Não ia escrever sobre "Far Cry 5" (2018), pela simples razão de ser apenas mais um jogo de grande orçamento, de uma série que já vai longa, não me parecendo necessário dizer mais do que aquilo que já foi dito pelas várias revistas da área. Contudo, à medida que o tempo foi passando a memória da experiência que permaneceu fez-me voltar a ele vezes sem conta. Por isso aqui ficam alguns elementos que fazem deste trabalho uma obra excecional muito em particular no campo do game design, mas também na arte visual e storytelling.
De ressalvar que o facto de contar bem uma história, não quer dizer que a história que se conta seja ela também boa. Em linhas gerais, estamos num região do interior americano, onde um culto liderado por um guru evangélico oprime tudo e todos, e conduz as pessoas para uma espécie de apocalipse. Cabe-nos salvar a região, ajudar a resistência, e recuperar a vida das pessoas. Funciona muito bem como estímulo da raiva, e as cutscenes são belíssimas a fazer-nos crer naqueles personagens e a desejar ir atrás deles. Contudo, peca por aprofundar muito pouco o que todo aquele culto nos diz sobre a humanidade, e como se chega a um ponto daqueles, algo a que não é totalmente alheio muita da extrema-direita que anda para aí. Aliás, existe mesmo algum exagero na criação de empatia com os líderes do culto, isto para não dizer que o final é no mínimo caricato (mas fica para quem o jogar).
Game design brilhante
O mundo de "Far Cry 5" foi criado como uma caixa de areia extremamente dinâmica oferecendo um dos mais ricos ambientes à exploração criativa dos jogadores que já joguei, oferecendo liberdade como raramente vi antes. Temos um mundo enorme dividido em 3 grandes áreas, podendo fazer-se uma área de cada vez, ou saltar de área em área, à medida que nos vamos cansando e queremos novidade, ou simplesmente à medida que vamos deambulando pelo mundo. Todo o mundo foi desenhado por forma a garantir exploração a par e passo. Não existem tempos mortos, mesmo quando vamos pescar, nunca param de passar pessoas, carros, motas, barcos ou aviões por nós, que atraem a nossa atenção, ou que simplesmente se metem connosco. É impressionante o dinamismo imprimido, que garante que nunca nos falta que fazer. Deste modo, o design não precisa de oferecer qualquer linha ou guarda-trilhos para nos encaminhar, é a pura exploração que nos leva a conhecer, a adentrar e assim a progredir.
Mas isto não acontece apenas despejando muitos eventos no mundo, existe um elemento central que é o facto de tudo aquilo que fazemos no mundo — eliminar líderes, eliminar acampamentos, salvar pessoas, libertar pessoas, caçar, pescar, encontrar áreas, etc. — ser contabilizado por meio de um sistema interno que não só dá conta do nosso ganho de respeito no terreno, mas acima de tudo eleva o poder da resistência com quem temos de lidar contra o culto, e é essa métrica que vai desvelando as missões de história gerais. Isto cria uma simbiose completa entre o que fazemos e a história, ao mesmo tempo que permite ao design determinar quando cada missão é despoletada, tornando-as muito mais espontâneas e simultaneamente coerentes com o todo.
Podemos dizer que o "Far Cry 5" faz tudo aquilo que "Red Dead Redemption 2" (2018) não soube fazer, que é tornar consequente na história principal todas as nossas ações no mundo aberto. Comparativamente, RDR2 e FC5 aproximam-se em liberdade e exploração, mas tudo o que fazemos no mundo de RDR2 fora das missões tem impacto zero na história, o que torna o design bastante esquisofrénico. FC5 resolve a relação, entre a emergência resultante do improviso do jogador e as histórias previamente escritas, de uma forma brilhante.
Mais, FC5 consegue fazer isto sem usar métricas de RPG nem qualquer tipo de grinding. Temos sempre missões para fazer, tempos sempre atividade que é válida em termos narrativos, e que não está ali apenas para subir os XP escondidos. Claro que isto é conseguido por causa das 3 grandes regiões. No final das mesmas podemos sentir que são todas muito parecidas, mas na verdade são todas extremamente particulares, a ponto de nunca nos cansarmos, e menos ainda de sentirmos qualquer repetição entre missões e missões laterais, ou mesmos assaltos aos acampamentos do culto. Isto deve-se mais uma vez ao brilho do design das áreas, das estruturas, dos sistemas e claro da IA.
Porque tudo em FC5 está ao serviço do jogador. Não se trata de realizar puzzles visuais, de espaço ou movimento, mas antes de usar a capacidade de improviso, pura criatividade na abordagem a cada área. Isto é fortemente incrementado por dois elementos geniais: as Perks e os Rosters. As perks operam na elevação das nossas competências, à lá RPG. Os rosters, seguindo também o conceito das equipas RPG, mas de uma forma muito mais interessantes, já que podemos escolher os companheiros para cada ataque de uma forma muito livre, e combinar os mesmos, apenas por meio de 2 ou 3 competências.
A liberdade é a chave. Não apenas a liberdade de nos movermos por todo o terreno, mas acima de tudo a liberdade de abordar cada problema. É algo que assim que entramos noutro jogo sentimos de imediato a falta, como senti logo a seguir ao entrar em "The Medium" (2021), que trabalha num extremo oposto, limitando a liberdade de movimento do personagem, da câmara e do mapa, permitindo apenas uma única solução para cada puzzle. Somos colocados dentro do jogo, mas não podemos usar a nossa cabeça, as nossas competências, a nossa criatividade para resolver os problemas. Somo limitados a seguir uma linha de ação previamente desenhada pelos criadores, sentindo que nada realizamos, sendo forçados ao mero descobrir do que querem os designers que façamos para se poder progredir. Em FC5 os designers como que se colocam a margem, ou no fundo do quadro, dando liberdade máxima à criatividade do jogador, e é isto que torna a experiência tão intensa, porque imensamente personalizada.
Dou-me agora conta do facto de 2018 ter sido um grande ano para os videojogos, como este "Far Cry 5" a juntar-se a uma galeria de excelência.
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