dezembro 26, 2017

Transmedia de Troia: "Eneida"

Quanto mais Poemas Épicos leio mais me convenço da nossa irrealidade, ou da nossa capacidade para criar, literalmente, a realidade em que vivemos. Estes poemas são a base cultural de toda a sociedade Ocidental, nascidos da oralidade, sobreviventes pelo registo em texto, formadores de grande parte da história antiga que hoje conhecemos, ou da nossa Mitologia. Temos deuses que agem como humanos, e temos humanos que seriam especiais por serem filhos desses deuses, temos espaços e eventos imaginados que serviram o perpetuar da imaginação desses tempos até aos nossos dias. Ler estes poemas é uma experiência distinta e exótica, porque se é tudo fantasia, dando conta de grandes irrealidades, é ao mesmo tempo tudo História, pedras de texto efetivas que sustentam toda a nossa literatura, toda a nossa cultura, tudo aquilo que somos hoje.

"Eneias foge de Troia que Arde" (1598) de Federico Barocci, (Abertura do Livro I)

Para compreender a ideia basta pensar no facto de Troia não ter nunca existido enquanto cidade, nem sequer enquanto reino. Que os seus príncipes e reis, filhos de Deuses, naturalmente também nunca existiram. Contudo quando realizamos pesquisas sobre os mesmos, as suas histórias desenrolam-se em teias de infinitos detalhes, elementos captados de uma miríade de artefactos criados ao longo de milénios, não apenas textos — nomeadamente o chamado Ciclo Épico do qual fazem parte os poemas basilares da "Ilíada" e "Odisseia" e ainda um conjunto de outros poemas semi-destruídos ou perdidos — registos de histórias orais, mas também imagens — desenhadas em vasos e frescos — e muitas esculturas que foram servindo a construção de mitos, a sua promoção e distribuição, e depois a sua preservação até aos nossos dias. As várias cidades e povos confundem-se entre realidade e mito — Troia, Dardânia, Esparta, Itaca, Grécia Antiga, Roma Antiga, etc. — com personagens que fundem deuses — os doze deuses gregos: Zeus, Hera, Poseidon, Atena, Ares, Deméter, Apolo, Ártemis, Hefesto, Afrodite, Hermes e Dioniso; e os correspondentes doze deuses romanos: Júpiter, Juno, Neptuno, Minerva, Marte, Ceres, Febo, Diana, Vulcano, Vénus, Mercúrio e Baco — e humanos — Menelau, Helena, Paris, Heitor, Aquiles, Agamemnon, Ulisses, Eneias, Príamo, Turno, Latino, etc. Nem sequer os criadores escapam a esta fusão entre ficção e realidade, desde logo com a dúvida sobre Homero: terá existido?; e se existiu terá escrito a “Ilíada” (VIII a.C.) e a “Odisseia”(VIII a.C.)?; e se escreveu não seriam estas apenas histórias orais criadas ao longo de milénios precedentes?

Eneias carregando Anquises, vaso de 470 a.C.

A “Eneida” (I a.C.) tem uma génese menos complexa, mais tradicional, já que surge como encomenda por parte do imperador Augusto a Virgílio. 600 anos depois da "Ilíada" e "Odisseia" um poeta numa sociedade, a romana, que preservava muito os registos e por isso temos muito mais conhecimento sobre o que se passou, tenta responder à génese de Itália partindo de Troia. Mas porquê voltar a Troia, é a dúvida com que se fica, mais ainda pelo facto de Augusto pedir a Virgílio uma história que simbolizasse o nascimento de Itália, como é que então essa história poderia apresentar um estrangeiro, vindo de Troia, a derrubar os Latinos. É verdade que Augusto põe fim à República e inicia o Império, tornando-se no primeiro Imperador de Roma, mas ainda assim Augusto era filho de Roma, não tinha qualquer conexão com o exterior. Augusto terá pedido um texto com as qualidades da “Ilíada” e “Odisseia”, para enaltecer cantando o poder do imperador, o que mostra também o lado propagandístico destes Poemas Épicos. Mas Virgílio responde a esse dilema criando uma nova ramificação no mito de Eneias: a cidade de Troia teria sido fundada por Dardano, que segundo os mitos romanos seria originário de Itália.

É preciso esclarecer que apesar de arma de propaganda, se a “Eneida” sobreviveu, não como texto escrito mas como parte do nosso imaginário cultural, deve-o mais a Virgilio e menos a quem o pediu e pagou, desde a estrutura à qualidade poética. No primeiro campo, Virgílo dividiu o seu poema em duas partes: na primeira (Livro I a VI) temos a jornada de Eneias para Itália, colado ao regresso de Ulisses de Troia para Itaca, espelhando assim a narrativa da “Odisseia”; na segunda metade (Livro VII a Livro XII) temos a luta entre Eneias e Turno, numa aproximação à luta entre Aquiles e Heitor, e assim emulando a “Ilíada”. Esta colagem não é meramente estrutural, Virgílio socorre-se das estruturas de Homero para elaborar novas linhas narrativas, não apenas dando conta da relação entre o fim de Troia e o nascimento de Itália, mas também porque vai relacionar toda a ficção mitológica com factos reais do seu tempo, servindo os interesses de Augusto, mas servindo-nos também enquanto registo histórico.
Parte 1: Jornada para Itália
I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
II - Eneias narra a Dido o último dia de Troia
III - Eneias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
IV - Os amores de Dido e seu fim trágico
V - Os jogos fúnebres
VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos 
Parte 2: Guerra em Itália
VII- Chegada ao Lácio
VIII- Evandro. Descrição do escudo de Eneias
IX- Ataque ao acampamento troiano
X- Façanhas e morte de Palante
XI- Funerais dos guerreiros.
XII- Combate de Eneias e de Turno.
"Eneias derrota Turno" (1688) Luca Giordano (Fecho do Livro XII)

Impressiona ver como um texto escrito séculos depois, retoma personagens, eventos e factos, para dar vida a uma nova narrativa capaz de suster o nosso interesse, e foi isso que me levou a questionar de onde vinha tudo isto, como e porquê. A resposta volta sempre a um mesmo local, a imaginária Troia, cidade na Terra nascida da vontade de deuses, envolta numa guerra de 10 anos alimentada por esses mesmos deuses, que defendiam lados diferentes (como se pôde ver na “Ilíada”). Este mundo ficcional terá então surgido na forma oral, discutindo-se ainda hoje se a “Ilíada” e a “Odisseia” não teriam surgido na forma de poema por serem estruturas mais dadas à memorização de quem os relatava oralmente. Aos dois grandes poemas, outros se juntam ainda na forma de poemas épicos mas entretanto perdidos — Nostoi, Telegonia ou Titanomaquia, formando o que se chama hoje de Ciclo Épico. Se estes apontam para o período VIII a VI a.C., passados quatro séculos voltaríamos a encontrar menções ao mesmo universo, alargando as suas histórias, já não meramente na forma oral mas como performance teatral, nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. E passados outros tantos séculos, Virgílio retoma Troia, agora na forma textual, para ampliar a mitologia já numa abordagem romana.

Mapa homérico. Mostra a bacia que coloca frente a frente a Grécia e a Turquia, onde ficaria a cidade de Troia, podendo ver-se os locais onde foram morrendo os vários heróis. Fonte


Ler a “Eneida” requer pelo menos a leitura da “Ilíada” e “Odisseia”, e alguma pesquisa histórico-mitológica, porque só assim o que vamos lendo ganha sentido. No fundo falamos do primeiro grande artefacto transmedia. Se o universo original era oral, e tinha já sido expandido na forma teatral, foi Virgílio quem lhe deu forma textual, e assim espalhou a história de Troia por três meios diferentes, ainda que hoje a eles todos possamos aceder em texto. Por outro lado, o que se conta está intimamente ligado ao que já foi contado mas vai para além do mesmo, dando conta da premissa base de qualquer obra transmedia, que é a expansão narrativa. Repare-se como a "Eneida" não se limita a expandir num sentido sequencial, por exemplo na viagem para Itália, Eneias passa por alguns locais por onde Ulisses tinha passado, encontrando não apenas personagens desse locais, como encontrando um amigo de Ulisses deixado para trás na sua luta contra os Ciclopes, funcionando como um grande momento transmedia, pela recompensa narrativa que oferece em explicações adicionais sobre eventos ocorridos numa outra narrativa.


"Troia" (2004) de Wolfgang Petersen

Mas Troia não se fica pela Oralidade, Teatro e Texto, ao longo dos séculos e desde muito cedo, foram sendo criadas imagens em vasos e frescos, ainda que mais ilustrativas, assim como esculturas, não só de personagens mas de cenas complexas, e se quisermos, como cereja em cima de todo este bolo, passados mais de 27 séculos o universo continua vivo, tendo sido ainda no ano de 2004, posto em cena, num filme que por não querer versar apenas sobre um dos poemas, foi dedicado a "Troia", e junta nele mesmo várias histórias espalhadas por vários textos. E se existe quem tenha apontado erros de leitura histórica ao filme, eu, e na senda do transmedia que refiro acima, vejo esses erros mais como parte da continuada expansão narrativa desse universo imortal.

Pequeno apanhado que fiz do universo transmedia desenvolvido em redor do tema da Guerra de Troia

E por fim, e porque a ficção/realidade é nestas leituras uma constante imensidão imaginária, e porque este texto é sobre a “Eneida” e Virgílio, não podemos esquecer que se Virgílio foi um dos grandes impulsionadores da mitologia, ao preservar e estender o Universo de Troia, ele próprio acabaria por tornar-se personagem ficcional e principal de um outro grande épico, que a estes se liga, escrito 1500 anos depois, a “Divina Comédia” de Dante, que conto ler de seguida.


Continuar a ler:
Sobre a Ilíada no VI
Sobre a Odisseia no VI

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