele faz” ou “estão a atravessar”. A isto junta o facto de na grande maioria das vezes em que se quer referir a Thomas Cromwell, que serve o nosso ponto de vista na terceira-pessoa, se lhe referir apenas como “Ele”, o que com múltiplos personagens em cena baralha qualquer leitor, a não ser que tenha em mente que o “Ele” é sempre, em 95% das vezes, Thomas Cromwell.

Diria assim que mais do que a não-linearidade, é a ação sempre no presente e a menção ao protagonista, quase encriptada, como “ele”, que tornam a leitura laboriosa. Mas por outro lado, é também essa forma verbal e a constante referência a “ele” que criam uma forma de contar única que confere ao texto um maior poder imersivo. Por um lado, o presente cola-nos ao momento da leitura, e prende a nossa atenção perante algo que está a acontecer ali e agora, enquanto o “ele”, cria a sensação de estar sempre presente, ao pé de nós. 

Claro que para o aumento de imersão, ou de engajamento, contribui a dificuldade da leitura e isso é algo que a própria não-linearidade procura fazer. Os vários estudos que têm sido realizados dão conta de maior memorização e atenção das pessoas ao que é dito quando o texto é mais difícil de ler ou de compreender. A razão prende-se com a necessidade de despender mais energia na descodificação o que acaba por tornar o momento mais envolvente e ao mesmo tempo mais fácil de registar na memória.

O Olhar de Thomas Cromwell

É inevitável começar por ligar a profissão de Cromwell com a inicial de Mantel, ambos advogados, uma profissão ligada à litigação, ao lidar com as palavras e os múltiplos sentidos dados pelas pessoas, algo que fica bem presente no seguinte excerto:

“When you are writing laws you are testing words to find their utmost power. Like spells, they have to make things happen in the real world, and like spells, they only work if people believe in them.”

Mas mais importante do que isso é o facto de Thomas Cromwell ter nascido como um pobre e desconhecido, e desde essa condição ter chegado, sozinho, ao cargo mais poderoso do país. Um verdadeiro “self-made man”, um hino à meritocracia. Cromwell aprendeu muito, enquanto jovem, percorrendo metade da Europa. Tornou-se advogado, contabilista, poliglota e era dono de uma memória invejável, como se resume a determinada altura:

“It is said he knows by heart the entire New Testament in Latin, and so as a servant of the cardinal is apt – ready with a text if abbots flounder. His speech is low and rapid, his manner assured; he is at home in courtroom or waterfront, bishop's palace or inn yard. He can draft a contract, train a falcon, draw a map, stop a street fight, furnish a house and fix a jury. He will quote you a nice point in the old authors, from Plato to Plautus and back again. He knows new poetry, and can say it in Italian. He works all hours, first up and last to bed.”

Cromwell foi um polimata, um renascentista, alguém extremamente dotado com múltiplas competências, só assim se explica que tenha conseguido elevar-se numa hierarquia na qual o sangue tudo determinava. Se não tinhas brasão de família, não existias, simplesmente era impossível ser-se considerado para o que quer que fosse. No entanto Cromwell conseguiu tornar-se no homem mais temido de toda a Inglaterra. A sua capacidade para persuadir os outros a fazerem o que pretendia era infindável, e não se fazia de meras palavras, mas de um conjunto de estratégias de comunicação, verbais e não verbais, assim como de silêncios, ações e inações. Cromwell era aquele que tudo observava, compreendia, calculava e exprimia. A sua visão do mundo era como a de um jogador de xadrez, sempre em jogo.  

“One of the things I’m really exploring is the universal question of what’s luck? What’s fate? Does anybody make their own luck? How far can you write your own story? And he’s someone whose whole career ought not to be possible. But at some point in early middle age, he just grabs the pen and starts writing it.” [Mantel em entrevista ao The Guardian, 22.2.2020]

Este modo de estar é o que explica a forma de escrita adotada por Hillary Mantel. A não-linearidade e o tempo presente, não são meras decorações estéticas, a forma reflete a personalidade de Cromwell, alguém que era quase impossível de descodificar, alguém que estava sempre presente quando era preciso, alguém que nunca era o centro, mas era sempre “ele” que estava lá para o que fosse necessário. A memória e o conhecimento imensamente detalhado de todos e tudo, tornou-o numa peça central, primeiro para o cardeal Wolsey, e depois para o rei Henry VIII, era ele quem lhes valia, sendo muito mais do que um braço direito. Como disse Mantel em entrevista:

"I am interested in the fact that in this era, kingship is coming into its full glory, in England and elsewhere; kings are insisting on their godlike status, their divine appointment. But who really has the power? Increasingly, it’s not the man with the sceptre, it’s the man with the money bags.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

Por outro lado, a personalidade e a ação de Cromwell, tal como trabalhada por Mantel, abre todo um novo mundo de perspectivas, mostrando uma Inglaterra a caminho do humanismo, veja-se mais este excerto da entrevista:

 “When we look at what connects that age with this, I am interested in Cromwell’s radicalism; in the tentative beginnings of the notion that the state might take a hand in creating employment, that the economic casualties of the system deserved practical help; that poverty has human causes and is preventable, rather than being a fate ordained by God. I am disturbed to think that we might be going backward in this regard, back to stigma and fatalism and complacency.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

A Rivalidade entre More e Cromwell

Se não bastasse o trabalho realizado por Mantel sobre Cromwell, o outro ponto historicamente inovador relaciona-se com a apresentação de Thomas More que é quem nos serve o climax deste primeiro volume. More é relembrado como o contrário de Cromwell, também advogado, mas um grande académico, respeitado por toda a universidade Europeia, autor de "Utopia" (1516). Dono de uma dignidade irrevogável, morreu como Sir, tendo sido canonizado em 1935, sendo hoje referenciado como Santo. Para o público em geral, o filme de 1966 "A Man for All Seasons" dá conta da importância da sua pessoa. 

Contudo, o interessante da abordagem de Mantel é quase virar a leitura de ambos os Thomas, ao contrário. Mantel dá conta de atos terríveis cometidos por More, de verdadeira inquisição, com a defesa e aplicação de tortura e fogueiras de hereges para todos os que decidissem abraçar a Reforma Protestante. No fundo, a grande questão desta obra está longe de ser o divórcio e a concubina, mas é antes a Igreja, Inglaterra e o humanismo. A humanização da vida pública que deixa para trás os misticismos religiosos. Repare-se como Mantel dá conta das acusações a Cromwell de que ele teria destruído os grandes mosteiros e conventos ingleses:

"‘If you ask me about the monks, I speak from experience, not prejudice, and though I have no doubt that some foundations are well governed, my experience has been of waste and corruption. May I suggest to Your Majesty that, if you wish to see a parade of the seven deadly sins, you do not organise a masque at court but call without notice at a monastery? I have seen monks who live like great lords, on the offerings of poor people who would rather buy a blessing than buy bread, and that is not Christian conduct. Nor do I take the monasteries to be the repositories of learning some believe they are. Was Grocyn a monk, or Colet, or Linacre, or any of our great scholars? They were university men. The monks take in children and use them as servants, they don't even teach them dog Latin. I don't grudge them some bodily comforts. It cannot always be Lent. What I cannot stomach is hypocrisy, fraud, idleness – their worn-out relics, their threadbare worship, and their lack of invention. When did anything good last come from a monastery? They do not invent, they only repeat, and what they repeat is corrupt. For hundreds of years the monks have held the pen, and what they have written is what we take to be our history, but I do not believe it really is. I believe they have suppressed the history they don't like, and written one that is favourable to Rome.’"

A questão que move Cromwell não é teológica, saber se Deus existe ou não, se o Papa está investido de poderes divinos ou não. Cromwell não foi um académico, era advogado e contabilista. Mais, ele era um self-made man, alguém vindo do nada, ciente do que esse nada representava. O que o movia era conseguir obter mais e melhor, mas não apenas para si. Cromwell ajuda imensas pessoas, financeiramente e de muitas outras formas. Cromwell traz para casa crianças que perderam os pais, ou que se encontram abandonadas, mulheres perdidas, dá-lhes um teto, não para as explorar, mas para as fazer florescer, como diz a certa altura:

 “You learn nothing about men by snubbing them and crushing their pride. You must ask them what it is they can do in this world, that they alone can do.”

Cromwell fez isto porque apreendeu o mundo que habitava como ninguém, compreendeu que o mundo era muito mais do que aquilo que a Igreja queria vender, ou que a cor do sangue corrente nas veias era igual para todos. Cromwell elevou-se ao compreender que aquilo que fazia mexer o mundo era algo muito mais direto e efetivo do que o sangue ou a espiritualidade, como faz neste excerto: 

“‘They are my tenants, it is their duty to fight.’
But my lord, they need supply, they need provision, they need arms, they need walls and forts in good repair. If you cannot ensure these things you are worse than useless. The king will take your title away, and your land, and your castles, and give them to someone who will do the job you cannot.’
‘He will not. He respects all ancient titles. All ancient rights.’
‘Then let's say I will. Let's say I will rip your life apart. Me and my banker friends.
How can he explain that to him?’
'The world is not run from where he thinks. Not from his border fortresses, not even from Whitehall. The world is run from Antwerp, from Florence, from places he has never imagined; from Lisbon, from where the ships with sails of silk drift west and are burned up in the sun. Not from castle walls, but from counting houses, not by the call of the bugle but by the click of the abacus, not by the grate and click of the mechanism of the gun but by the scrape of the pen on the page of the promissory note that pays for the gun and the gunsmith and the powder and shot.'”


Claro que toda esta visão magnânima de Cromwell faz levantar muitas dúvidas, e alguns estudiosos referem mesmo que comporta falsidade. Numa entrevista ao The Guardian, John Guy, um dos mais reputados historiadores da época dos Tudor, ataca Mantel, aceitando as suas qualidades como escritora mas desprezando a visão histórica por si apresentada. Para John Guy, Mantel deixou-se levar por relatos sem credibilidade, de pessoas que tinham interesses e não diziam a verdade, mas apenas o que lhes interessava. Por outro lado, se ouvirmos outros académicos, como Diarmaid MacCulloch, vamos perceber o quão certa Mantel pode estar. Na verdade, Mantel não é historiadora, nem se assume enquanto tal, mas se existe algo que este seu livro demonstra é o modo como a monarquia e o Estado funcionavam, a política sem si, o quanto era decidido por jogadas assentes na mentira, bluff e suborno, e o quanto tudo isso faz parecer tudo uma grande ilusão, com o sentido da verdade a esfumanr-se.


Sendo a leitura laboriosa, deixo algumas ligações que ajudarão a preparar a mesma:

The World of Wolf Hall, A reading guide to Hilary Mantel’s Wolf Hall and Bring Up the Bodies,  2020

A Man for All Seasons, 1966, de Fred Zinnemann (trailer)

The Other Boleyn Girl, livro de Philippa Gregory 2001 ou filme 2008 com Natalie Portman e Scarlett Johansson (trailer).

. Thomas CromwellThomas More e Henry VIII

. Reforma protestante

. A BBC fez uma série (2015) a partir do livro, pode valer a pena ver no final.


Nota: texto usado no original, em inglês, por facilidade de transcrição. Lido na versão portuguesa, da Editora Civilização.

agosto 03, 2020

O irmão "Lebensborn"

O livro "Meio-Irmão" (2001) de Lars Saabye Christensen tem dois grandes atributos, a voz interior do personagem principal, Barnum, que nos dá a sentir com particular intensidade e profundidade a vida na Noruega ao longo de toda a segunda metade do século XX. Este atributo funciona no suporte da saga familiar e coming-of-age contribuindo para a universalidade e consequente interesse internacional. Contudo esse interesse não tem comparação com o sucesso obtido no país, onde foi fortemente aclamado e recebeu vários prémios, e a razão de o ser é a existência de um segundo atributo que tem que ver com o contexto histórico da própria Noruega no pós-Segunda Grande Guerra.
O motivo que lança toda a trama, a violação da jovem Vera, tem uma leitura histórica na Noruega que não tem em mais lado nenhum, está completamente ausente de análises críticas francesas, inglesas ou americanas (L'ExpressThe GuardianSan Francisco Chronicle, em defesa destes críticos podemos dizer que escreveram as suas análises em 2004, quando este tema era ainda pouco ou nada conhecido fora da Noruega), não tendo encontrado referências mesmo no Goodreads, pelo menos em português ou inglês. A violação acontece no exato dia em que a guerra terminou, 8 maio 1945, um dia muito feliz em toda a Europa, incluindo na Noruega, contudo, nem tudo o que estava em marcha termina porque se anuncia o fim. Quando os alemães invadiram a Noruega, os seus soldados receberam ordens para engravidarem o maior número de norueguesas possível. O programa formal alemão, com a designação Lebensborn ("fonte da vida") defendia que como povo nórdico, deteriam sangue verdadeiramente ariano, por isso era importante fertilizar. Mas isso foi apenas a primeira parte do filme de horror, quando os alemães foram mandados embora, as mulheres que ficaram sozinhas com filhos dessas violações ou pseudo-relações, foram ostracizadas, muitas delas tiveram de abandonar o país, sozinhas, com as crianças. 
Imagem do videojogo "My Child Lebensborn" (2018) (análise), em que ajudamos uma criança que vive com uma senhora que o adotou na busca pelos seus pais (o pai alemão foi-se embora, a mãe norueguesa não o quer).

Descobri este mesmo assunto apenas há 2 anos, quando saiu um pequeno jogo documental norueguês, "My Child Lebensborn" (análise do jogo). Agora, por causa de Christensen, fui procurar mais informação e fiquei a saber que o livro saiu na Noruega quando se começou a discutir o perdão do Governo às vítimas dessa ostracização, em 2001, um perdão formal que só chegaria 18 anos depois, na comemoração dos 70 anos da Declaração dos Direitos Universais do Humanos (fonte). Mais, que as mulheres não foram apenas mandadas emboras, muitas, assim como os seus filhos, foram institucionalizadas, tendo nessas instituições continuado a sofrer abusos sexuais, e as crianças idem, sendo usadas como cobaias ou ainda torturadas — algumas eram atadas às camas durante 16 horas por dia, obrigadas a comer à força, se vomitassem tinham de comer o próprio vomitado (fonte). Lendo isto, o guião cinematográfico que surge quase no final, para o suposto filme “Engorda”, ganha uma dimensão nova e fortíssima, muito maior do que o simples e fácil contraponto com “Fome” de Hamsun. Aliás, podemos juntar a esta leitura o facto da avó de Barnum iniciar a obra a queimar os livros de Hamsun por causa do obituário que ele tinha acabado de escrever a Hitler.
Os nazis mandaram criar maternidades para receber as mulheres grávidas dos soldados e os seus filhos. Provavelmente recebendo tratamento preferencial, o que serviria para aumentar o ódio dos noruegueses após o fim da guerra.

Um exemplo famoso, que encontrei agora também, destas crianças é Anni-Frid Lyngstad, cantora dos Abba, filha de uma norueguesa e de um alemão, que no fim da guerra, foi obrigada a emigrar com a mãe para a Suécia, tendo perdido a mesma com a 2 anos e ficado órfã na Suécia onde cresceu. Ela foi um dos rostos do ativismo norueguês na exigência de reparações e pedido de desculpas (fonte).
Anni-Frid Lyngstad, membro dos Abba

Contextualizados historicamente, torna-se mais fácil, ou diferente, compreender o que Christensen está a fazer. Muito do que parecia totalmente desprovido de uma causa, e eu confesso que cheguei a invocar Tchékov ("Nunca se deve colocar uma espingarda carregada em palco se não for para a disparar"), porque Lars parecia lançar os eventos e não querer dar explicações. Parecia querer apenas gerar confusão na nossa cabeça, abrindo conflitos, mas não identificando o quem ou porquê. Contudo para compreender era preciso saber, ser-se norueguês ajudaria, não o sendo obriga-nos a procurar, a ir atrás da História daquele país. Quando chegamos ao substrato que suporta tudo aquilo que acabámos de ler, sentimos um baque enorme. Parece impossível, e por o parecer é que Lars teve de escrever um livro que por vezes borda o absurdo. O tom é cómico, mas não se pode qualificar de comédia-negra, talvez antes de comédia surreal, porque, também talvez, não fosse possível lidar com tamanha tragédia de outro forma. 

Claro que podemos apontar o "dedo" a Christensen. Ele coloca-se a jeito na construção de confusão, sendo a mais flagrante, a colagem de uma característica física do violador (um dedo cortado) ao homem com quem Vera acaba mais tarde por casar e ter o segundo filho, Barnum, o meio-irmão de Fred. Seria então violador um alemão em fuga, ou teria sido um simples norueguês mas altamente perverso? Fico com a ideia que para Christensen não era suficiente a ideia do violador alemão abstracto, porque na verdade aquelas mulheres ao serem ostracizadas foi como se fossem violadas uma segunda vez. Por isso, Christensen parece querer colocar o dedo bem dentro da ferida, com esta confusão de dedos cortados, apontando o “dedo” aos alemães, mas também a toda a perversidade norueguesa.

Ao longo do livro, o autor, insistentemente e pela voz de mais do que um personagem, diz: "Não é o que vês que é o mais importante, mas o que pensas que vês." Esta frase dá conta do que vamos presenciando ao longo de todo o livro, e recorda-nos que não chega ver, é preciso refletir, é preciso interpretar. Alguns críticos, muito erradamente, viram na ausência de explicações de Lars, um sentido existencialista, de que a vida é assim porque nem tudo pode ser explicado. Ora Lars, vai muito além disso, ele é verdadeiro pós-modernista, obriga o leitor a trabalhar para desconstruir sentido, para compreender. Não basta abrir o livro e ler, aceitar tudo como contido naquelas páginas e imagens, é preciso ir atrás, trabalhar as ideias e oferecer-lhes substrato para as poder interpretar. Só assim podemos evitar a ilusão.