Mais uma década passada, mais um conjunto de artefactos narrativos que contribuíram para o avanço da nossa percepção sobre os modos como contamos e registamos histórias. Muitos destes parecem recuperar ideias com trinta, quarenta e até centenas de anos, mas acabam sempre por trazer algo de novo e impulsionar a reflexão sobre os modos de fazer. Nos primeiros lugares coloquei artefactos que abrem para media completamente distintos — filme-jogo, novela gráfica, novela objeto, filme interativo, jogo-livro, simulação-jogo —, que como se percebe pela categorização não são claros, ou melhor, não se encaixam num único medium, pela simples razão de que quebram as convenções dos supostos media de origem.
1. Her Story [Filme-jogo] (análise)
2. Here [Novela gráfica] (análise)
3. S. [Novela objeto] (análise)
4. Possibilia [Filme Interativo] (análise)
5. Return of the Obra Dinn [Jogo-livro] (análise)
6. Bury Me, My Love [Simulação-jogo] (análise)
8. Alma, A Tale of Violence [Webdoc] (análise)
9. Pearl [Animação 360º] (análise)
10. Florence [Novela Gráfica-jogo] (análise)
11. The Art of Pho [Motion comic] (análise)
12. Bandersnatch [Filme interativo] (análise)
13. Way to Go [RV] (análise)
14. The Random Adventures of Brandon Generator [Motion comic] (análise)
15. This War of Mine [Simulação-jogo] (Análise)
16. Pry [Livro multimédia] (Análise)
17. Thirty Flights of Loving [Videojogo experimental] (análise)
18. Lifeline [Simulação] (Análise)
19. CIA : Operation Ajax [Motion comic] (análise)
20. Thomas was Alone [Videojogo] (análise)
Nesta lista coloco apenas artefactos que surpreenderam no design da narrativa — estrutura e medium. Muitos dos objetos que o têm feito pertencem ao domínio dos videojogos, contudo aqui destaco apenas as inovações. Em termos de qualidade narrativa, tendo em conta história e jogabilidade, dedicarei uma lista própria aos videojogos narrativos brevemente.
Além destes, deixo ainda um conjunto de objetos ou abordagens a que vale pena ficar atento no futuro próximo, tais como os audiobooks de Choose-Your-Own-Adventure e os audiobooks da Marvel que poderão vir a garantir lugares privilegiados em sistemas como a Siri ou Alexa, ou ainda as séries para plataformas móveis de novelas gráficas interativas — Episode ou Choices — que apesar de estarem numa fase embrionária conseguiram já um público bastante alargado.
Para uma novela estruturalista, uma crítica estruturalista: 1) Conceito e Premissa: 5/5; 2) Execução Técnica: 5/5; 3) Experiência Estética 2/5. Nota final de 4, nada mau, mas será melhor ler sobre cada um dos itens para ver se a nota quantitativa reflete o interesse qualitativo da obra.
S. (2013) de J.J. Abrams e Doug Dorst
1. Conceito e Premissa
Começando pelo conceito que é sem dúvida o melhor, não sendo revolucionário, nunca antes um livro foi assim distribuído, de forma massiva comercial — carregado de postais, fotografias, excertos de jornal, notas, guardanapos com mapas, etc. Mas talvez melhor que essa componente que salta à vista pela fisicalidade, seja o uso da marginália para contar a história principal. David Foster Wallace já tinha usado as notas de rodapé, mas como extensão narrativa. Neste caso, são notas à mão, nas margens, a marginália, sendo nelas que se centra o veio principal da história que se quer contar.
Assim S. é composto por 5 canais de informação, ainda que interligados, perfeitamente autónomos:
1. Ship of Theseus, o romance regular, inscrito nas páginas do livro em tipografia de máquina, escrito por um alegado autor, Straka, focado na personagem principal, S. Ou seja, o romance interno.
2. A marginália, notas nas margens do romance “Ship of Theseus”, escritas por Eric e Jen, que usam as margens do livro que ambos requisitam numa biblioteca para: comunicar, investigar sobre o livro em si, e flertar. No fundo, o romance externo.
4. Notas de rodapé, que estendem o prefácio do Tradutor e Editor de “Ship of Theseus”, nais quais este vai dando conta da sua pessoa, e da sua relação com Straka.
3. Os insertos físicos — notas, mapas, obituários, cartas com várias folhas, etc. — servem de extensão aos três fluxos anteriores.
5. Artefactos digitais — sítios web, vídeos e documentos (ver no final) — que se podem encontrar na internet e que servem também de extensão aos três primeiros fluxos.
Sendo nós apresentados de imediato a estes 5 caudais de informação, torna-se complicado decidir por onde começar a ler, por isso não faltam sites e manuais explicativos (ver no final). Do meu lado, e enquanto leitor habituado a ler fluxo de consciência e obras pós-modernas, aconselho que se siga sem método. Ou seja, consuma-se de tudo um pouco e avance-se aos poucos. A uma determinada altura algum dos canais agarra-nos mais e seguimos, para depois voltar atrás, e depois voltar novamente à frente... Estas obras procuram leituras em modo exploratório.
Tendo em conta as múltiplas camadas, a própria premissa acaba por se desmultiplicar em diferentes possibilidades: ou seja, podemos dizer que estamos perante a leitura de um livro em modo social, já que acompanhados na leitura pelos comentários e notas de outras pessoas que o leram antes; ou podemos dizer que estamos perante um romance sobre um casal que se encontra por meio de um livro, oferecendo-nos a possibilidade de assistir ao desenrolar de todo esse romance; ou podemos ainda dizer, que assistimos a um romance mistério, em que buscamos saber a identidade do seu autor, sendo ajudados pelos leitores das notas nas margens, e ainda pelo tradutor nas notas de rodapé, e ainda por todos os elementos físicos e digitais sobre aquele universo.
2. Execução Técnica
O livro que temos nas mãos foi sonhado e idealizado por JJ Abrams, o criador da famosa série Lost, e muitos outros trabalhaos de grande sucesso, de entre todos a sua maior proeza, em minha opinião, foi ter-se transformado no realizador e escritor das duas mais importantes séries de FC cinematográficas, Star Trek e Star Wars. Dizer isto, é como dizer que JJ Abrams tem carta branca para criar e produzir o que bem lhe apetecer. Embora considere que se tiverem visto Lost, compreenderão muito bem de que é feito S., sugiro ainda assim que vejam a Ted Talk realizada por Abrams, na qual ele explica a natureza da sua força criativa como residente na geração de universos-história de mistério.
Dito isto, preciso agora de dizer que o livro não é escrito por JJ Abrams. Abrams exerce aqui o cargo que tem vindo a privilegiar, o de produtor. Deste modo, consegue dar vida a muito mais projetos do que se tivesse de os concretizar efetivamente. Assim, o livro foi inteiramente escrito por Doug Dorst, um escritor americano, escolhido por Abrams para implementar a sua ideia. Além destes, houve ainda todo um trabalho direção de arte, de Paul Kepple, e um trabalho de design e ilustração de Ralph Geroni que garantem a execução final da ideia, tornando visual e palpável a ideia imaginada por Abrams e escrita por Dorst.
O resultado final é soberbo. S. é um livro objeto de excelência, aprecia-se cada momento com o livro, no manusear e na apreciação dos detalhes, dos relevos e texturas, das inscrições que oferecem marcas de autenticidade, tão próximas de o serem que dificilmente o podemos desmentir. É tudo tão perfeito, da qualidade do papel usado, tanto no guardanapo, como na fotografia e postais, a notas em papel de hotel, fotocópias, é toda uma viagem física. Por outro lado, o trabalho de Dorst na produção de mistério é perfeita, seguindo completamente o género de Abrams, instigando-nos a querer mais e mais, interligando tudo. Ou seja, tecnicamente é uma obra imensamente conseguida, totalmente coerente, capaz de garantir harmonia à multimodalidade de media usados.
3. Experiência estética
É pena que neste último ponto não se repitam os louvores, já que este seria talvez o mais importante. Porque a questão que se coloca sempre é se compensa tanta elaboração conceptual e técnica, se não se conseguiria o mesmo ou até mais, com menos. Ou ainda, de um outro ângulo, mais questionável, se toda esta parafernália multimodal não está apenas a servir de camuflagem a um trabalho menor.
Ora o problema que temos, não sendo conceptual nem técnico, é de ordem exclusivamente artística. Quer isto dizer que o problema está nas escolhas feitas em termos do conteúdo da história a contar. Reitero que o problema não é técnico, todos os elementos modais estão imensamente bem trabalhados. Dorst escreve bem e sabe urdir mistério garantindo o envolvimento do leitor. O problema decorre das histórias e personagens escolhidas, tudo muito fraco. O romance Ship of Theseus, apesar de emular uma obra de 1949, não pode usar isso como desculpa para se limitar a mero relato de aventura misteriosa. Os personagens são todos irrelevantes, estamos todo o tempo atrás do enredo que nos arrasta de local em local, com a cenoura do mistério. Se no início funciona, porque somos agarrados pela vontade de querer saber quem é S, à medida que se estende o mistério, e se faz resvalar o mesmo para várias outras camadas interpretativas, percebe-se que não existe interesse em dar respostas, e o nosso interesse começa a cair. Mas o pior surge quando passamos para a marginália, e percebemos que temos dois estudantes de literatura a discutir detalhes de um mero romance de aventuras que nada mais tem a oferecer além da superficialidade do enredo. Tal agrava-se quando os seus diálogos e conversas não apresentam qualquer preocupação literária e se focam apenas nas teorias da conspiração sobre crimes e identidades, tornando toda a discussão entre eles completamente irrelevante. Isto retira encanto aos artefactos físicos e digitais, porque deixa de nos interessar ir atrás, porque se os personagens não são críveis, então deixa de ser possível olhar para tudo aquilo como algo autêntico ou sequer relevante.
Para mim, o problema torna-se altamente evidente quando colocamos esta obra ao lado de Possession (1990) de A.S. Byatt. Uma obra na qual seguimos também dois académicos que procuram informações sobre um escritor esquecido e no qual nos afundamos, sem ter acesso a qualquer um dos magníficos recursos colocados nas mão de Abrams, mas temos o génio de A.S. Byatt que em texto corrido nos dá a sorver tantas ou mais camadas de informação, tudo num tomo único. No fundo, o que falta em S., é aquilo que falta em Hollywood, expressão pessoal, tudo é feito em nome do lucro, as histórias não se querem pessoais, nem vincadas de valores, mas antes universais, entendíveis pelo maior número de pessoas, capazes de gerar alguns momentos de diversão e que se fechem sem incomodar muito. S. é assim uma obra tecnicamente soberba que pouco ou nada tem para exprimir.
“Facing It” (2018) é um filme de animação de estudante brilhante que além de apresentar uma história atual e impactante, recorre a um conjunto muito diversificado de técnicas de animação, misturando múltiplos media, para dar conta do sentir dos personagens. A curta é o resultado do projeto final do mestrado em Direção de Animação, National Film and Television School (UK), de Sam Gainsborough, depois de se ter licenciado em Screenwriting for Film and TV na Bournemouth University, em 2013. Ao longo do ano passado o filme foi galardoado com imensos prémios e nomeações.
Tecnicamente temos: pixilation, plasticina, chromakeying, motion tracking e rotoscoping. Os personagens são pessoas reais, filmadas com máscaras e marcadores faciais, em movimentos adaptáveis ao stop-motion do filme. Os grandes planos foram novamente filmados com fundo verde, para servir o rotoscoping e mistura com a plasticina. Os marcadores da face foram usados para a substituição das expressões, via motion tracking, com as animações criadas em plasticina.
É um trabalho audiovisual impressionante, pela mistura de técnicas que requerem competências muito distintas, e pelo resultado final imensamente conseguido em termos de coerência estética. Não só as técnicas foram fundidas sem deixar rasto, como a cinematografia e a cor trabalham em perfeita sintonia para fazer passar a história de Gainsborough. Vale a pena ver o making of, depois do filme, e ler a entrevista no Director's Notes.
No meio de tudo, gostei particularmente da técnica utilizada na modelação da plasticina, no modo como as dedadas em vez de serem limadas, para se tornarem invisíveis, são enfatizadas para oferecer textura e expressividade à superfície plástica. Em certos momentos, nomeadamente quando animados, o modo como Gainsborough trabalha os rastos das dedadas fazem lembrar as texturas produzidas pelas pinceladas de Van Gogh.
"Shaun always feels separate and isolated from the confident, happy world around him. Whilst waiting for his parents in a busy pub, Shaun struggles valiantly to join in with the admirably happy people in the crowd, but the more he tries, the more he goes awry. As everything in the pub goes from bad to worse, Shaun finds himself confronted by the painful memories that made him who he is. His feelings, memories and desires overwhelm him and by the end of the evening he is ready to explode…"
O meu imaginário do Holocausto era até agora estruturado a partir dos relatos de Primo Levi, Viktor Frankl e das imagens de Claude Lanzmann. Três obras não-ficcionais, dois relatos na primeira-pessoa da experiência vivida em Auschwitz, e uma visita, 40 anos depois, retratada por múltiplas vozes que por lá passaram e assistiram, dentro e fora, em primeira pessoa ao morticínio. "Son of Saul" (2015) é ficção, tal como "Come and See" (1985) de Klimov, mas diferentemente desse, não o parece. São ambos obras de grande intensidade visceral, talvez das mais viscerais a que assisti, mas "Son of Saul" distingue-se pelo naturalismo utilizado que impregna a obra de um caráter quase documental, tornando tudo ainda mais intenso, se é que tal é possível... posso, contudo, dizer que vai além da camada emocional, as opções de câmara implementadas para dar a ver obriga a uma racionalização do espectador, o que torna a experiência particularmente perfurante.
Já me tinha interrogado sobre o como se "passaram as coisas", e o filme de Lanzmann é ainda mais instigador ao mostrar tudo muito depois, mas de modo estático obrigando-nos a imaginar. Aliás essa foi uma opção propositada de Lanzmann, o mesmo que depois de ver “A Lista de Schindler" disse:
"The Holocaust is above all unique in that it erects a ring of fire around itself, a boundary that you cannot cross, because it is impossible to convey a certain absolute horror; claiming to do so is to be guilty of the gravest transgression. Fiction is a transgression; I am deeply convinced that there is a prohibition on representation." Claude Lanzmann
Podemos assim dizer que optar pelo modo de Spielberg é como mostrar a dor humana à distância, a partir do conforto de um camarim. Mas Nemes quebra o tabu, atira o pudor janela fora e coloca-nos dentro da maior Fábrica de Morte alguma vez criada, colados à carne de um simples trabalhador judeu, obrigando-nos a ver tudo, ainda que pelas franjas do enquadramento. Claro que para tal foi preciso a performance brutal de Géza Röhrig.
Regina Pessoa fez apenas 4 filmes em 20 anos — “A Noite”, 1999; “História Trágica com Final Feliz”, 2005; “Kali, o Pequeno Vampiro”, 2012 e “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”, 2019 — mas foram suficientes para criar uma identidade autoral no cinema de animação internacional. Poucos segundos de visionamento de qualquer um destes quatro filmes atira-nos imediatamente para o universo cultural e estético de Regina Pessoa. Muitos passam toda uma vida à procura dessa identidade sem nunca a encontrar enquanto a Regina o parece ter conseguido logo no seu primeiro filme. Sendo algo impressionante, o questionamento sobre o seu processo criativo tem sido uma constante e a Regina não se tem furtado ao mesmo. Contudo, como acontece com os grandes criadores, a melhor forma de responder surge quase sempre pela mão da sua preferência expressiva, ou seja, do meio expressivo de eleição, e é isso que acaba tornando este seu último filme “Tio Tomás, a contabilidade dos dias” tão relevante, e talvez o mais importante de todos.
O principal marcador da identidade de Regina Pessoa reside na sua técnica de animação. Criada inicialmente a partir da gravura em placas de gesso, oferece-lhe um movimento texturado (traços de linhas que preenchem as formas e se movimentam) muito singular. Colado a esse movimento visual surge depois a particularidade do seu design de personagens que recorre a uma fusão entre o geométrico e o orgânico da texturização que lhe garantem uma particular estranheza, algo que se tem acentuado com o evoluir do seu design de personagens. Por fim, e ainda no campo visual, temos o domínio da luz que é utilizada para acentuar as texturas mas especialmente para a produção de sombras e sua elevação a elementos centrais do cenário. Todo este enquadramento visual vai além da mera identidade visual, serve uma função comunicativa que é denotada pela particularidade das histórias contadas, mas essencialmente pelos motivos narrativos escolhidos e pelo tom dos mesmos. Ou seja, o universo ficcional dos filmes da Regina Pessoa circula à volta de personagens destacados da normalidade, não porque o desejam, mas porque a isso são votados pela sociedade, funcionando as suas histórias como modos de verbalização do interior desses personagens. Por isso a componente visual acaba sendo tão relevante, já que é ela a principal responsável por dar conta do tom do sentir dos seus personagens. No fundo, estamos a falar de uma abordagem profundamente expressionista, que se destacou no cinema alemão dos anos 30 (séc. XX) e que nos diz que o cinema da Regina é um cinema profundamente sensorial.
Personagens dos 4 filmes de Regina Pessoa, da esquerda para a direita: “A Noite”; “História Trágica com Final Feliz”; “Kali, o Pequeno Vampiro”; “Tio Tomás, a contabilidade dos dias”
Neste sentido, podemos dizer que o seu último filme, “Uncle Thomas, Accounting for the Days”, aprimora toda a sua linguagem, todos os elementos se elevam tecnicamente, acabando por abrir novas direções, mas sem perder as raízes e funções estéticas da sua identidade. Por outro lado, o tema escolhido, que para mim vai muito além do tio especial porque dá conta da génese do próprio processo criativo, acaba por exponenciar ainda mais toda a componente afetiva da obra. Quando surgem os últimos quadros e reconhecemos o cabelo da autora nos traços da sombra animada, é impossível não sentir um toque, quase um arrepio, pela profunda conexão estabelecida com a autora. Diga-se que por Regina fazer um cinema muito expressivo pode para uma boa parte dos espetadores não ocorrer uma relação imediata, nomeadamente se se detiverem na busca de lógicas explicativas dos personagens ou se estiverem à espera de twists narrativos muito conclusivos. Se não conhecerem a obra da Regina e sentirem essa distância, aconselho um segundo e um terceiro visionamentos para poderem entrar dentro do universo e começarem a sentir o pulsar do texto animado.
O filme foi entretanto disponibilizado na rede, pela NFB (ver abaixo), para poder ser visto por todos, enquanto aguardamos que se confirme a nomeação do filme para o Óscar de Melhor Curta de Animação 2019. É a segunda vez que a Regina está na shortlist (seleção de 10 filmes), a primeira foi com "História Trágica com Final Feliz”, esperemos que desta vez a Academia saiba reconhecer o seu trabalho. Não que seja necessário, os seus filmes foram todos amplamente premiados nos mais importantes festivais internacionais da arte de animação, mas não deixa de ser merecido.
Encontrei este livro por acaso na Fnac, não o comprei logo, mas como não o esqueci acabei por o mandar vir. A razão porque me interessou tanto foi a dupla de conceitos: modelos e decisões. Em relação ao primeiro, é o modo como prefiro trabalhar a minha investigação, estou sempre à procura de situações, casos e exemplos em busca de padrões que possam depois ser replicados e potencialmente escalados, no fundo criar modelos de conhecimento. Em relação ao segundo, as decisões estão intimamente relacionadas com os processos de escolha humanos que são no fundo a base do design de interação, servindo amplamente desde as aplicações e jogos às narrativas interativas. Ou seja, olhei para este livro como um compêndio de ideias de potencial aplicação imediata, embora tal depois não tenha propriamente acontecido, mais porque parte dos modelos, os mais interessantes, já os conhecia, e os restante se distanciavam bastante do meu domínio de aplicação. Não esquecer que é um livro mais dirigido aos domínios da gestão.
"The Decision Book: Fifty Models for Strategic Thinking" (2008) de Mikael Krogerus e Roman Tschäppeler
Os 50 modelos são categorizados em 4 modos: melhoria do próprio; compreender-se melhor; compreender os outros melhor; e melhoria dos outros. Um conjunto de modelos são sobejamente conhecidos, alguns já mesmo enquanto teoria, deixo uma lista desses: Análise SWOT; Flow; Pareto Principle (80/20); Modelo da Cauda Longa; Compasso Politico; Ciclo do Hype; Difusão; Feedback, Pirâmide Marlow; Dilema do Prisioneiro; Capital de Bourdieu. Os autores utilizam estes modelos, mas adaptam-nos em função dos seus contextos, nomeadamente da realidade Britânica ou de conteúdos mais mainstream.
Modelo do Capital Social de Bourdieu
Por vezes surgem algumas generalizações nesses modelos algo questionáveis, mas o interessante está nos modelos, no modo como podemos triar os conteúdos usando-os. Ou seja, olhem para os modelos como formas de aplicação aos problemas, e não como teorizações do real. Por outro lado, como o livro é pequeno não sobra muito espaço para discussão e menos ainda aprofundamento, por isso olhem para o livro como cardápio, para depois ir atrás.
Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.
ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.
O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.
As razões que fazem de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) um livro obrigatório para todos os que estudam o Humano são as mesmas que Robert M. Sapolsky utiliza para descrever o comportamento humano enquanto “arco multifactorial”. Ou seja, o comportamento humano é apresentado enquanto resultado de um conjunto alargado de fatores biológicos e experienciais, produzindo a necessidade em Sapolsky de escrever um livro evocando um conjunto imensamente alargado de ciências — da biologia à psicologia, passando pela neuroendocrinologia, genética, psicologia evolucionária, primatologia, economia comportamental, teoria dos jogos, educação e ainda a antropologia, a política e a filosofia — não dando primazia a qualquer uma destas, antes buscando em cada uma as partes que contribuem para o resultado final do comportamento humano. Sapolsky não diferencia os genes da experiência, antes coloca ambos como pólos de um eixo dimensional entre os quais atuam múltiplos e variáveis fatores, e em que cada um destes afeta o funcionamento do anterior e posterior, tornando impossível determinar com certeza o que produz o quê. Este problema é o cerne das ciências que estudam o humano e acaba por explicar porque as humanidades nunca se vergaram às ciências. A leitura do comportamento, seja ele expressivo ou meramente funcional, requer além da descrição processual, que a ciência fornece, uma interpretação desse processo que só as humanidades podem fornecer. Por outro lado, é neste problema ou impossibilidade de fechar o ciclo causal que reside o núcleo do nosso livre-arbítrio.
Para entrar na abordagem proposta por Sapolsky apresento um excerto da Introdução que sintetiza a essência:
“A behavior has just occurred. Why did it happen? Your first category of explanation is going to be a neurobiological one. What went on in that person’s brain a second before the behavior happened? Now pull out to a slightly larger field of vision, your next category of explanation, a little earlier in time. What sight, sound, or smell in the previous seconds to minutes triggered the nervous system to produce that behavior? On to the next explanatory category. What hormones acted hours to days earlier to change how responsive that individual was to the sensory stimuli that trigger the nervous system to produce the behavior? And by now you’ve increased your field of vision to be thinking about neurobiology and the sensory world of our environment and short-term endocrinology in trying to explain what happened. And you just keep expanding. What features of the environment in the prior weeks to years changed the structure and function of that person’s brain and thus changed how it responded to those hormones and environmental stimuli? Then you go further back to the childhood of the individual, their fetal environment, then their genetic makeup. And then you increase the view to encompass factors larger than that one individual—how has culture shaped the behavior of people living in that individual’s group?—what ecological factors helped shape that culture—expanding and expanding until considering events umpteen millennia ago and the evolution of that behavior. (…) There are not different disciplinary buckets. Instead, each one is the end product of all the biological influences that came before it and will influence all the factors that follow it. Thus, it is impossible to conclude that a behavior is caused by a gene, a hormone, a childhood trauma, because the second you invoke one type of explanation, you are de facto invoking them all. No buckets. A “neurobiological” or “genetic” or “developmental” explanation for a behavior is just shorthand, an expository convenience for temporarily approaching the whole multifactorial arc from a particular perspective.”
Do meu lado pessoal, e além do que introduzi acima, o que me fez apaixonar pelo livro foi o facto do caminho científico-teórico reproduzido por Sapolsky ao longo do livro estar tão de acordo com o percurso que eu próprio tenho feito no estudo da Emoção e Cognição, e no modo como estas impactam a interação, comunicação e expressão humanas. Desde logo a evocação de Robert McLean e o cérebro triúnico, assumindo que é mais metáfora do que ciência, mas assumindo que é fundamental para compreendermos o funcionamento do processo cognitivo e emotivo do nosso cérebro. Passando depois pela discussão sobre a Amígdala, o Córtex Frontal, os Marcadores Somáticos, a Testosterona, a Oxitocina, a Serotonina e a Dopamina que impactam a Motivação, a Curiosidade e o Brincar, o Vínculo Parental, a Seleção Natural, a Seleção Sexual que por sua vez impactam os Genes e os transformam, desenvolvendo variações dimensionais do Competitivo ao Colaborativo, produzindo a Empatia que regula os níveis do "Nós vs. Eles". Muito disto foi amplamente discutido por tantos outros autores aqui evocados por Sapolsky desde o grande mentor Darwin até Dawkins, Damásio ou Kahneman, passando por Harlow, Zimbardo, Milgram e Pinker ou ainda Voltaire, Hobbes e Rousseau. Este percurso requer obrigatoriamente a multidisciplinaridade como poderão ver na minha prateleira Human Engagement no GoodReads.
Existem tantas partes do livro relevantes que gostaria de aqui transcrever, muitas delas apenas como re-afirmação de ideias e conceitos, outras como crítica social assente naquilo que a ciência nos vai deixando entrever, outras como portas para novas investigações e interesses. Mas é um livro impossível de sintetizar em duas ou três páginas, é um livro que precisa de ser lido e relido, apesar das suas 800 páginas, para que possamos interiorizar a compreensão da ciência existente e ganhar assim um maior entendimento sobre o que somos:
“Neuroimaging studies show the dramatic sensitivity of adolescents to peers. Ask adults to think about what they imagine others think of them, then about what they think of themselves. Two different, partially overlapping networks of frontal and limbic structures activate for the two tasks. But with adolescents the two profiles are the same. “What do “you think about yourself?” is neurally answered with “Whatever everyone else thinks about me.” (Cap. 6)
“Are we a pair-bonded or tournament species? Western civilization doesn’t give a clear answer. We praise stable, devoted relationships yet are titillated, tempted, and succumb to alternatives at a high rate. Once divorces are legalized, a large percentage of marriages end in them, yet a smaller percentage of married people get divorced—i.e., the high divorce rate arises from serial divorcers (...) Measure after measure, it’s the same. We aren’t classically monogamous or polygamous. As everyone from poets to divorce attorneys can attest, we are by nature profoundly confused—mildly polygynous, floating somewhere in between.” (Cap. 10)
“Worldwide, monotheism is relatively rare; to the extent that it does occur, it is disproportionately likely among desert pastoralists (while rain forest dwellers are atypically likely to be polytheistic). This makes sense. Deserts teach tough, singular things, a world reduced to simple, desiccated, furnace-blasted basics that are approached with a deep fatalism. “I am the Lord your God” and “There is but one god and his name is Allah” and “There will be no gods before me”— dictates like these proliferate (...) In contrast, think of tropical rain forest, teeming with life, where you can find more species of ants on a single tree than in all of Britain. Letting a hundred deities bloom in equilibrium must seem the most natural thing in the world." (Cap. 9)
“That when it comes to empathy and compassion, rich people tend to suck (..) Across the socioeconomic spectrum, on the average, the wealthier people are, the less empathy they report for people in distress and the less compassionately they act (..) (a) wealthier people (as assessed by the cost of the car they were driving) are less likely than poor people to stop for pedestrians at crosswalks; (b) suppose there’s a bowl of candy in the lab; invite test subjects, after they finish doing some task, to grab some candy on the way out, telling them that whatever’s left over will be given to some kids—the wealthier take more candy. (..) Make people feel wealthy, and they take more candy from children. What explains this pattern? (..) wealthier people are more likely to endorse greed as being good, to view the class system as fair and meritocratic, and to view their success as an act of independence — all great ways to decide that someone else’s distress is beneath your notice or concern.” (Cap. 12)
“But Pinker failed to take things one logical step further—also correcting for differing durations of events. Thus he compares the half dozen years of World War II with, for example, twelve centuries of the Mideast slave trade and four centuries of Native American genocide. When corrected for duration as well as total world population, the top ten [of world ever conflicts] now include World War II (number one), World War I (number three), the Russian Civil War (number eight), Mao (number ten), and an event that didn’t even make Pinker’s original list, the Rwandan genocide (number seven), where 700,000 people were killed in a hundred days." (Cap. 17)
Contudo, e apesar de tantos e tantos estudos, a verdade é que determinar o comportamento humano, as suas razões ou efeitos continua a ser imensamente complexo, e por isso termino com a grande conclusão do livro, que para mim é inspiradora:
“If you had to boil this book down to a single phrase, it would be “It’s complicated.” Nothing seems to cause anything; instead everything just modulates something else. Scientists keep saying, “We used to think X, but now we realize that...” Fixing one thing often messes up ten more, as the law of unintended consequences reigns. On any big, important issue it seems like 51 percent of the scientific studies conclude one thing, and 49 percent conclude the opposite. And so on. Eventually it can seem hopeless that you can actually fix something, can make things better. But we have no choice but to try. And if you are reading this, you are probably ideally suited to do so. You’ve amply proven you have intellectual tenacity. You probably also have running water, a home, adequate calories, and low odds of festering with a bad parasitic disease. You probably don’t have to worry about Ebola virus, warlords, or being invisible in your world. And you’ve been educated. In other words, you’re one of the lucky humans. So try. Finally, you don’t have to choose between being scientific and being compassionate.”
No final do livro, no Epílogo, Sapolsky lista um conjunto de grandes conclusões, cerca de 30, das quais opto por destacar 5:
“Repeatedly, biological factors (e.g., hormones) don’t so much cause a behavior as modulate and sensitize, lowering thresholds for environmental stimuli to cause it.”
“Cognition and affect always interact. What’s interesting is when one dominates.”
“Adolescence shows us that the most interesting part of the brain evolved to be shaped minimally by genes and maximally by experience; that’s how we learn—context, context, context.”
“Often we’re more about the anticipation and pursuit of pleasure than about the experience of it.”
“We implicitly divide the world into Us and Them, and prefer the former. We are easily manipulated, even subliminally and within seconds, as to who counts as each.”
O livro já foi editado em Portugal pela Temas & Debates, sob o título "Comportamento: A Biologia Humana No Nosso Melhor e Pior".
O melhor de “Eliza” é sem dúvida o enquadramento da história que conta, centrada nos problemas da Inteligência Artificial e da quebra da privacidade, apresenta um novo ângulo da discussão, o potencial da IA como suporte à saúde mental, partindo da premissa: e se todos pudéssemos ter acesso a sessões de psicoterapia com IA? É um tema que poderíamos ver no mundo de “Black Mirror”, além de bastante atual, não apenas pela recente grande evolução da IA, mas por todos os desenvolvimentos tecnológicos que vêm sendo introduzidos na área da saúde. “Eliza” parte desta aparente atualidade, mas vai além, lança ideias para um futuro próximo e questiona-nos sobre um dos maiores flagelos das sociedades desenvolvidas: a doença mental.
Sendo um jogo interativo, as dúvidas emanadas do uso da tecnologia, a diferença entre humano e tecnologia no suporte aos humanos acaba surgindo como centro das nossas escolhas, do mundo em que acreditamos ou desejamos acreditar. Será uma máquina mais eficaz na leitura dos problemas que assolam as nossas mentes, os nossos Eu? Será a máquina mais objetiva e concreta, capaz de desafiar as nossas constantes dúvidas e incertezas? Poderemos confiar nas propostas de uma máquina imparcial?
“Eliza” apresenta várias propostas inovadoras, desde logo a ideia do Proxy. As consultas de psicoterapia não funcionam apenas numa relação humano-máquina, mas são mediadas por um outro humano que serve apenas de veículo à IA. Neste sentido destaca, desde logo, a necessidade do outro, a necessidade de sentir o conselho emanado por um igual, e não uma mera máquina que não poderá nunca sentir a dor do humano. Um outro ponto imensamente interessante acaba surgindo a partir das lutas empresariais e detém-se sobre a questão do sofrimento e da sua necessidade para a nossa felicidade. Filosoficamente falando, poderemos ser felizes se nunca nos sentirmos infelizes, se deixarmos de sentir a dor?
Enquanto videojogo é ficção interativa suportada por uma boa camada de ilustração gráfica, sem movimento nem animação, ou seja, uma “visual novel” ou história visual interativa. Como tudo se move ao redor da história e dos diálogos, a elevação da experiência assenta no texto e nas nossas decisões, relevando para segundo plano a componente audiovisual. Em termos de narração interativa, podemos dizer que temos um bom trabalho, embora sinta que o seu forte é mesmo o enquadramento da história, ficando as nossas decisões demasiado presas ao mero progresso narrativo.
“Marriage Story” (2019) é o último grande vencedor de audiências da Netflix, um filme com duas estrelas que aparenta retratar uma realidade próxima de todos nós. No entanto, a realidade apresentada não tem qualquer relação connosco, apenas é aparentemente próxima pela força da presença dos mundos de Hollywood e da Broadway no imaginário cultural ocidental. Bastaria pensar em quantos casais da classe média poderiam pagar a um advogado mil euros à hora. Claro que o facto de apresentar um casal, aparentemente bem-sucedido, cria aquela imagem do conto de fadas: “afinal também acontece com eles”. O problema é que não é disso que se trata, a história está centrada no mundo pessoal de Noah Baumbach, o realizador de “Marriage Story”, e na sua relação falhada com Jennifer Jason Leigh, reconhecida atriz de Hollywood. Existindo bons momentos, o filme acaba frisando um conjunto de problemas, não apenas pelo privilégio mas também pela diferença de pesos morais.
1 — Se o filme queria oferecer uma representação dos problemas gerais que decorrem do divórcio, tal não é possível a partir da relação oferecida. Para a generalidade da classe média rever-se em duas estrelas, não os atores, mas as suas profissões — um encenador da Broadway e a outra atriz e realizadora de Hollywood — é no mínimo distante. Ainda que os seus universos sejam clichés reconhecíveis, as suas realidades são imensamente distintas, não apenas financeiramente, mas em termos de privilégio e reconhecimento societal. O casal representado não pertence a um nicho, pertence a uma elite bem distinta.
2 — Se o filme queria dar conta do divórcio como algo emanado igualmente do homem e da mulher, falha redondamente, muito provavelmente por ser escrito por Noam e não pela Jennifer. Repare-se como tudo aquilo que o homem fez e faz é justificado, explicado e apresentado como atos inescapáveis ou altruístas. Tudo aquilo que a mulher faz surge do mero capricho individual. O homem é aquele que pensa nos outros, de quem todos dependem, a mulher é a autocentrada que não se preocupa com mais ninguém além do seu Eu.
3 — Todas as diferenças entre o homem e a mulher são intensamente exponenciadas pelo espaço e suas culturas, ou seja, o estrelato de Hollywood e a alta-cultura de NY. Hollywood a terra dos ricos, dos exageros, da superficialidade, da banalidade, do total desprezo pelo outro. Do outro lado, o teatro nova-iorquino, centrado no drama das vivências das pessoas comuns, com poucos meios, trabalhando-se por amor à profissão, em que importa mais o grupo do que o indivíduo.
4 — Para finalizar, se se queria dar conta do divórcio, porquê mais uma vez recuperar a imagem do filho criança, único, puro e angelical. Chegando ao final, a conclusão é que tudo teria sido fácil se ele não existisse. E seria? Se sim, então na verdade não havia uma história para contar.
Claro que existem boas sequências e as performances de Johansson e Driver são excepcionais. Mas se quiserem aceder ao tumulto interior do fim de uma relação aconselho antes, apesar de aparentemente distante por se passar no Irão, o filme "A Separation" (2011) de Asghar Farhadi.
Tinha bastante interesse em ver estes dois filmes, ambos com boas equipas, ambos com excelentes receções da crítica e do público e no entanto ambos grandes desilusões. Tarantino não me surpreendeu, já passaram 10 anos sobre o seu último bom filme. No caso de "Ad Astra" apanhou-me um pouco de surpresa, porque tinha lido e sentido tratar-se de uma obra mais cerebral, quando afinal, tudo não passava de mais um "Space Cowboys".
"Ad Astra" (2019) e "Once Upon a Time in Hollywood" (2019)
Hollywood bem tenta dar ares de ter algo para dizer, mas não consegue deixar de ser Hollywood. "Ad Astra" é o caso mais recente e perfeito disto mesmo. Existe ali uma jornada conradiana? Podemos dizer que sim, mas isso nunca chegaria para satisfazer a gula dos seus produtores. Era preciso espetáculo, era preciso tensão, nem que tudo isso parecesse mero caramelo jogado na superfície. Porquê uma relação pai-filho numa situação que envolve toda a espécie humana, o seu passado e futuro, não se consegue mesmo sair do básico em Hollywood. Do mesmo modo, porquê a introdução da cena dos macacos assassinos ou dos piratas da lua? Para assanhar, contrastar e produzir tensão na plateia? Reparem como toda a estrutura e clichês narrativos se cola a tantos outros blockbusters, sendo um dos mais diretos "The Day After Tomorrow" (2004). O melhor que li entretanto sobre o filme foi mesmo o texto de Kermode no Guardian.
Já Tarantino nunca tentou dizer nada propriamente com grande alcance, por isso não esperava nada de muito particular do seu mais recente filme. Contudo, fazer um filme sobre Hollywood em que aquilo que nos dá a ver são as vidas banais de estrelas decadentes, colando sobre isso, à força, os subtextos das tragédias de Bruce Lee e Roman Polansky, não é apenas de mau gosto, é mesmo de falta de ideias, refletindo no fundo o legado Tarantino. Ser um grande escritor de diálogos não chega para contar grandes histórias, ou pelo menos para ter ideias ou chegar a premissas relevantes. E o pior é que até no campo da composição visual onde Tarantino se foi destacando existe pouco lugar para ideias originais (ver vídeo abaixo). No fundo, Tarantino é apenas um expoente do espetáculo que define a cultura de Hollywood. Aumentem a tensão, baralhem e voltem a dar mais do mesmo e o público sentir-se-á entretido.
"How Quentin Tarantino Steals From Other Movies" (2019)
O maior impacto da leitura desta obra é a lucidez do autor, a luz imaculada que joga sobre diferentes eventos e conceitos para criar acesso a um mundo destilado, perfeitamente transparente. Temos o choque entre civilizações — letrada e iletrada — entre continentes — África e Europa —, mas aquilo que conduz a escrita de Tayeb Salih não são as diferenças, antes as semelhanças entre humanos, pertençam estes ao lugar que pertencerem, tenham eles evoluído e civilizado-se, nunca deixam de ser humanos, presos a padrões culturais e costumes.
"Sim, há camponeses, assim como há de tudo o resto», respondi eu. «Há, entre eles, operários, médicos, camponeses, professores — precisamente como nós.» E preferi não mencionar o que me ocorreu, nesse momento: precisamente como nós, nascem e morrem, transportando consigo sonhos, do berço à sepultura. E, destes, alguns são os que se realizam, gorando-se outros. Temem o desconhecido, buscam o amor e procuram a serenidade junto da mulher e dos filhos. Alguns são fortes, outros são miseráveis; a vida concedeu a alguns mais do que mereciam, consignando outros à privação. No entanto, as diferenças dissiparam-se e a maioria dos fracos deixou de sê-lo." (p.15)
É um livro apenas possível graças ao percurso de vida de Salih que teve oportunidade de sair do Sudão para estudar e trabalhar em Inglaterra e França, numa época de pós-colonialismo que o obrigaria a refletir sobre os contrastes entre o seu país de origem e os países colonizadores. Contudo Salih não se deixa seduzir pelos contrastes, o que seria o mais evidente e expectável, no fundo simples, acaba por se deter no aprofundamento das proximidades e semelhanças, sem esquecer as distâncias, o que acaba a garantir a enorme riqueza do seu texto. Ou seja, não se trata de um mero texto que aponta o dedo aos europeus ou aos africanos, antes coloca em choque de um lado e do outro as incoerências e fá-lo de um modo tão direto e límpido, como se nos permitisse ver a realidade pelos olhos de alguém completamente externo e sem partido. Como se Salih nos conduzisse através da representação do humano, nas suas diferentes fações, mostrando o bom e o mau, não como bom e mau, mas como essência do que é ser-se humano em cada lugar.
"Neo Cab" é o jogo narrativo de 2019. O tema assenta num cyberpunk não muito distante, quase relacionável com os dias de hoje, no que toca a uso de redes sociais, Uber e IA, o que acaba por funcionar muito bem em termos de dramatização das ansiedades sociais atuais: o desemprego pela automatização, as diferenças humano-máquina, a vigilância e a perda de privacidade, o isolamento e o distanciamento da natureza. Em termos formais, temos uma narrativa multilinear com múltiplas escolhas, mais centradas no diálogo, mas com implicações no desenrolar dos eventos. O melhor de tudo acaba sendo a escrita, ou seja, a capacidade de introduzir os temas complexos no meio das discussões e de nos fazer pensar sobre eles.
O jogo usa jogabilidade da gestão de corridas de táxi/uber para nos envolver no universo. Temos várias noites de trabalho, estamos numa cidade nova, e temos de fazer 3 circuitos diários, cuidando das estrelas que nos atribuem, recarregar a energia do carro escolhendo os locais mais em conta, assim como arranjar hotel todas as noites para descansar. No meio de tudo isto a narrativa desenrola-se pela conversação que encetamos com todos aqueles que vamos apanhando na cidade. A progressão, tanto no jogo como na narrativa, está imensamente cuidada, garantido grandes níveis de engajamento. Não raras as noites, queremos continuar, porque queremos saber mais, queremos ajudar, queremos descobrir, queremos avançar.
A imersão é ainda conseguida pela interface muito assente em grandes planos das faces, mesmo que estas nem sempre se concertem com o que está a ser dito, aproximam-se. Mas garantem uma proximidade com alguém ali na nossa frente, sem que, contudo, isso tenha implicado um grande investimento da equipa, em termos de recursos gráficos e de produção (é um jogo indie, e custa menos de 20 euros). Sem dúvida que o que leva o jogo às costas é a história e a sua escrita, tanto a componente linear, como as nossas escolhas.
No campo das escolhas, o mais importante de uma narrativa interativa, houve o cuidado de trabalhar as mesmas em duas frentes — racional e emocional. Não podemos sempre escolher o que queremos, existem condicionantes emocionais que por vezes nos impedem de reagir. Podemos de algum modo sentir a nossa liberdade recortada, por outro lado, é desta forma que conseguem garantir personalidade à Lina, a nossa condutora Uber. Ela não é uma mera extensão de nós, tem vontade própria, tem ansiedades e desejos, e nós enquanto jogamos não estamos meramente a controlar um universo interativo por meio dela, mas estamos a aprender sobre ela e com ela. No fundo, é assim que os autores conseguem gerar empatia entre nós e a Lina, e ao mesmo tempo produzir a enorme sensação de engajamento que sentimos com o jogo. Estamos, na esfera narrativa, mais do que um jogo, isto é uma história, e o que “Neo Cab” faz é construir um acesso privilegiado que o recetor usa não apenas para sorver a história, mas por meio dela experienciar uma realidade distinta da sua, o que é conseguido através da reflexão e consequente tomada de decisões dentro do mundo-história.
Edward O. Wilson é um célebre biólogo americano com uma extensíssima carreira. Académico em Harvarde de 1956 a 1996, continua ainda hoje a desenvolver trabalho, estudos e a escrever livros, depois de ter feito 90 anos em junho deste ano. Apesar da sua área ser as ciências naturais, Wilson é reconhecido pela sua enorme multidisciplinaridade, tendo defendido métodos para aproximar e conduzir à convergência, as ciências e humanidades, no seu livro “Consilience: The Unity of Knowledge” (1998). Este “The Origins of Creativity” (2017) é apenas um dos 16 livros que Wilson escreveu já neste século, depois de se ter reformado de Harvard.
Contextualizado o autor, perceber-se-á melhor a razão do interesse deste livro e simultaneamente a decepção. “The Origins of Creativity” não é, nem de perto, um livro sobre criatividade. É mais a soma de um conjunto de textos soltos, arrolados por interesses próximos e publicados no formato de livro. Deste modo, ao longo do livro encontramos ideias de grande relevância e impacto, contudo por não existir um trabalho cuidado de edição das ideias, estas acabam por nunca ser devidamente aprofundadas, e nalguns casos, algumas das questões levantadas nunca chegam sequer a ser respondidas. Por outro lado, o livro apresenta uma linguagem bastante acessível e Wilson é inexcedível em fornecer exemplos das mais variadas áreas, demonstrando a sua enorme erudição.
O foco do livro está todo na evolução do Homo Sapiens, dirigido à questão que já tinha tentado responder em "Consilience": como é que podemos juntar as ciências e humanidades? Para Wilson é evidente que não existe criatividade sem ambos os lados, contudo os perfis mais criativos tendem a conviver melhor com a mescla e fusão de ambos os lados, o que não acontece quando se está demasiado colado a um dos perfis apenas. Wilson diz ter uma proposta para juntar esses lados ou perfis, mas nunca chega a concretizá-la. Existem partes no livro em que parece aproximar-se da proposta de Denis Dutton, de juntar as neurociências e psicologias cognitiva e social nos seus contornos evolucionistas ao interpretativismo das humanidades, algo com que concordo plenamente. Noutras partes, questiona a “obsessão” das humanidades pelo humano (!) frisando que estas deveriam ir além, tal como usar as tecnologias para ver o mundo a partir de outras perspetivas, como por exemplo as capacidades sensoriais de outras espécies (ex. navegação sonora dos morcegos). Wilson chega mesmo a evocar a Realidade Virtual para ajudar nesta senda, mas depois não concretiza, e a proposta é, para quem trabalha no domínio da RV, fruto de mero deslumbramento tecnológico. No último capítulo, “O Terceiro Iluminismo”, Wilson volta a perder-se, lançando supostas grandes questões filosóficas da união entre a ciência e humanidade, que não vão além das mesmas já colocadas por todos aqueles que antes ousaram questionar-se a si mesmos.
No meio de todos estes problemas, surge a superficialidade por meio muitos buracos e pontas soltas, existem contudo vários traços da genialidade de Wilson que aproveito para aqui registar e divulgar. Deixo os excertos em inglês, porque não tenho a versão digital do livro português: A narração como instantâneo (p.50)
“Postmodern narrations and for that matter all fiction worth its mettle, does what science cannot: it provides an exact snapshot of a segment of culture in a particular place and time. The productions are like photographs that preserve for all time not just the people as they actually seemed, looked, or even truly were, including their dress and posture and facial expressions, but also the surroundings most important to them—their homes, their pets, their transportation, their trails and streets."
(..)
“Fine novels and antique photographs are pixels of history. Put together, they create an image of existence as people actually lived it, day by day, hour by hour, and in the case of literature, the emotions they felt. Finally, they trace some of the seemingly endless consequences that followed. ”
O poder da ciência e a míngua nas humanidades (p.81)
“Our most celebrated heroes are not poets or scientists; few Americans can name even a dozen of either living among us. Our heroes instead are billionaires, start-up innovators, nationally ranked entertainers, and champion athletes.”
(..)
“Science and technology have been supported massively by taxes from the American people for what is generally considered the public good. (..) The humanities, in contrast, are supported primarily by educational institutions (..) In the competition between science and the humanities for funds provided by the American people, the humanities rank consistently lower than science.”
(..)
“Americans are often reminded that research and development in basic science are good for the nation. That is obviously true. But it is equally true for the humanities, all across their domain from philosophy and jurisprudence to literature and history. They preserve our values. They turn us into patriots and not just cooperating citizens. They make clear why we abide by law built upon moral precepts and do not depend on inspired leadership by autocratic rulers. They remind us that in ancient times science itself was a dependent child of the humanities. It was called “natural philosophy.”
Why then are the humanities kept on starvation rations?
Partly because so much of our available resources are appropriated by organized religions.”
A importância das humanidades (p.177)
“The critic Helen Vendler broadens the key question as well as can be phrased: «If there did not exist, floating over us, all the symbolic representations that art and music, religion, philosophy, and history, have invented, and afterward all the interpretations and explanations of them that scholarly activity have passed on, what sort of people would we be?»
Neither the question nor the answer is rhetorical. ”
Mais um vídeo sobre o desenvolvimento de "The Last of Us" (2013) focado na narrativa, contando com uma excelente entrevista com Neil Druckmann, o co-diretor e principal responsável pelo argumento. Em pouco mais de 20 minutos Druckmann explica algumas das semelhanças entre a escrita para cinema e videojogos, destacando modos de representação, exposição e construção de arcos narrativos de personagens. Algumas coisas são já bem conhecidas, outras como a construção do argumento e o modo como ele é usado na encenação do jogo estão excelentes. Claro que ao longo da entrevista Druckmann vai sempre revelando pequenos detalhes sobre o design da narrativa que não só deliciam quem quer que tenha jogado, como dão conta do modo como tudo o que está no jogo foi pensado ao ínfimo detalhe.
"The Last of Us" continua sendo um dos melhores jogos de sempre do meio, apesar dos 6 anos passados, continua perfeitamente jogável e tão poderoso, em termos expressivos, como quando saiu.
É um livro estranho. Não por ser exótico ou extemporâneo, mas por trabalhar um tema doloroso — a deficiência congénita — de forma muito direta, a partir de um olhar vulgar, que faz com que a leitura se torne numa experiência estranha, misto de dor, espanto e surpresa. Em parte, deve à abordagem pela comédia negra que nos oferece todo um universo em constante transição entre realidade e fantasia. O relato é depois agravado por uma escrita desconsertada que não percebo se por razão da tradução ou originária do texto base japonês. “Uma Questão Pessoal” foi publicado por Kenzaburo Oe em 1964, exatamente 30 anos antes de receber o Nobel.
O protagonista, Bird de quase 30 anos, descobre que o seu filho, acabado de nascer, apresenta uma hérnia cerebral, o que representa baixas expectativas de sobrevivência sem uma operação que pode ditar o resto da vida num estado vegetal. A reação é visceral, mas colada às banalidades da vida quotidiana. Bird não se fecha na introspeção para puxar do seu existencialismo, não produz qualquer grito mudo ou pensa em qualquer haraquíri, antes desata em busca de interação com a realidade, repescando antigos colegas, não para deles sorver ânimo, mas para poder por meio da interação com eles fugir do problema.
O texto que ao terminar-se deixa um trago agridoce, pode, se assim o desejarmos, levar-nos a questionar os fundamentos da moral civilizacional. Se por um lado compreendemos a reação negativa do protagonista ao que o espera, não deixa de nos impactar a sua recusa do seu próprio filho, algo que Oe não deixa por mão alheia já que oferece todo um contorno algo negativo do protagonista. Temos muito álcool e sexo à mistura com muita indolência e displicência. Não que Oe pinte um diabo, a linha é mantida sempre coerente, com a honestidade e frontalidade do protagonista a garantir elevação, e por isso mesmo provocando em certos momentos alguma admiração. Li algures, sobre uma potencial proximidade entre este Bird de Oe e Meursault de Camus que aceito, embora e à distância sinta Meursault como alguém mais coerente e elaborado, talvez por neste caso termos uma abordagem cómica que nos impede de compreender o alcance concreto dos pensamentos do personagem, se são sentidos ou meramente sarcásticos.
Nota: A edição lida foi publicada na coleção da revista Sábado, mas existe em Portugal outra edição, pela Livros do Brasil, com outro título: "Não matem o bebé".
O caso raro da série de televisão que além de conseguir ser melhor que o filme é também melhor do que o livro. “Brideshead Revisited” (1945) tornou-se uma referência clássica e popular da literatura com a série homónima criada pela BBC em 1981, a mesma que nos deu a conhecer Jeremy Irons. A série recorre ao cenário apresentado no livro, mas injeta nele a vida e o mundo que faltava. Os cenários bucólicos e a música de sentimento intensamente nostálgico de Geoffrey Burgon criam um mundo idílico, que de certa forma Waugh parece querer apresentar no livro, mas sem sucesso. Pode-se dizer que o texto no inglês original é bastante mais poético do que a tradução portuguesa, e que a forma serviria esse ideal, mas se senti que Italo Svevo não era Proust, Waugh está ainda mais distante desse virtuosismo para nos poder oferecer esse mundo meramente pela forma.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Jeremy Irons e Anthony Andrews como Charles e Sebastian na série homónima da BBC, 1981
Quase todas as resenhas falam da questão religiosa como cerne evocativo da profundidade do romance, talvez porque a religião seja a única parte em que se sente o escritor a ser verdadeiramente jocoso. Ainda assim, é um tema que surge menos de meia-dúzia de vezes, e sempre com pouca ou nenhuma profundidade. Acredito que existe quem queira ali ver muito mais, mas parece-me estarmos no reino da mera ultra-interpretação. Aliás, quando terminei o livro as únicas palavras que me vieram à cabeça foi: superficialidade da profundidade.
Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.
Na imagem a "casa" em que vivia a família protagonista, tal como representada na série, com a música encantatória de Geoffrey Burgon
Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.