dezembro 18, 2019

"Época de Migração para Norte" (1966)

O maior impacto da leitura desta obra é a lucidez do autor, a luz imaculada que joga sobre diferentes eventos e conceitos para criar acesso a um mundo destilado, perfeitamente transparente. Temos o choque entre civilizações — letrada e iletrada — entre continentes — África e Europa —, mas aquilo que conduz a escrita de Tayeb Salih não são as diferenças, antes as semelhanças entre humanos, pertençam estes ao lugar que pertencerem, tenham eles evoluído e civilizado-se, nunca deixam de ser humanos, presos a padrões culturais e costumes.
"Sim, há camponeses, assim como há de tudo o resto», respondi eu. «Há, entre eles, operários, médicos, camponeses, professores — precisamente como nós.» E preferi não mencionar o que me ocorreu, nesse momento: precisamente como nós, nascem e morrem, transportando consigo sonhos, do berço à sepultura. E, destes, alguns são os que se realizam, gorando-se outros. Temem o desconhecido, buscam o amor e procuram a serenidade junto da mulher e dos filhos. Alguns são fortes, outros são miseráveis; a vida concedeu a alguns mais do que mereciam, consignando outros à privação. No entanto, as diferenças dissiparam-se e a maioria dos fracos deixou de sê-lo." (p.15)
É um livro apenas possível graças ao percurso de vida de Salih que teve oportunidade de sair do Sudão para estudar e trabalhar em Inglaterra e França, numa época de pós-colonialismo que o obrigaria a refletir sobre os contrastes entre o seu país de origem e os países colonizadores. Contudo Salih não se deixa seduzir pelos contrastes, o que seria o mais evidente e expectável, no fundo simples, acaba por se deter no aprofundamento das proximidades e semelhanças, sem esquecer as distâncias, o que acaba a garantir a enorme riqueza do seu texto. Ou seja, não se trata de um mero texto que aponta o dedo aos europeus ou aos africanos, antes coloca em choque de um lado e do outro as incoerências e fá-lo de um modo tão direto e límpido, como se nos permitisse ver a realidade pelos olhos de alguém completamente externo e sem partido. Como se Salih nos conduzisse através da representação do humano, nas suas diferentes fações, mostrando o bom e o mau, não como bom e mau, mas como essência do que é ser-se humano em cada lugar.

A escrita é belíssima.

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