junho 22, 2021

Da História de Roma Antiga

Nos últimos anos tenho lido várias obras que abordam o império romano — em particular "O Infinito num Junco" de Irene Vallejo, "Augustus" de John Williams e "Memórias de Adriano" de Marguerite Yourcenar, ou ainda os próprios clássicos romanos "A Eneida", Seneca ou Lucrécio — e por isso a curiosidade sobre a Roma Antiga foi aumentando. Inevitavelmente fiz a aproximação primeiro através da monumental obra de Edward Gibbon, “The History of the Decline and Fall of the Roman Empire”, publicada em 1776, contudo, pouco depois de a iniciar descobri a existência de uma outra obra sobre Roma, “SPQR: A History of Ancient Rome” bastante mais recente, de 2015, de Mary Beard, professora de cultura clássica respeitada e por vezes equiparada a Gibbon. Decidi então deixar Gibbon de lado e seguir com Mary Beard. As razões para o fazer foram várias, como dou conta a seguir, mas no final sinto que fiz bem, essencialmente porque me permitiu encerrar a curiosidade que tinha, e explicarei porquê. Entretanto, consegui terminar o visionamento da série "Rome" (2005) da HBO, da qual dou conta no final.

Existe uma edição portuguesa, traduzida pelos Carvalho & Guerra e editado pela Bertrand.

Porquê ler Beard em vez de Gibbon?

1. A primeira razão é sem dúvida o tempo passado desde a publicação de Gibbon. Ao contrário do que vou lendo, não é verdade que pouco se descobriu desde a sua publicação, muito pelo contrário. É preciso ser ingénuo para acreditar que em quase 250 anos, particularmente estes últimos, pouco mudou sobre a nossa visão do mundo. A ciência ganhou tecnologia como nunca teve e que lhe permitiu chegar aonde era completamente impossível. Desde a análise dos glaciares à análise de papiros queimados enrolados de Pompeia, a tecnologia tem permitido aceder a muito que se desconhecia há 250 anos. E, no entanto, Beard é muito mais cautelosa e menos assertiva que Gibbon, mas isso não se deve a ela saber menos que ele, mas antes saber mais. Porque quanto mais sabemos, mais noção temos do que não sabemos. Gibbon fala como se tivesse vivido em Roma, pleno de certezas assentes em relatos, muitos deles escritos séculos depois dos eventos, e muitos deles empolados pelo interesse de quem fala. Mas naturalmente que à luz do tipo de análise feita em 1776, poderia parecer verdade completa. Mas nos dias de hoje é impossível aceitar algo como verdade sem cruzamento de fontes, apenas baseado num relato, a maioria em segunda ou terceira mãos.

2. Além do desfasamento do conhecimento existente, ainda temos outra questão, a necessidade de durante a leitura realizar duas contextualizaççoes temporais simultaneamente — antiga roma e século XVIII — o que diga-se não abonaria muito em favor da ideia a criar no final por mim. Não tenho nada contra obras de outras épocas sobre outras épocas, seria muito interessante caso o meu objetivo fosse estudar em profundidade o conhecimento existente sobre Roma. Mas eu só queria aceder a uma imagem o mais fidedigna possível de um tempo remoto.

3. Nesse mesmo sentido, se o meu interesse por Roma era grande, não era o suficiente para ler 6 volumes de 600 páginas cada um escritos por Gibbon. Sim, existem versões condensadas em 1000 ou 600 páginas, mas tendem a ser desconsideradas pela crítica. Aliás, eu queria saber mais sobre o auge de Roma, sobre o modo como tinham incorporado o conhecimento grego, e principalmente como tinham criado novo conhecimento (de que falarei à frente). Não estava propriamente interessado na história de Roma ao longo de toda a idade média até ao século XV.

O que podemos então ler na História de Mary Beard?

Beard recorta a história de Roma no período que vai do seu surgimento mitológico, século VIII a.C, ao topo do bem-estar, o final século III d.C. Ou seja, desde Rómulo e Remo a Marcus Aurelius, ainda que o grande enfoque se dê sobre Cícero, Júlio César e Augustus. Beard escreve muito bem, com menos eloquência que Gibbon, mas de forma mais científica, levantando as dúvidas onde existem, não romantizando, ficando-se pelos factos, apresentando teorias sustentadas. O trabalho é extenso e completo, ainda que para quem já conhece alguma coisa, sinta a redundância natural num trabalho generalista como tem de ser uma introdução a Roma. 

Beard dedica uma boa parte à discussão sobre o nascimento de Roma, a parte que é de todas a que menos suporte factual possui, e que recai muito sobre histórias que passaram pelos séculos, e que nos parecem mais lenda do que História. Mas não deixa de ser interessante para compreendermos a natureza da identidade da cidade, e do que ela viria a ser. Depois disso, foca-se no trio central à volta do ano zero, sempre chamado em qualquer discussão sobre Roma: o orador Cícero, o ditador Júlio César, e o primeiro imperador, Augusto. Depois, aproveita para em jeito de fechamento dar conta de muito do que se foi inventando sobre os imperadores dos primeiros dois séculos da nossa era.

Ficou a faltar, do meu ponto de vista, a vida dos verdadeiros romanos, mais ainda quando o livro se chama SPQR (Senado e Povo de Roma). Eu sei que dos "fracos não reza a história", e que os registos existentes foram criados pela e para a elite, mas talvez por isso mesmo fosse ainda mais relevante tentar conhecer e perceber como vivia o verdadeiro Povo de Roma? Em que trabalhava, como ganhava a vida, o que comia, como se divertia, o que o incomodava e dava prazer? Saber a história de todos os imperadores de Roma diz-me pouco ou nada sobre a época em si. Dá-me apenas a ilusão de conhecer o que se passou, quando aquilo que me interessava era o olhar pela-para a janela-espelho, ou seja, ver a vida a germinar há 2000 anos e perceber o que mudou desde então.

A minha experiência da leitura

Com o foco fechado na elite, a meio do livro já me sentia defraudado, não com Mary Beard, porque o que ela faz não é diferente de Gibbon, mas pelos romanos. Se a elite de Roma foi só isto, um vazio de ideias,  feito quase exclusivamente de Poder e Política, então aqui termina o meu interesse por eles. Podemos pensar que talvez o problema não fosse dos romanos, mas da insistência em historiar os mesmos por este prisma, mas se existe esta insistência pela maior parte das análises sobre este época é porque não andará muito longe da realidade.

Os romanos dominaram todo o Mediterrâneo

Os romanos foram máquinas de guerra, capazes de subjugar boa parte da Europa, Médio-Oriente e Norte de África, e para o fazer precisaram de poderio militar e muita política (ou telenovela de bastidadores). Ditadores e Imperadores, força bruta, poder absoluto, máxima pressão. Ali, nunca existiram condições para grande pensamento, artístico ou científico. Sentia no final que talvez tivesse aprendido mais sobre os romanos em Junco de Irene Vallejo, mas não é verdade, o que acontece é que aí fiquei a saber algumas coisas sobre a relação dos romanos com a produção do conhecimento, mas aí é também dado a perceber o quão afastado eles sempre estiveram da produção de conhecimento. Essa relação nunca passou de algo em segunda mão, na cauda dos gregos, a quem escravizaram para ensinar o bê-á-bá aos seus filhos.

"A Morte de César" (1804) de Vincenzo Camuccini

São centenas de páginas sobre tricas e mais tricas à volta de imperadores, senadores, territórios, mortes, assassinatos, desvarios, insanidades, subjugação, domínio, luxos e poder. Por isso, no final do livro considero que tendo gostado de o ler, encerrou a minha curiosidade por Roma. Não foi um lugar muito relevante do ponto de vista da criação humana. Mesmo na política, subjugados a um sistema totalitário que usava senadores como fantoches, não me parece um exemplo a relevar. Aliás, no final da leitura questionava-me sobre a ideia pré-feita de que as trevas da idade média se devem ao cristianismo, pensando se este não se deveria antes ao natural declínio de um império apenas construído sobre a ideia de poder e domínio do outro. Não havia ali espaço para o florescimento humano. Roma cresceu, foi a primeira grande megacidade da civilização atual, e, diga-se multicultural, mas não foi além do comércio, entretenimento e poder. Nunca se focou em criar nada além do útil e necessário — desde a construção e arquitetura à política e gestão urbana. Para teatro, literatura, escultura, filosofia e ciência limitavam-se a usar os gregos. Sei que exagero e que isto é em certa medida reducionista, mas é o sentimento com que saio do final desta longa viagem pela Roma Antiga.

"Rome" (2005), série da HBO

Enquanto estava a ler esta obra de Mary Beard comecei a ver a série da HBO de 2005, "Rome", e se no início estranhei a meio acabei por ficar preso, muito graças à excelência do guião criado por John Milius, mas também à magnificência dos cenários criados na Cinecittà. A série funciona como romance histórico, usa todos os ingredientes tipo de uma novela — amor, sexo e traição — mas fá-lo ambientado, e posso dizer, bem suportado naquilo que conhecemos da História efetiva de Roma Antiga. Temos Júlio César, Cícero, Pompeu, Brutus, Marco António, Cleópatra, Ptolomeu, mas temos também as restantes classes: a alta, a média e os escravos.


Cenários criados nos estúdios italianos Cinecittà e que fizeram a série atingir valores astronómicos de produção, acima dos 100 milhões de dólares.

Se a série funciona bem, tanto no registo histórico como romanesco, funciona ainda melhor numa perspectiva dos comportamentos e hábitos de há 2000 anos, algo que Mary Beard praticamente nunca fala. Desde logo, fica bem evidenciado a enorme porcaria em que chapinham os habitantes de Roma. Não podia ser de outra forma, uma cidade com milhões de habitantes, sem conhecimento nem estruturas montadas para garantir a limpeza contínua, seria imunda. Agregado a isto, as contradições sobre honra de homens e mulheres no modo como lidam com o adultério, casamentos forçados e incestos. Ou  os escravos, apresentados como objetos, vistos mesmo como investimento financeiro das economias da classe média.

Na verdade, analisada Roma em maior detalhe, nomeadamente as diferenças de classes, e o modo como se viam enquanto pessoas do mundo, percebe-se que o problema de base não era entre homens e mulheres. Se elas se podem lamentar por terem sido sempre colocadas à margem das decisões e do poder político, isso teve mais que ver com o exercício do puro poder e uma elitização da sociedade. Até ao topo, todos se vergavam perante superiores, mesmo Júlio César, o semi-deus, o faz perante os "sinais" de supostos deuses. 

Superstição, crença e religião sempre na base de Roma

Fechando com este ponto, para dizer que a religião é também um factor muito conseguido da série, já que é algo que na literatura, que cito acima, está quase-ausente, chegando por vezes quase a criar-se a ideia falsa de que Roma seria uma sociedade livre de superstições, suportada no conhecimento científico proveniente da Grécia, o que é falso. Não existia uma religião do Estado, nem existia um único Deus, sim existia liberdade religiosa, com cada um a rezar aos seus deuses, mas a ideia de um além e de forças maiores e invisíveis, o medo supersticioso percorria desde o escravo ao cidadão primeiro, César, algo que esta série dá muito bem conta.

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