janeiro 22, 2023

Game design em "Far Cry 5"

Não ia escrever sobre "Far Cry 5" (2018), pela simples razão de ser apenas mais um jogo de grande orçamento, de uma série que já vai longa, não me parecendo necessário dizer mais do que aquilo que já foi dito pelas várias revistas da área. Contudo, à medida que o tempo foi passando a memória da experiência que permaneceu fez-me voltar a ele vezes sem conta. Por isso aqui ficam alguns elementos que fazem deste trabalho uma obra excecional muito em particular no campo do game design, mas também na arte visual e storytelling. 

janeiro 14, 2023

Humanos e Máquinas: métricas da mediania

O título “The Tyranny of Metrics” do professor Jerry Z. Muller é indissociável do título “The Tyranny of Merit” do imensamente mais conhecido professor Michael J. Sandel. Mas em defesa de Muller, o seu livro é de 2018, e o de Sandel de 2020. Mas a aproximação não se fica pelos títulos, vai ao fundo dos dois tópicos eleitos: mérito e métricas. Não as colocando lado a lado, mas antes em lados opostos, diga-se lados políticos. Porque se o “mérito” é o santo graal da esquerda, o motor da crença messiânica de que todos podemos ser tudo e fazer tudo desde que nos esforcemos. As métricas são o Santo Graal da direita, em que tudo tem de ser medido para que tudo possa ser transparente, porque só quando ajustado pela medida objetiva se pode eliminar qualquer vestígio de viés humano.

As métricas que nos transformam em máquinas

janeiro 08, 2023

Um Booker dececionante

As expectativas que tinha a propósito de "A Senda Estreita para o Norte Profundo" (2014) determinaram uma experiência de leitura pouco abonatória. Dois elementos contribuíram para essas expectativas: o prémio Booker que costumo seguir e respeitar; o relato do trabalho violentíssimo a que foram submetidos os prisioneiros da segunda grande guerra pelos japoneses na construção de uma linha de caminho de ferro na Birmânia. Se a escrita pareceu, por vezes, estar ao nível do esperado de um Booker; a história real apresentada pareceu servir ao autor apenas de cenário de fundo ao romancear de amores desencontrados.

janeiro 07, 2023

Como Não Fazer Nada

Jenny Odell é uma artista e professora de design digital na Universidade de Stanford, e o seu livro "How to Do Nothing: Resisting the Attention Economy" de 2019 tornou-se um best-seller nos EUA, ou como se diz na gíria da internet, tornou-se viral. A razão prende-se essencialmente com o argumento que discute: como lidar com um mundo em alta-rodagem em que somos continuamente monitorizados e se espera que atinjamos mais e mais resultados. A discussão realiza-se num plano próximo, em que todos aqueles que trabalham no mundo dos serviços e usam redes sociais no seu dia-a-dia facilmente se reconhecerão, mas enriquece essa discussão com teorização da psicologia e fenomenologia, assim como com a sua própria experiência. Odell nasceu em Cupertino na California, a pequena cidade que alberga a sede "espacial" da Apple, considerada um dos corações de Silicon Valley, tendo crescido no meio da tecnologia procurou conciliar a mesma com os seus estudos em artes.

janeiro 01, 2023

“Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975)

Se de nada mais valesse, o cânone que a revista britânica Sight & Sound* vem criando e revendo desde 1952, já serviu para demonstrar o quão enviesada pode ser a nossa visão de um mundo quando nos é apresentada por um grupo de pessoas pouco, ou nada, diverso. Foram necessárias sete décadas para que um filme criado por uma mulher chegasse ao Top 10, e tal foi apenas conseguido porque se alargou tremendamente o leque de críticos ouvidos (de 63 em 1952 para 1639 em 2022), mas acima de tudo porque se diversificou o seu género. 

A metáfora em Lobo Antunes

Não é bem uma novela, é mais um poema em prosa sobre as memórias de um ex-combatente da Guerra Colonial Portuguesa, um militar médico português enviado para Angola. Neste perfil encaixa o próprio autor, António Lobo Antunes, que tendo terminado a licenciatura em medicina (a especialização em psiquiatra só viria depois) foi destacado para guerra colonial em Angola, entre 1971 e 1973. Neste sentido, podemos dizer que se trata de uma obra autobiográfica, carregada de emocionalidade, transposta na forma de uma escrita profundamente poética.

dezembro 31, 2022

Cyberpunk 2077 (PS5, p1.6)

Há já algum tempo que não sentia tanta satisfação ao chegar ao final de uma história. Tudo perfeito, talvez perfeito demais, num sentido convencional em que se estimulam os sentimentos por via dos valores da família, dos amigos e claro do casal romântico. Ainda assim, no meio de uma distopia pós-apocalíptica tecnológica, o cyberpunk, soube muito bem reencontrar as dimensões do humano como prevalentes. Em "Cyberpunk 2077", a máxima de Pawel Sasko, diretor do Design de Missões, “story goes first with everything” é uma realidade. Podemos navegar o mundo, podemos explorar todas as funções da nossa personagem, das tecnologias, das armas, dos carros, podemos envolver-nos numa miríade de confusões e pequenas missões, mas a história está sempre lá, o nosso personagem está perfeitamente delineado e impacta e é impactado pelo que acontece ao longo da nossa experiência. Não é um RPG tradicional, mas também não é mero Ação-Aventura, é um verdadeiro Immersive Sim, capaz de morfosear RPG, FPS, Stealth, Racing, Cartas, Plataformas e muito Survival, tudo oferecido num mundo aberto deslumbrante. 



dezembro 30, 2022

Máquinas de contar histórias

"Story Machines: How Computers Have Become Creative Writers" foi publicado em julho 2022, mas os seus autores, Mike Sharples e Rafael Perez, académicos na área da aprendizagem e criatividade IA, dizem-nos que o livro começou a ser preparado em 2001, por isso não se espere aqui um tratado sobre o enorme potencial aberto pelos sistemas GPT, que apesar de serem abordados representam apenas uma pequena parte da discussão.

dezembro 26, 2022

A Mente e a Lua

Daniel Bergner realiza serviço público com este livro, “The Mind and the Moon” (2022), ao dar conta do modo como a medicina lida com a doença mental no século XXI. Bergner começa por relatar o horror de um passado não muito distante, dos primeiros hospícios às lobotomias de Egas Moniz, evidenciando que se muito mudou, mudou mais ainda com a secundarização de Freud e a atribuição total de primazia ao poder da química para alterar a biologia. Podemos pensar que tudo foi sendo feito em nome da evidência científica, os problemas começam quando essa não é tão evidente como a indústria farmaceutica quer fazer crer. Os problemas acontecem quando a evidência funciona apenas para uma parte da população, enquanto na outra não vai além de placebo. Os problemas acontecem quando parecendo que funciona acaba por ditar uma qualidade de vida pior do que aquela que existia na sua ausência. Senti por vezes algum receio em continuar a leitura por, em partes, o discurso roçar a teoria da conspiração. Mas, o facto de Bergner ter vários livros publicados, escrever para algumas revistas de referência internacional, e acima de tudo estar a dar conta, em parte, de memórias vividas ao lado de um irmão que passou os últimos 40 anos a lutar com a doença, faz com que nos disponhamos a continuar a ler. Bergner questiona tudo e todos sobre os tratamentos, quase exclusivamente assentes no químico, que oferecemos à doença mental, terminando apenas com uma certeza, a de que continuamos a saber muito pouco sobre o funcionamento da mente.