julho 03, 2022

A vida de Montaigne, segundo Bakewell

Adoro Montaigne, mas soube-me a pouco o livro de Sarah Bakewell, "How to Live, or a life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer" (2010) de quem tinha adorado "At the Existentialist Cafe: Freedom, Being, and Apricot Cocktails" (2016), talvez porque sabia menos sobre Sartre, Beauvoir e Heidegger. Já me tinha acontecido com o livro de Stefan Zweig, "Montaigne" (1942), sobre o qual disse "não se pode chamar a um texto que aglutina um conjunto solto de ideias sobre alguém uma biografia". E agora com Bakewell, voltei a sentir um pouco disto mesmo. Contudo, refletindo, talvez o problema não esteja nos biógrafos, nem tão pouco no biografado, mas na obra principal deste. O brilho dos "Ensaios" (1580) está no modo como nos dá acesso ao modo de ver do próprio Montaigne. Lendo os Ensaios conseguimos em vários momentos calçar as suas botas e viajar pelo seu mundo. Uma viagem que segue pelo meio dos seus pensamentos, sem inícios nem fins, já que é de um modo associativo que cada ensaio se vai desenvolvendo e nos oferecendo acessos ao seu mundo interior e ao passado. Tentar transformar este mundo rizomaticamente livre num encadeado fixo de momentos temporais parece estar destinado à decepção.

julho 02, 2022

“Ethos” (2020), a jóia turca do Netflix

“Ethos” (2020) é uma série dramática turca e uma das jóias escondidas do Netflix. Partindo da telenovela turca faz o caminho inverso da nossa “Pôr do Sol” (2021), optando por usar os tropos não para gozo, mas para os maximizar em qualidade técnica e estética. No final, temos cinema sublime, com a câmara a contar a história e não as bocas dos atores, algo pouco visto em séries, mas não só, toda a composição visual dos cenários e guarda-roupa junto com atores de excelência deslumbrando-nos cena atrás de cena. A estrutura narrativa é também um prazer tremendo, seguindo uma lógica em rede (tipo “Magnólia” (1999)) muito bem desenhada capaz de nos surpreender e recompensar ao longo dos 8 episódios. Mas o que mais me marcou foi sem dúvida o tema do choque de classes e de valores, os cidadãos turcos seculares versus os cidadãos agarrados aos costumes da religião, e o modo como as crenças e os preconceitos corroem a identidade das mulheres, mas não só elas, e tudo com muito Jung à mistura.

junho 26, 2022

Despedida Boémia

"Adieu Bohème" é uma curta com uma premissa brilhante, ainda que não inteiramente nova, mas que se torna especial pelo modo como foi criada: uma performance ao vivo, gravada e transmitida em direto na web, com a banda sonora a ser criada noutro estúdio também em direto. A espontaneidade com algum humor no tratamento de uma questão íntima aparentemente insanável do exterior — o fim de uma relação — acaba por nos tocar e obrigar a pensar sobre o que somos e do que somos feitos neste nosso mundo feito de imagens.

"Adieu Bohème" (2017) de Jeanne Frenkel & Cosme Castro, Opéra National de Paris

junho 25, 2022

"Jerusalém", edição atualizada (2021)

Quis ler “Jerusalém” (2011/2021) de Simon Sebag Montefiore para tentar compreender um pouco melhor um fascínio que desconheço. Queria perceber como é que uma cidade que não contribuiu com qualquer ideia para o avanço da humanidade conseguiu manter-se sempre presente nas agendas do mundo ao longo de mais de 3 mil anos. A leitura, apesar de muito boa, deixou-me ainda mais perplexo. Montefiore faz um trabalho brilhante de inclusão que se sintetiza numa frase: "Naquele momento, o conceito de santidade no mundo judaico-cristão-islâmico encontrou o seu lar eterno". E assim podemos perceber que todo o fascínio da humanidade por esta cidade assenta numa fábula de Origem. A eterna indagação interior, “quem somos e de onde vimos?”, fez rumar ali, ao longo de milhares de anos, das mais altas personalidades de todas as três grandes religiões — reis, imperadores, califas, imãs, rabinos, papas. Muitos levaram consigo os seus exércitos, tendo Jerusalém sido sitiada, atacada e capturada dezenas e dezenas de vezes, incluindo duas vezes em que foi completamente arrasada, não restando pedra sobre pedra. Jerusalém nunca foi além do punhado de pedras num deserto, mas a sua resiliência demonstra o poder humano do contar de histórias.

junho 20, 2022

"Kalifat" (2020) apresenta a radicalização jovem

"Kalifat" (2020) é uma série Netflix sueca de ficção sobre o Estado Islâmico, ou Daesh, em particular sobre o modo como as redes de radicalização atuam na Europa, conseguindo atrair e convencer jovens, entre os 13 e os 17 anos, a embarcar para a Síria. A série foi criada por jornalistas com base em fontes escritas variadas, mas completamente revista por especialistas em terrorismo. O resultado é uma obra de grande intensidade dramática, pelo modo como expõe as pressões e jogos mentais a que as pessoas podem ser sujeitas e como tal afeta não só as suas competências racionais, mas em particular as relações familiares e parentais. É não menos impressionante o contraste entre a sociedade sueca e a do estado islâmico, e como tudo aquilo que parece impossível se pode tornar na única coisa que importa, tudo em nome de um ideal de fantasia.

junho 19, 2022

"Uma Estranheza em Mim" (2016)

"Uma Estranheza em Mim" (2016) precisa de ser lido lentamente para se entrar no mundo doce-melancólico criado por Pamuk e sorver tudo o que a sua escrita nos oferece. A Istambul pobre da segunda metade do século XX não parece muito diferente do Portugal pobre da primeira metade desse século, por isso é muito fácil relacionar com a galeria de personagens apresentada, os seus medos, ânsias e indefinições. Apesar da pobreza, a Istambul desse tempo apresenta-se como o El Dorado dos turcos do interior, acabando a converter a sua população de 3 milhões nos anos 1970 em 13 milhões em 2012. 

junho 17, 2022

"Dot's Home", videojogo sobre problemas sociais

"Dot's Home" (2021) é um belíssimo videojogo narrativo, criado por uma equipa de criativos multimédia em conjunto com uma ONG focada na resolução de problemas sociais, nomeadamente de habitação e discriminação racial nos EUA. O jogo foi criado no âmbito de uma campanha transmedia, a Rise-Home Stories, que produziu para além deste jogo, mais quatro artefactos digitais narrativos: "Alejandria Fights Back!",  um livro para crianças, "But Next Time" um podcast, "MINE", uma web série animada e "Steal-Estate", uma experiência online interativa. O jogo foi apresentado no final de 2021 e está agora disponível gratuitamente na App Store, Google Play e Steam.

junho 10, 2022

O Cérebro em Busca de Si Mesmo (2022)

O livro "The Brain in Search of Itself" (2022) presta uma necessária homenagem a uma importante figura da ciência do início do século passado, o espanhol Santiago Ramón Y Cajal (1852-1934), responsável pela descoberta da célula base do nosso cérebro, o neurónio. Considerado um dos pais da disciplina das neurociências, foi agraciado com o Nobel em 1906, com o que contribuiu para uma revolução no reconhecimento das ciências espanholas. Ao longo das curtas 450 páginas, Benjamin Ehrlich dá-nos a conhecer não apenas a vida de Cajal, o seu amor pela ciência e arte, mas também a vida em Espanha — de Zaragoza a Madrid, passando por Valencia e Barcelona — no fim do século XIX e início do século XX, assim como as principais teorias que conduziram à descoberta da fisiologia do nosso sistema nervoso. 

O Que Mais Teme na Vida? 'Que eu não seja quem deveria ser'

São 5 minutos magníficos. A realizadora de documentários polaca, Bartlomiej Zmuda, questiona de forma direta e sincera um conjunto de cidadãos de Varsóvia sobre o maior medo das suas vidas, no pequeno filme "What Do You Fear the Most?" (2022). Vemos apenas os momentos honestos e sentidos das respostas de cada. A intensidade emocional das suas palavras cola-se ao registo vídeo. No final, as respostas tão profundamente humanas permitem-nos relacionar com quase todos os medos, e levar-nos não apenas a sentir o quão parecidos todos somos, mas também quão frágeis acabamos por ser no meio das nossas diferenças e capas de coragem que vamos montando ao longo das nossas vidas.