“Marriage Story” (2019) é o último grande vencedor de audiências da Netflix, um filme com duas estrelas que aparenta retratar uma realidade próxima de todos nós. No entanto, a realidade apresentada não tem qualquer relação connosco, apenas é aparentemente próxima pela força da presença dos mundos de Hollywood e da Broadway no imaginário cultural ocidental. Bastaria pensar em quantos casais da classe média poderiam pagar a um advogado mil euros à hora. Claro que o facto de apresentar um casal, aparentemente bem-sucedido, cria aquela imagem do conto de fadas: “afinal também acontece com eles”. O problema é que não é disso que se trata, a história está centrada no mundo pessoal de Noah Baumbach, o realizador de “Marriage Story”, e na sua relação falhada com Jennifer Jason Leigh, reconhecida atriz de Hollywood. Existindo bons momentos, o filme acaba frisando um conjunto de problemas, não apenas pelo privilégio mas também pela diferença de pesos morais.
1 — Se o filme queria oferecer uma representação dos problemas gerais que decorrem do divórcio, tal não é possível a partir da relação oferecida. Para a generalidade da classe média rever-se em duas estrelas, não os atores, mas as suas profissões — um encenador da Broadway e a outra atriz e realizadora de Hollywood — é no mínimo distante. Ainda que os seus universos sejam clichés reconhecíveis, as suas realidades são imensamente distintas, não apenas financeiramente, mas em termos de privilégio e reconhecimento societal. O casal representado não pertence a um nicho, pertence a uma elite bem distinta.
2 — Se o filme queria dar conta do divórcio como algo emanado igualmente do homem e da mulher, falha redondamente, muito provavelmente por ser escrito por Noam e não pela Jennifer. Repare-se como tudo aquilo que o homem fez e faz é justificado, explicado e apresentado como atos inescapáveis ou altruístas. Tudo aquilo que a mulher faz surge do mero capricho individual. O homem é aquele que pensa nos outros, de quem todos dependem, a mulher é a autocentrada que não se preocupa com mais ninguém além do seu Eu.
3 — Todas as diferenças entre o homem e a mulher são intensamente exponenciadas pelo espaço e suas culturas, ou seja, o estrelato de Hollywood e a alta-cultura de NY. Hollywood a terra dos ricos, dos exageros, da superficialidade, da banalidade, do total desprezo pelo outro. Do outro lado, o teatro nova-iorquino, centrado no drama das vivências das pessoas comuns, com poucos meios, trabalhando-se por amor à profissão, em que importa mais o grupo do que o indivíduo.
4 — Para finalizar, se se queria dar conta do divórcio, porquê mais uma vez recuperar a imagem do filho criança, único, puro e angelical. Chegando ao final, a conclusão é que tudo teria sido fácil se ele não existisse. E seria? Se sim, então na verdade não havia uma história para contar.
Claro que existem boas sequências e as performances de Johansson e Driver são excepcionais. Mas se quiserem aceder ao tumulto interior do fim de uma relação aconselho antes, apesar de aparentemente distante por se passar no Irão, o filme "A Separation" (2011) de Asghar Farhadi.
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