fevereiro 18, 2012

O fim da Universidade, ou a simples arrogância tecnológica

Vou deixar aqui algumas ideias sobre o assunto da aprendizagem à distância, de que se fala desde há muito. O e-learning é algo recente, mas o ensino à distância existe desde muito antes disso, fazendo uso de canais como o correio ou a televisão. Impressiona ver como as pessoas passam por cima das experiências do passado e seguem debitando ideias sem parar para pensar realmente naquilo que estão a dizer. Sobre a ideia de ter um professor a leccionar para milhões no planeta inteiro, só posso dizer que é das coisas mais insanas que alguma vez ouvi. Muitas destas ideias, seguem apenas o buzz do momento, e limitam-se a meras conjunturas pensadas sobre o joelho, ou utopias baseadas em ficção-científica.

À L'École, representação da visão da escola para o ano 2000, vista a partir de 1910

Muito se tem falado das aulas do MIT e Yale que já se podem encontrar gratuitamente online, mas foi agora com a recente decisão do MIT de começar a oferecer certificação online gratuita que os discursos se inflamaram. Para alguns, isto é o sinal do fim das Universidades estatais americanas, e de milhares de universidades espalhadas pelo globo. Alguns referem como exemplo para o futuro da escola, as famosas aulas vídeo da Khan Academy, outros referem que os alunos aprendem directamente a partir da Wikipedia e do Facebook. Nomes conceituados das TIC como Bill Gates, afinam pelo mesmo diapasão, afirmando que as Universidades são uma espécie em vias de extinção. Outros escrevem sobre um futuro em que a cultura disponível no mundo online e uma abordagem DIY (Do-it-Yourself) criará as condições para que as Universidades se tornem obsoletas. Tudo isto ideias, que de algum modo parecem assentar no velho mito do self-made man.


Mas mais interessante, é que todos estes discursos são proferidos, não pela sociedade em geral, mas tudo por pessoas oriundas dos sistemas de ensino mais elitistas do planeta. O defensor da auto-formação via Wikipedia/Facebook doutorou-se em Yale, a autora do texto apocalíptico sobre a Universidade pós-elearning tem um MBA da Universidade de Chicago, o fundador da Khan Academy, possui 3 licenciaturas do MIT e um MBA, assim como o atual presidente da Khan Academy possui 4 licenciaturas do MIT. Bill Gates esteve na Universidade de Harvard alguns anos, apesar de não ter terminado a licenciatura, não por não querer, mas por se ter envolvido na criação da Microsoft. A autora do movimento DIY-U é formada em Yale. E isto deve-nos fazer questionar sobre o que seria cada uma destas pessoas, sem estes sistemas de ensino por detrás, teriam chegado todos até aqui?

Salman Khan

As pessoas esquecem que a escola sempre existiu, o que nasceu no século XVIII não foi a escola, mas o modelo de escola moderno que hoje temos. A escola existe desde que iniciámos a caminhada neste planeta enquanto espécie gregária, enquanto espécie social, que depende do grupo para sobreviver. No grupo, os mais velhos sempre tiveram o papel obrigatório e fundamental de ensinar os mais novos, para que estes pudessem evitar perigos conhecidos, através do conhecimento empírico legado pelas gerações anteriores. Com o passar de milénios fomos criando formas de registo externas, sendo as primeiras formas, as próprias ferramentas de pedra e madeira esculpidas há um par de milhões de anos. Mas tivemos de esperar que o nosso sistema de linguagem evoluísse para que ideias mais complexas se criassem, e isso criasse em nós a necessidade de dar corpo material a essas mesmas ideias.

A escola representada em pinturas do antigo Egipto

Assim a linguagem apareceu apenas há cerca de 50 mil anos, e os primeiros registos externos vieram em forma de pintura há 40 mil anos espalhados por algumas cavernas do centro-sul da Europa. A linguagem e a pintura levariam à criação dos primeiros sistemas de partilha de informação codificada, criando assim os primeiros sistemas de escrita há uns meros 4 mil anos atrás. Tudo o que criámos depois disto, são mesclas conceptuais permitidas pela evolução tecnológica e artística. Registos como a fotografia e o vídeo que descendem directamente da pintura, ou os videojogos que descendem directamente da escultura.

Pinturas nas cavernas de Lascaux, datadas de 40 mil anos

Todas estas formas de registo, aliviaram os nossos constrangimentos de memória, libertando a nossa mente para se dedicar mais e mais à inovação. Mas os mais velhos nunca deixaram de ser importantes, na transmissão do conhecimento, porque aquilo que verdadeiramente se transmite de geração em geração não se pode definir num punhado de dados discretos, mas reflecte-se antes num conjunto de experiências que se ramificam e inter-conectam com lugares, pessoas, e momentos no tempo.

Ruínas da Universidade de Nalanda, criada em 400 A.C.

E as Universidades não foram criadas no século XVIII, a primeira Universidade, com 10 mil alunos de que temos registos, data de 400 A.C. na India, a Universidade de Nalanda. A ocidente na Europa, teríamos de esperar até ao início do segundo milénio D.C. para ver nascer a Universidade de Bolonha. Mas o que aconteceu então no século XVIII? Foi criado o modelo industrial de escola. Um modelo estruturado no tempo e com métodos de avaliação e classificação, que requerem muito da componente de memorização, assim como raciocínio humano, mas que acima de tudo ignora o estilo individual de aprendizagem e busca um padrão que sirva a massificação do ensino. E é esta a ideia de escola que criticamos. No entanto depois de tanta discussão em redor deste problema, que parece ter sido compreendido por uma grande parte da sociedade, através do magnífico trabalho de pessoas como Ken Robinson ou Howard Gardner, tudo parece ter sido esquecido.

Universidade de Bolonha, criada em 1088

De repente parece já não ter importância, ter massas de pessoas a aprender de forma igual, e a aprender o mesmo, mas queremos mais do que isso, queremos um sistema universal, que chegue aos milhões de pessoas. Queremos que um único professor debite a sua perspectiva subjectiva, e formate todo o planeta como um só. Dizem-nos que as Universidades vão desaparecer, e vão apenas restar as grandes Universidades, as que possuem uma Marca, capaz de imprimir diplomas importantes!!! Mas?! Alguém se questionou porque é que o canudo do MIT é importante, não será o facto de esta ser altamente exclusiva, que faz dela uma marca de "qualidade"? A regra básica da persuasão social, diz-nos que a raridade dos elementos, torna-os apetecíveis, o seu contrário torna-os desprezíveis. Mas mais do que as regras de marketing, fará sentido recorrer a uma visão única do conhecimento para a resolução de problemas singulares, com particularidades próprias das zonas geográficas aonde se encontram, com as particularidades sociais e culturais das comunidades em questão, e acima de tudo com as especificidades psicológicas, emocionais e motivacionais de cada indivíduo?!

Voltando ao discurso dos senhores da elite universitária, que agora adivinham o fim do sistema. Estes só demonstram que quem usa massivamente as tecnologias para criar e inovar, não são os autodidatas que não foram à universidade, mas são aqueles que frequentaram as universidades. Ou seja para poder usar as tecnologias, construir, criar algo, não é preciso aprender a usar as tecnologias, que cada vez tornamos mais fáceis no seu uso. É preciso antes aprender a pensar, aprender a aprender, aprender a ser autónomo, proactivo, empreendedor, e é preciso construir uma forte bagagem cultural. Tudo isto não se aprende com um simples acesso à web, depende antes de uma interação forte com professores e alunos. O e-learning ajudará, mas de forma alguma conseguirá substituir-se ao ensino presencial, porque o que está em causa é a forte interação humana.

A Telescola portuguesa

Apesar de ser um grande defensor das tecnologias interactivas, dos videojogos na educação, não tenho qualquer dúvida sobre of facto de estes não poderem servir o fim do ensino de modo exclusivo. A Telescola não o fez, e não será agora por termos mais informação e a possibilidade de desenvolver tecnologias interactivas, que isso vai acontecer. A razão principal para eu ver isto deste modo, é só uma, o processo de socialização humano. Mais do que os conteúdos na especificidade, a escola é um dos principais pilares no processo de construção do Eu, desde a Infantil à Universidade. Deste processo que se constrói lentamente ao longo de anos, fazem parte duas questões essenciais ao humano, a mímica e a empatia, que por sua vez se tornam responsáveis pelo desenvolvimento de competências para a construção de novos comportamentos, novas visões, e claro novos horizontes. Voltando à primeira imagem deste texto, aprender não é meramente absorver o que está escrito num livro.

5 comentários:

  1. Parece-me que, ao longo do texto, você confundiu (i) a hipótese do fim (ou perda de importância) das instituições universitárias tradicionais e (ii) a hipótese do fim (ou perda de importância) das aulas (ou do aprendizado) presenciais.

    Não me parece que garantir a continuidade da importância do aprendizado presencial garanta também a preservação das instituições universitárias como as conhecemos hoje. As universidade são, ao mesmo tempo, “elitistas”, mas massificadas. Elas precisam de um grande público alvo para se manterem funcionando. Elas podem perder a importância também pela multiplicação e pulverização de formas alternativas de aprendizado. Não é preciso necessariamente um professor ensinando a milhões, mas também o surgimento de milhões de outras opções de ensino, voltadas para pequenos grupos, também pode produzir o mesmo efeito.

    Um problema da universidade seria justamente a massificação e padronização que homogeneiza (e nivela por baixo) o ensino. A substituição dela por um sistema de ensino a distância universal multiplicaria o problema. Mas a tecnologia não tem só esse poder, mas também o de oferecer uma multidão de outras formas de aprendizado.

    Adicionalmente, parece-me que você defende que a forma específica de instituição de ensino que temos hoje não iria sumir porque sempre houve formas ou instituições diferentes de ensino. Se eu entendi direito, o argumento me parece contraditório. Ele deveria ser justamente uma forma de acalmar o leitor e mostrar que a universidade moderna não é eterna, mas que a educação sempre pode assumir formas institucionais diferentes.

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  2. Caro Rerisson, muito obrigado pelo comentário e partilha de ideias.

    Eu não penso ter confundido, mas aceito ter unido ambas, porque apesar de parecerem duas ideias distintas, são menos do que aparentam. Mas aceito que o texto não dê uma ideia completa do raciocínio, porque não tem espaço para isso. Claramente que a discussão merecia um tratamento em maior profundidade, com maior suporte na argumentação, mas o meu interesse era apenas dar resposta ao ridículo das afirmações contidas no texto “Envisioning a Post-Campus America” de Megan McArdle publicado na conceituada revista The Atlantic.

    Como disse na partilha do texto de McArdle realizada pelo Prof. Dias Figueiredo no Facebook .

    “Este texto foi para para mim a gota de água, não resisti, por isso aqui fica a minha resposta à autora.”

    Aliás, aproveito para transcrever para aqui a resposta do Prof. Dias Figueiredo à minha reacção, com a qual concordo integralmente

    “É que o artigo em causa, surpreendentemente aceite pelo 'Atlantic', não me pareceu uma manifestação de arrogância tecnológica. Pareceu-me, muito pior do que isso, uma manifestação do espírito contabilístico que cada vez mais governa o nosso mundo, e que, nas mãos dos contabilistas centro-europeus, está a deitar a perder a nossa pobre Europa. É que gente desta chega ao poder! Melhor: muita da gente que chega ao poder é desta! E muitos dos absurdos aos quais agora reagimos com revolta acabam por se tornar realidade!...”


    Quanto ao resto, as Universidades já não são elitistas, simplesmente porque se massificaram no planeta. Elitistas são apenas aquelas que o marketing e os governos de cada país decidem ser. Ou seja, não seria possível existir uma Ivy League nos EUA, sem toda uma fortíssima ação de Publicidade e Relações Públicas que leva a mensagem pelo mundo, e sem o total apoio dos Governos dos EUA. Contudo, a Universidade fora destes domínios e é a predominante, é acessível a qualquer pessoa nos EUA e na Europa, e vai-o sendo cada vez mais no resto do planeta. Sei bem que os tempos atuais de crise, têm tornado essa acessibilidade menos real, mas quero acreditar que faz parte da condição de abaixamento económico mundial, que acabará por virar novamente.

    Quanto às tecnologias que vamos criando, desde a invenção da escrita até aos dias hoje, são tudo atributos tecnológicos fantásticos, que servem e muito para melhorar o desempenho humano e das instituições de ensino. Contudo, a questão que eu levanto no meu texto não se resolve com mais tecnologia. Falo de algo intrinsecamente orgânico, sede da condição humana.

    Com isto não quero dizer que a Universidade é imortal, longe disso. O que quero dizer é que a condição de aprender em grupo, e guiados por pessoas mais velhas e/ou mais experientes, continua a ser o modelo mais capaz. Agora se quisermos chamar-lhe outro nome, podemos, o nome é o menos relevante no meio de tudo isto. Aliás por isso mesmo ao longo do texto, vou referindo Escola como conceito, esse é o modelo que verdadeiramente interessa aqui definir, e que pode ir desde crianças aos adultos.

    Quanto ao grande problema da Universidade, ou melhor da Escola, que é o da massificação e padronização. Esse é um problema que tem mais que ver com a rigidez dos modelos implementados no Século XVIII do que propriamente com a ideia de Escola ou Universidade. Se retirarmos essa rigidez, que transformou as Escolas em Fábricas, e lhes dermos espaço e tempo, elas poderão conseguir sair desse espartilho. Não resolveremos esse problema acabando com a Instituição da Escola, mas antes transformando a mesma num espaço mais aberto de troca, e interacção social.

    -- continua

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  3. -- continuação do comentário anterior (dada a limitação de carateres imposta pelo blogger)


    Essa é a única forma de evitar o nivelamento por baixo, que é permitir que um professor consiga ter tempo, espaço e seja motivado para seguir, compreender, e motivar os alunos a melhorar, cada um ao seu ritmo, mas mais do que isso ajudá-los a encontrarem-se a si próprios, e a encontrarem aquilo em que fazem a diferença no seio da sociedade em que se encontram.

    Quanto ao defender que a instituição não vai desaparecer e à sustentação com dados históricos, é porque fazer futurologia, sem olhar ao passado, me parece em primeiro lugar ignorância, e em segundo lugar arrogância. Nós não temos hoje a Escola e as Universidades, por acaso, são fruto de milhares de anos de evolução e experiências, atravessaram muitos períodos críticos, muitas guerras, crises, e inovações tecnológicas. Se ainda cá estão, devemos tentar perceber porquê, e não apenas chutar para a frente.

    A ideia é perceber como surgiu, como se alterou ao longo dos tempos, o que melhorou e o que piorou, e perceber o que podemos fazer para alterar. Pensar que tudo se vai resolver com o aparecimento de uma qualquer inovação tecnológica, que vai transformar tudo e acabar com algo que demorámos milhares de anos a criar, é ingenuidade. Mais uma vez, a Universidade Moderna não é eterna, mas o conceito de Escola, como um meio de passagem de conhecimento em ambiente comunitário físico, é para mim essencial.

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  4. Nélson, fez-me muito bem ler o seu tão lúcido e abalizado comentário sobre os futurólogos deterministas (Deus, não compreendo como se pode ter tanta certeza numa era de tantas incertezas e deslocamentos!) que preveem o fim da universidade enquanto instituição. Olhando o passado, refletindo sobre o modo como nos construímos e como aprendemos, seu texto contribui para aquilo de que mais precisamos em tempos de mudanças paradigmáticas: a lucidez, a prudência, a crítica e, sobretudo, a consideração de nossa história (que, como a nossa evolução, não se dá "aos saltos")!

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  5. De facto ao encararmos as universidades como sistemas de atividade, que me parece uma noção adequada, duas implicações se podem apresentar:
    A primeira é que a soma das contribuições individuais não é o mesmo do que o total das contribuições desta enquanto sistema.
    Segundo, e isto falo por experiência própria, as interações pessoais detêm uma componente que julgo escapar à comunicação à distância seja esta síncrona ou assíncrona. E refiro-me a relexões ou discussões que surgem às vezes até a despropósito, mas que no entanto se revelam cruciais por algum motivo.
    Em síntese a educação à distância ou o elearning poderá servir nobres propósitos, sempre será melhor do que a inexistência de possibilidades, no entanto seguramente não será o mesmo por comparação com um sistema de ação educativa em presença.

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