setembro 03, 2020

Tragam os Corpos (Thomas Cromwell, volume 2)

A saga continua com grande desenvoltura, a descrição e o enredo funcionam em torrente tornando a leitura deste segundo livro muito mais rápida. Ajuda também o facto de Mantel ter aligeirado o labirintismo da escrita, é tudo bastante mais claro, ou então já aprendemos a respirar nas suas malhas. Por outro lado, fiquei um pouco desgostoso com a primeira parte na qual Mantel parece querer corrigir algum exagero do primeiro tomo no que toca a pessoa de Thomas More, e acaba por apontar o dedo a Cromwell. Passa mesmo a ideia que Mantel parece querer rever o que disse, talvez por ter sofrido duras críticas dos historiadores, não sei, mas sei que o seu Cromwell perde brilho, torna-se menos visionário e mais vingativo, afastando-me dele a ponto de a meio do livro dizer para mim que já não leria o terceiro. Contudo a segunda parte funciona num crescendo tão grande, imparável em direção à apoteose final, fazendo esquecer tudo o que de menos bom tinha encontrado.
"O Livro Negro" é a tradução portuguesa de "Bring Up the Bodies"

Contribui talvez para esta minha percepção mais crítica de Cromwell e benevolência com More, o facto de entre os dois livros ter revisto o filme "A Man for All Seasons" (1966) no qual Cromwell é muito mal tratado, e More é elevado a patamar de santo. Mas tudo isso se apaga porque este segundo tomo já não pertence a More mas a Boleyn. É ela quem sobe ao cadafalso, e assim percebemos, pela lógica, quem subirá ao cadafalso no final do terceiro volume.
Tower of London, local central da ação desta saga, para onde eram enviados os nobres para aguardar julgamento

Este livro tem as suas nuances, momentos altos, tal como por exemplo a discussão política sobre o que deve ou não deve fazer o Estado:

“It was too much for the Commons to digest, that rich men might have some duty to the poor; that if you get fat, as gentlemen of England do, on the wool trade, you have some responsibility to the men turned off the land, the labourers without labour, the sowers without a field. England needs roads, forts, harbours, bridges. Men need work. It’s a shame to see them begging their bread, when honest labour could keep the realm secure. Can we not put them together, the hands and the task? But Parliament cannot see how it is the state’s job to create work. Are not these matters in God’s hands, and is not poverty and dereliction part of his eternal order? To everything there is a season: a time to starve and a time to thieve. If rain falls for six months solid and rots the grain in the fields, there must be providence in it; for God knows his trade. It is an outrage to the rich and enterprising, to suggest that they should pay an income tax, only to put bread in the mouths of the workshy. And if Secretary Cromwell argues that famine provokes criminality: well, are there not hangmen enough?”

Mas talvez o ponto mais alto seja mesmo a descrição que Cromwell faz do modo como se gere a comunicação com um Rei, no caso particular com Henry VIII é genial. Claro que o génio aqui é Mantel, a forma como ela planeia e preenche e todas as frentes, e imagina o xadrez político em redor do Rei:

“As a child, a young man, praised for the sweetness of his nature and his golden looks, Henry grew up believing that all the world was his friend and everybody wanted him to be happy. So any pain, any delay, frustration or stroke of ill-luck seems to him an anomaly, an outrage. Any activity he finds wearying or displeasant, he will try honestly to turn into an amusement, and if he cannot find some thread of pleasure he will avoid it; this to him seems reasonable and natural. He has councillors employed to fry their brains on his behalf, and if he is out of temper it is probably their fault; they shouldn’t block him or provoke him. He doesn’t want people who say, ‘No, but…’ He wants people who say, ‘Yes, and…’ He doesn’t like men who are pessimistic and sceptical, who turn down their mouths and cost out his brilliant projects with a scribble in the margin of their papers. So do the sums in your head where no one can see them. Do not expect consistency from him. Henry prides himself on understanding his councillors, their secret opinions and desires, but he is resolved that none of his councillors shall understand him. He is suspicious of any plan that doesn’t originate with himself, or seem to. You can argue with him but you must be careful how and when. You are better to give way on every possible point until the vital point, and to pose yourself as one in need of guidance and instruction, rather than to maintain a fixed opinion from the start and let him think you believe you know better than he does. Be sinuous in argument and allow him escapes: don’t corner him, don’t back him against the wall. Remember that his mood depends on other people, so consider who has been with him since you were with him last. Remember he wants more than to be advised of his power, he wants to be told he is right. He is never in error. It is only that other people commit errors on his behalf or deceive him with false information. Henry wants to be told that he is behaving well, in the sight of God and man. ‘Cromwell,’ he says, ‘you know what we should try? Cromwell, would it not reflect well on my honour if I…? Cromwell, would it not confound my enemies if…?’ And all these are the ideas you put to him last week. Never mind. You don’t want the credit. You just want action.”

Enquanto lia estes livros fui também pensando o quão errado estamos quando pensamos que ser Rei, ou nobre, significa poder fazer tudo o que se quer. Ter acesso a tudo como mais ninguém. Ser nobre implica um tal espartilho de responsabilidades sociais que não deixa espaço para mais nada. Qualquer passo ao lado pode ditar a perda dessa nobreza, e o fim do aparente sonho cor-de-rosa. Ao longo destes dois livros percebemos como Henry VIII queria apenas um filho varão, mas toda a sua vontade, dinheiro e súbditos não eram suficientes para lhe dar o que mais queria. Percebemos também que Boleyn foi mais do que um capricho, foi uma necessidade imposta pelo espartilho das obrigações de ser-se Rei. Aliás, isto mesmo parece ter sido o que esteve na base da recente saída de Harry da monarquia britânica, pois se lá continuasse teria de obedecer a um conjunto tão apertado de protocolos que dificilmente se poderia considerar como uma pessoa livre.

Anne Boleyn in the Tower (1835) de Édouard Cibot

Mantel é brilhante na escrita, mas são os rasgos psicológicos que nos agarram que nos fazem sentir aquele mundo-história e nos permitem não só viajar no tempo mas aprender com as vidas de pessoas que à partida nada teriam que ver connosco. São homens e mulheres, não são deuses, carregados de fragilidades, receosos do dia de amanhã como qualquer outro mortal que foi posto neste mundo para todos os dias lutar pela sua preservação e sobrevivência.

Nota final para a tradução. A tradução do primeiro livro — Maria Beatriz Sequeira — está primorosa, a do segundo livro — Miguel Freitas da Costa — está boa, não posso dizer que seja inferior, mas senti-a diferente, não sei o quanto terá que ver com as próprias alterações introduzidas por Mantel no seu discurso. Mas se puxo este assunto é porque me desgostou a tradução do título. Se no primeiro se manteve um titulo inglês, ainda que sendo um nome, quem é que os autorizou a mudar o nome da obra criada por Mantel? Se em inglês se intitula "Bring Up the Bodies" e a frase aparece traduzida quase no final do livro como "Tragam os Corpos", porque é que o livro em português vai assumir o título de um capítulo muito anterior — O Livro Negro. Este título diz respeito a um conjunto de códigos de conduta real que ainda que imensamente relevantes, e relacionados com as tais questões de protocolo, mas distintas daquilo que é o objeto de destaque escolhido pela autora, e que está mais focado na apoteose por ela criada? Não se compreende, não deixando de irritar esta vontade de se procurar sobrepor ao autor.

Anne Boleyn, a única desta saga a ser deacapitada com espada, uma suposta clemência do Rei (autor desconhecido)

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