agosto 18, 2018

As 1001 histórias

O livro “As Mil e Uma Noites” é hoje parte do imaginário da humanidade. É uma das poucas obras exteriores ao ocidente, geograficamente, a ter neste penetrado e assumido estatuto de clássico e de texto canónico. Pela sua própria génese está ele próprio para além da definição geográfica, já que as histórias que o constituem provêm de vários países e continentes, desde a China à Índia, passando por África, focando-se maioritariamente em todo o Médio Oriente (Arábia e Pérsia), ao que se juntou, na reta final, também a mão europeia. Tendo em conta esta dimensão geográfica, facilmente se depreende que não foi uma obra criada por um autor único, daí que esta se considere fruto de autor anónimo. Como tal também não foi escrita num único ano, nem século, convencionou-se que a primeira versão terá surgido no século IX, mas desde então foram surgindo, em cada século, versões diferentes com acrescentos, alterações e variações, até à chegada da obra à Europa no século XVIII, sem que ainda hoje se possa definir qual a versão original e definitiva. Dito tudo isto, percebe-se também que um dos maiores atributos académicos deste texto assenta exatamente na sua arqueologia, tentar perceber a origem dos vários contos tanto no tempo como na proveniência geográfica, assim como na composição do próprio livro (serão mesmo 1001 contos? teriam uma ordem, qual? quais partiram da oralidade e quais da escrita?). Para todas estas questões faltam respostas conclusivas, o que desde logo abre todo um imenso cenário de investigação possível. Para a maior parte de nós, mais interessados no livro e suas histórias, do que na história arqueológica, não precisamos de o ler para o conhecer já que desde crianças somos presenteados com o seu universo — desde os livros infantis, à animação, cinema, teatro e jogos — mas, e por causa disto mesmo, a sua leitura acaba sendo imensamente prazerosa graças a toda essa nostalgia. É inevitável sentir alguns arrepios durante a leitura, pelo modo como vamos desenvolvendo associações entre o que lemos e as experiências passadas vividas com cada história, desde Ali Baba aos tapetes voadores, passando pelos sultões, génios e concubinas, aos mágicos poderes, e animais fantásticos em terras distantes e exóticas.

Edição de "As 1001 Noites" pelo Expresso e Alêtheia de 2017

No campo da análise estritamente literária, o livro oferece pouco mais além do seu interesse arqueológico e da popularidade global conquistada. O seu lado fantástico serve bem as histórias de aventuras e policiais, assim como o lado romance serve o amor, intriga e vingança, e nalgumas versões o erotismo. O texto em si constitui-se de imensa repetição, tanto de temas, como conflitos, personagens, cenários e claro estruturas narrativas. A exceção surge na instigante macroestrutura da obra, sempre citada e admirada como referência da literatura e que se resume no conceito de "frame story" ("história moldura"). Podemos então dizer que o maior atributo literário de " As Mil e Uma Noites" é a sua "história moldura", que acaba espelhando a nossa própria leitura, e que se define assim:
Um rei árabe, depois de traído pela mulher, inicia uma vingança que consiste em todos os dias desflorar uma virgem e no dia seguinte mandá-la decapitar. A chacina produz efeitos devastadores na região até que surge Xerazade que se propõe terminar com a mesma, a sua arma é: contar histórias. Assim, Xerazade casa-se com o Rei e durante toda a primeira noite conta-lhe uma história, chegando ao dealbar, não termina a história porque, diz ela, não tem mais tempo, deixando a conclusão pendurada (criando aquilo que hoje definimos como gancho narrativo ou "cliffhanger"), o Rei claro, adia a sua morte, para poder ouvir o final na noite seguinte, mas na noite seguinte Xerazade repete a estratégia, já que  inteligentemente vai contando as histórias por meio de elos que abre e fecha em função do controlo que pretende da atenção do rei. 

Parecendo simples, a moldura ganha enorme significado literário, pelo poder que metaforicamente concede à literatura, nomeadamente ao contar de histórias. No campo do desejo e prazer, temos o ouvir de histórias colocado ao nível dos prazeres da carne, com o Rei a preferir continuar a ouvir histórias em vez de consumar os prazeres da carne com virgens do seu reino. No campo político, as histórias assumem a capacidade de apaziguar a ira e a sede de vingança. Este último ponto é talvez o mais relevante, e olhando à evolução da sociedade, nomeadamente ao surgimento de novos media ao longo do último século, que têm servido para aumentar exponencialmente o contar de histórias, fazendo com que chegue a todo o lado e em doses maciças (livros, cinema, televisão, videojogos, etc.), e cruzando esta evolução com a contínua diminuição da violência entre humanos, como fica patente no trabalho de Steven Pinker, podemos assumir esta receita prescrita pelas “As Mil e Uma Noites” como válida. Deste modo podemos assumir as " As Mil e Uma Noites " como homenagem, diria mesmo, monumento literário ao contar de histórias.


Em termos de manutenção do interesse do leitor, as "As Mil e Uma Noites" presenteia-nos com todos os tipos de artifícios narrativos, principalmente aqueles que reconhecemos como mais ligados aos géneros de aventura, policial e fantástico. Desde os ganchos, já acima referidos, ao célebre "whodunit" ("who done it", ou seja, quem foi, ou quem matou), passando pelo hitchcokiano "MacGuffin" (objetos perseguidos pelos protagonistas sem grandes explicações, e muitas vezes irrelevantes para a trama), todos ao serviço do contar de histórias, da gestão do interesse e curiosidade dos leitores. Diga-se que são aqui usados de modo hábil, já que não raras vezes parei a olhar para as páginas, dizendo para mim, "que coisa estrambólica", e, no entanto, a curiosidade de saber o que se seguiria, mantinha-me ali preso ao virar de página. Estruturalmente a forma predominante é a dos ciclos de histórias dentro de histórias, criando matrioskas narrativas, tal como a própria história-moldura. Assumimos o lugar do Rei, ouvintes, seguindo atrás do contínuo debitar de histórias de Xerazade, com a nossa curiosidade sempre em busca de saciedade, que como “As 1001 noites” faz questão de demonstrar é insaciável, e por mais redundantes e repetitivas que sejam as narrativas acabam servindo o desejo intrínseco ao ser humano de querer conhecer e saber infinitamente mais.


Esta moldura-história é relevante, não pela originalidade, porque até já a "Odisseia" usava a abordagem, mas porque serve de cola a contos altamente díspares, ao contrário dos quadros da "Odisseia" que estão organizados para um fim, e assim mantém o nosso interesse sempre fresco já que de cada vez que uma história começa a perder-nos, entra Xerazade para nos recordar que está ali atenta ao nosso interesse. Não se espere, contudo, um diálogo profuso de Xerazade com o rei, ou melhor connosco, leitores, não esqueçamos que esta é uma obra fruto de vários autores e de vários séculos. Pedir-lhe essa força de unificação de enredo está para além das suas possibilidades. Por outro lado, também não se enalteça, como não raramente vemos fazer, as suas propriedades e originalidades, como já dissemos, milhares de anos antes tivemos "Gilgamesh", "Ilíada", “Odisseia”, “Eneida”, e tantas e tantas peças de teatro.


Quanto a versões, é difícil aconselhar. Passei os olhos por várias nacionais, brasileiras e inglesas, mas de tanta diferença entre elas acabei concluindo que cada tradutor opta por criar a sua. A mais referenciada, porque a primeira a dar-nos a conhecer o texto, é a de Antoine Galland, traduzida para quase todas as línguas, e foi essa que eu li na edição publicada pelo jornal Expresso com a Editora Alêtheia de 2017. É uma edição mais curta, com o texto imensamente limado, nomeadamente no campo do erotismo e violência, e por isso acusada hoje de faltar à verdade do texto original. Embora do que pude ler em edições, ditas traduzidas diretamente do Árabe sem arestas limadas, não vi propriamente nada de revolucionário. Em Portugal a E-Primatur publicou no ano passado o primeiro volume do que parece ser a primeira tradução nacional diretamente do árabe, por Hugo Maia. Li algumas entrevistas com o tradutor, e não gostei da arrogância no modo como aponta o dedo às outras edições, esquecendo que se “As Mil e Uma Noites” são o que são devem-no a todas essas múltiplas versões e não ao texto original. Porque o texto, dito original, está longe de poder definir-se como coeso, uno e fechado. Foram múltiplos os intervenientes no texto durante séculos, por isso nunca poderemos ter uma versão definitiva. Vou mesmo ao ponto de dizer que os contos de "Ali Baba e os 40 Ladrões" e "Aladino", de que parecem existir provas de terem sido acrescentados apenas no século XVIII por Galland, devam ser vistos como parte da tapeçaria que constitui a história da construção da obra.


“As Mil e Uma Noites” deve ser visto como conjunto de histórias que abre portas para um imaginário fantástico de puro divertimento, sem preocupações de aprofundamento moral ou outro, e por isso aconselhável a quem busca o escapismo, nomeadamente os mais novos (na versão menos crua). Ao contrário do que fui lendo em algumas resenhas, espero que não tentem ver nesta obra uma janela para a cultura do médio-oriente, pelo menos não a atual. Sim, existem proximidades, mas claramente ampliadas pela sede de exotismo, ponhamos muito sal na fervura, assim como devemos pedir aos nossos amigos persas e árabes que façam o mesmo quando lerem o nosso D. Quixote ou Robin dos Bosques.


Para fechar, deixo uma lista das histórias que me mereceram maior interesse. Como disse, li uma versão mais resumida, já que existem versões bastante maiores, mas nem todas as histórias são tão interessantes, muitas delas são bastante inconsequentes, outras até incoerentes, por isso aqui fica uma seleção daquilo que dá conta do espírito da obra e das suas maiores conquistas:



1 - Xarir e Xerazade
A história-moldura, responsável pelo lançar de todas as restantes histórias.

2 - História das Três Maçãs
Uma história de tipo policial, em que a trama é muito bem urdida, fazendo-nos sentir a dor dos dilemas.

3 - O Vizir e o Sábio Duban
A história que deu a ideia de colocar veneno no virar de páginas a Umberto Eco para o "O Nome da Rosa".

4 - O Pescador e o Génio
A fantasia dos reinos invisíveis e dos peixes multicolores.

5 - O Sonhador
A provável génese da parábola de troca de papéis entre o rico e o pobre.

6 – Os Três Príncipes e a Princesa Nouronnihar
A história em que surgiu o tapete voador e o telescópio que permite ver o que se desejar mentalmente.

7 - Ali Baba e os Quarenta Ladrões
Ainda que se possa dizer que não é pertença do livro, que contenha inovações literárias fora de época, é uma das histórias mais emblemáticas do lote, a ponto de as suas palavras mágicas “Abre-te Sésamo” se ter tornado sinónimo de todo o livro.

8 – As Sete Viagens de Sinbad
Ciclos de histórias sobre as aventuras de um marinheiro destemido, a fazer lembrar, embora sem a mesma profundidade, as aventuras de Gulliver.

9 – A Maravilhosa Lâmpada de Aladino
A história em que o génio e sua lâmpada são os verdadeiros personagens principais.

10 – O Terceiro Dervixe
Os lugares mágicos e as portas que nunca devemos abrir.

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