novembro 14, 2020

Livro: "Solaris"

"Solaris" Stanislaw Lem foi publicado em polaco em 1961, traduzido para inglês em 1970, e transformado em filme de culto russo, em 1972, por Andrei Tarkovsky. Nos últimos 25 anos vi o filme, pelo menos, uma dezena de vezes, e de cada vez fui compreendendo mais e melhor o mundo-história que nos era apresentado. Ajudou, pelo meio, a leitura de "Cosmos" (1980) de Carl Sagan, assim como múltiplas outras leituras de não-ficção e ficção-científica, assim como o meu próprio amadurecimento. Em 2002 saiu a versão de Soderbergh que pouco acrescentava, apesar de apresentar um discurso mais direto porque menos poético. O meu amor pelo cinema, e enorme respeito por Tarkovsky, fez com que tivesse sempre considerado a sua obra insuperável. Sempre que pegava no texto de Lem, as primeiras páginas faziam-me sentir que a simples especulação escrita nada podia face à mestria poética cinematográfica. Terminada a leitura, continuo a reconhecer a mestria artística de Tarkovsky, mas percebi que o visionarismo pertence todo a Lem.

Capa da primeira edição inglesa

A leitura do texto fez-me sentir que Tarkovsky tinha escondido excessivamente o âmago do universo de Lem no interior do seu filme. Ele está lá, e basta ver o curto videodoc  "Auteur in Space" (2015) de Kogonada para reavivar memórias e ligações, mas requer muito trabalho e persistência por parte do espectador, assim como bastante contexto. Ao terminar o livro, senti que Lem se tinha dado a nós, que mais do que um romance, tinha feito uma grandiosa obra especulativa, ou se preferirmos uma obra de "não-ficção futurista". Lem acusou Tarkovsky de se focar apenas nas relações humanas, o que é incorreto. Tarkovsky fá-lo tanto como Lem. O cerne de Solaris pode ser visto a partir da perspectiva preferida de Lem, a incomunicação com o não-humano, mas essa abordagem é construída com base em processos de espelho da noção de existência do humano, ou seja, das memórias, e isso é central tanto em Tarkovsky como em Lem.

Imagem central do filme homónimo de Andrei Tarkovsky com a russa Natalya Bondarchuk (Rhea) e o lituano Donatas Banionis (Kris)

A escrita surpreendeu-me, para uma obra de género, escrita sob um regime de opressão política como a URSS, e com cerca de 60 anos, é muito boa. Não existem artifícios de estrutura, nem inovações formais, a história serve apenas o relato, mas a escrita juntamente com a ciência eleva todo o discurso a ponto de nos colocar num elevado estado reflexivo. Se Tarkovsky consegue elevar a experiência por meio da poesia audiovisual, Lem fá-lo por meio da perfuração direta de conceitos sobre a condição humana.

novembro 12, 2020

O problema dos três-corpos

Finalmente li "The Three-Body Problem" do chinês Liu Cixin. Quando saiu em inglês, no final de 2014 e ganhou o Hugo 2015, despertou-me uma curiosidade imensa, por vir classificado como Hard SF e de uma geografia culturalmente distante, a China. A somar a tudo isto o título fazia-me pensar constantemente no "problema mente-corpo" — à data desconhecia o "problema dos três corpos" — despertando a ideia de que estaria perante uma obra de grande fulgor filosófico. Terminada a leitura, muitas das minhas expectativas saíram goradas, criando um sabor amargo na experiência. Confesso que não ajudou ter criado tantas expectativas, mas também não ajudou tanto cliché narrativo decalcado da tradicional FC americana. Faltou-me exoticismo cultural, mas acima de tudo faltou-me elevação discursiva. Sim, muitos conceitos debatidos — a variação e constância da dinâmica — são brilhantemente expostos, ainda que de algum modo com excesso de redundância, mas quando se entra pelos mundos Nano e Pico adentro, pelas cordas e não-dimensionalidade, é tudo demasiado superficial, serve apenas a complexificação da trama que acaba por terminar numa espécie de banal romance policial.

Compreendo o entusiasmo na receção à obra, dada a geografia e o sucesso do autor no seu país. Confesso também que Cixin apesar de ter uma escrita regular, sabe gerir muito bem o suspense e despertar a curiosidade fazendo com que viremos páginas atrás de páginas. Sim, a escrita socorre-se excessivamente de exposição falhando na dramatização (o chamado tell-show), mas isso não perturba a leitura uma vez que o autor coze muito bem a informação e nos mantém sempre engajados até ao final. 

Assim, se gostei imenso do ambiente inicial assente na história da Revolução Cultural chinesa, ou ainda do videojogo RV, que Cixin usa fundamentalmente para a exposição de conceitos, desgostei imenso toda a trama muito básica de vinganças, ataques, invasões, insectos, etc. Desgostei, como não poderia deixar de ser, seguir atrás de personagens que olham para o desconhecido com o único desejo de se vingarem naqueles que os maltrataram. De personagens, que se colocam no extremismo oposto à Revolução, e se assumem acima do comum humano por via do mero intelecto, algo que pode fazer sentido na rebeldia dos 16/17 anos. Mais, considero que Cixin passou a linha vermelha ao colocar a protagonista no lugar de assassina, ignorando a moralidade de tal conduta.

novembro 01, 2020

Cinema: Genocídio da Ucrânia 1932-33

Acabei de ver "Mr. Jones" (2019), no TV Cine, e nem acredito que o filme saiu com este título, mas pior ainda que passou quase despercebido. O filme relata a descoberta internacional do Genocídio da Ucrânia nos anos 1932-33 provocada por Estaline, por um jornalista inglês, Gareth Jones. Depois de publicar, em Inglaterra, o que tinha visto na sua passagem clandestina pela Ucrânia, Gareth Jones viu-se alvo de uma campanha de difamação, chegando a ser desdito em plena primeira página do New York Times por um jornalista ganhador do Pulitzer e correspondente em Moscovo. Jones não recuou, conseguiu fazer-se ouvir e dar voz a milhões de mortos na Ucrânia, mas acabaria por pagar com a vida alguns anos mais tarde, às mãos da polícia secreta da URSS. O filme de Agnieszka Holland é duro, mas consegue colocar-nos dentro do mundo relatado, levando-nos a sentir a dor da revolta.
O filme impactou-me bastante porque desconhecia esta passagem da história da Ucrânia e o jornalista Gareth Jones. Os criadores aproveitaram para juntar Gareth Jones num almoço, alegadamente ficcional, com George Orwell, mas ainda assim sustentado pelas palavras do próprio Orwell que diz ter baseado a escrita de "A Quinta dos Animais" (1945) em Estaline e na URSS. Ao longo do filme, vamos ouvindo Orwell recitando a escrita do livro, podendo ligar a alegoria por ele criada à descoberta de Jones.

Recomendo totalmente o visionamento.

outubro 28, 2020

Da Loucura à Psicologia

 “Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of Reason” é a tradução inglesa do primeiro livro de Michel Foucault, uma tese publicada no meio académico como “Folie et déraison: Histoire de la folie à l’âge Classique” (1961), revista em 1972 e publicada como “Histoire de la folie à l’âge Classique”, mas que teve na sua génese um primeiro trabalho de Foucault “Maladie mentale et personnalité” (1954), quase desaparecido, mas republicado novamente em 1962 como “Maladie mentale et psychologie”. Esta obra origina nos anos iniciais de Foucault, início dos anos 1950, em que dava aulas de psicologia na Universidade de Lille, e simultaneamente realizava pesquisa no hospital psiquiátrico, de Sainte-Anne em Paris, focado na relação médico-paciente. O livro de 1954 acaba surgindo como um conjunto inicial de escritos sobre conceitos e definições, sem grande método, uma espécie de tese de mestrado, tanto que Foucault procurou que não fosse republicado. A versão, de 1961, designado como “Folie et déraison”, resultado da sua tese de doutoramento, é aquele que é traduzido como “Madness and Civilization”, e marca o primeiro livro do autor.

Em “Madness and Civilization” Foucault inicia a criação da sua abordagem metodológica ao conhecimento, por via da fusão histórico-sociológica. Assim, ao longo deste livro Foucault debruça-se sobre o desenvolvimento da loucura e do lugar do louco na sociedade europeia desde a idade média, no século XIII até ao século XIX. Para o efeito divide 6 séculos em 4 grandes vagas que traça em função das relações conceptuais atribuídas à loucura. 

"Navios dos Loucos" (1516) de Hieronymus Bosch é um recorte da aba esquerda do Tríptico do Vagabundo, e pode ser visto no Museu do Louvre.

Assim temos uma primeira, de afastamento e desterro, com as pessoas que sofriam de doença mental a serem retiradas de circulação por via dos chamados “Stultifera Navis” (navios de loucos); uma segunda de proximidade com a doença, a lepra, em que os lugares que serviram o distanciamento dos doentes contagiosos, finda a peste passariam a ser utilizados para receber os loucos, adicionando o estigma do contágio; numa terceira fase, as casas de acolhimento hospital passam a receber não só os loucos mas também criminosos, como indesejados pelas famílias ricas, entre outros, acrescentando o estigma da criminalidade; e uma última de relação com a inutilidade, porque após a terceira fase, os criminosos eram colocados a trabalhar nas cidades gerando rendimento, mas os loucos, por não se conseguirem adequar à realização de tarefas, não geravam rendimentos e por isso eram atirados para colabouços sem quaisquer condições. Só a partir do século XVIII, diz Foucault, é que finalmente se começa a reconhecer a loucura e a depressão como doenças, e se encetam um conjunto de reformas por forma a começar a tratar as pessoas enquanto doentes, e não como estorvo ou alheio à sociedade.

"Casa de Loucos" (1819) de Francisco de Goya

Traçada esta evolução, para Foucault resulta claro que é a necessidade de começar a compreender a doença mental que vai permitir ou exigir o surgimento da psiquiatria e da psicologia.

Apesar de ser um livro excecional, considero-o menos conseguido que "Vigiar e Punir" (1975), o que não surpreende, já que distam quase 15 anos um do outro. Foucault evoluiu e aprimorou o seu modo de trabalhar, e constrói leituras bastante mais instigantes a partir dos quadros históricos que vai apresentando. Ainda assim, este é um livro seminal para quem quer que se interesse pela psicologia, ou pela doença mental.

outubro 25, 2020

As origens dos Rougon-Macquart

“La Fortune des Rougon” (1871) é um livro menos conhecido de Zola, no entanto é um livro de grande importância para o conhecimento da sua obra, por se tratar do livro que inicia a sua série “Rougon-Macquart” (1871-1893). Esta série é ela mesma o seu maior legado, não apenas pelas 20 obras que a perfazem, mas pela planificação, dedicação e intenção votada à mesma. Zola, muito impressionado com “A Comédia Humana” de Balzac (92 livros, escritos entre 1830 e 1856), decidiu avançar para algo próximo, ainda que menos ambicioso, mais focado, deixando a sociedade como um todo para se focar na família, como ele diria “menos social e mais científico”:

“Je veux expliquer comment une famille, un petit groupe d’êtres, se comporte dans une société, en s’épanouissant pour donner naissance à dix, à vingt individus, qui paraissent, au premier coup d’œil, profondément dissemblables, mais que l’analyse montre intimement liés les uns aux autres. L’hérédité a ses lois, comme la pesanteur.” Émile Zola, Préface, “La fortune des Rougon”, 1871

Tendo em conta este enquadramento percebe-se a relevância maior de “La Fortune des Rougon” que como diria J.K. Huysmans, poucos anos depois do lançamento, em 1877, que “deveria ter como verdadeiro título, as Origens”. É nesta obra que conhecemos Adelaide Fouque a progenitora de toda a árvore genealógica dos Rougon-Macquart, algo que é per se um facto de grande peso, já que nos faz sentir e compreender não apenas a família que vamos acompanhar ao longo de décadas, mas como funciona em essência a espécie humana, a sua arborescência natural e progressiva florescência. 

A árvore genealógica dos Rougon-Macquart criada por Zola na planificação da sua obra (versão de 1878)

Existe algo na questão familiar que nos fascina intrinsecamente, o compreender como surgem os seres-humanos, assim como o compreender como estamos todos interligados, apesar de toda a nossa aparente individualidade. Nascemos como bonecas russas, uns dos outros, brotamos como frutos que por sua vez dão origem a novos frutos, que seguem em ciclos, de morte e nascimento, em que a vida dá lugar à morte, mas a morte é apenas o fim de uma etapa, não do todo. A família surge de uma pessoa apenas que se une a outra a partir do que se originam dezenas, centenas, milhares, milhões de outras vidas, tornando impossível o fim, tornando possível o infinito dos legados de cada um de nós. É todo um processo de aparente naturalidade, mas deveras impressionante, pela complexidade de cada nova vida que surge a partir de algo tão insignificante como a união de duas microscópicas células. Zola não fala desta biologia, foca-se na interação humana, nas relações, intenções, motivações e desgostos e como trespassam os humanos nas suas encadeações familiares, o que inevitavelmente nos leva a questionar não apenas a família Rougon-Macquart, mas a imagem natural de qualquer família.

Quanto à escrita e forma, sendo boas, têm alguns momentos menos conseguidos, com excessivo estender de algumas cenas ou falhas na ilustração de algumas ações, mas talvez o pior seja mesmo o excesso de exposição em detrimento da ação dramática. Zola sente-se a contar o início de uma história, e conta descrevendo, esquecendo muitas vezes de mostrar o que se passou, fazendo com que por vezes conte a penas a informação que está a ser debitada para nosso registo. Ainda assim, provavelmente pela relevância dessa informação para o resto dos livros que pensamos querer ler, mantém-nos sempre interessados, progredindo atrás de cada um dos filhos de Adelaide e seus netos.

Sobre a continuidade da leitura, fiquei em dúvida. Este foi o meu terceiro Zola, depois do magnífico “Germinal” (1885) (que é o 13º volume dos Rougon-Mcquart), e do interessante “Thérèse Raquin” (1867) (o seu terceiro livro e primeiro sucesso literário), e aproximou-se mais de Thérèse do que de Germinal, o que não me dá suficiente força para ir a correr ler os restantes volumes. Contudo, e tendo em conta a facilidade com que se podem ler os livros em qualquer ordem, penso ler mais alguns dos volumes, ao longo dos próximos tempos, nomeadamente “L'Assommoir” e “Nana” e ver como corre, talvez ainda também “L'Œuvre” e “La Bête humaine”. É certo que este livro me deixou com vontade de ler o último, por ser dedicado ao filho mais íntegrou dos Rougon, “Le Docteur Pascal”, mas esse terá de esperar. 

Para quem quiser entrar na aventura, deixo a recomendação de um sítio "Le Compagnon des Rougon-Macquart", onde poderão encontrar muitíssima informação sobre a série, não só críticas e resenhas à data de saída de cada livro, mas também considerações, esboços e planos de Zola para a escrita e construção da saga. 

A Editora Civilização lançou em Portugal, nos anos 1980, todos os 20 livros encadernados em 10 volumes de luxo. Existem múltiplas edições das encadernações, eu comprei até agora 4 volumes, pertencentes a 3 séries diferentes, ainda que o conteúdo interno seja igual entre todas as edições.

Sobre as edições e traduções, comprei alguns volumes da coleção completa em 10 volumes da Editora Civilização, mas fiquei um tanto mal impressionado com algumas partes da tradução, de modo que li apenas um terço nessa, acabando de ler o livro no original. O francês de Zola não é fácil, nomeadamente pelos tempos verbais usados, mas ainda assim pareceu-me acessível. A Biblioteca Eletrónica do Quebec disponibiliza os 20 volumes em francês gratuitamente.

outubro 18, 2020

A Fantasia da Terra Fraturada

O último volume da trilogia Terra Fraturada — The Stone Sky (2017) — é um trabalho soberbo, na continuação dos volumes anteriores, com direito a uma ampliação da história que vai muito além do esperado, com um ritmo de leitura imparável até ao final. Contudo, se até 2/3 segui Jemisin, e adorei todo o novo enquadramento proposto, perdeu-me no último terço, quando desistiu da ciência para simplesmente abraçar a fantasia. Acabou seguindo, para mim, o caminho mais fácil, fazendo com que o universo que vinha construindo até ali, sempre na fina linha entre ciência e fantasia, se perdesse de vez. Ou seja, continua sendo um grande livro no domínio da FC & Fantasia, mas acabou por se fechar no género, ao contrário do que tinha acontecido antes, especialmente com o primeiro livro.

A questão da fantasia é tanto mais frustrante quanto percebemos que Jemisin sustenta, do ponto de vista da ciência, quase 80% de tudo aquilo que montou enquanto mundo-história. Sinceramente não percebi a necessidade de extravasar, de dar consciência ao planeta, de introduzir decisões morais em eventos produzidos por aquilo que seriam forças magnéticas entre a Terra e a Lua. Até ao último terço, teria sido possível sustentar praticamente tudo, mesmo a ideia da "magia" que Jemisin coloca sempre em itálico, poderia ser uma espécie de "fluxo de vida", como algo próximo de "energia". Mas não, no final parece que abandonamos o mundo da Terra Fraturada para abraçar o mundo dos super-heróis, a génese dos seus poderes, as intrigas e as missões ocultas de sabotagem, etc. 

Do mesmo modo, o surgimento da raça Niess, uma espécie de novos judeus perseguidos, depois redimidos por via da criação genética dos tuners é não só excessivo, mas desnecessário. Já tínhamos os Roga, com a orogenia e a ferrugem, para quê adicionar mais uma raça de oprimidos? Não existe suporte para tal, não se percebe o sentido, e depois acaba meramente a servir de justificativo moral, bons e maus, para a fantasia do “Pai Terra”, algo que sempre esperei vir a ser explicado como mero mito.

O final de "Raised by Wolves" não só abandona a ciência, como entra pelo mundo do bizarro adentro sem nunca olhar para trás.

A minha experiência de leitura assemelhou-se bastante ao que aconteceu com a recente série de Ridley Scott, "Raised by Wolves" (2020). Se adorei experienciar, ser levado na desvelação de cada nova camada de ideias e conceitos, dedicando-me a descodificar e a significar cada elemento, à medida que o significado derradeiro do mundo se ia evidenciando o meu entusiasmo ia esmorecendo, com o espanto a dar lugar a ausência de reação...

Apesar desta minha deceção, a trilogia só dificilmente não se tornará um clássico da FC, ganhar 3 prémios Hugo seguidos não está ao alcance de qualquer um. NK Jemisin é uma autora imensamente talentosa, e alguém que precisamos de continuar a seguir. Deixo o seu discurso realizado na entrega do terceiro Hugo:



Trilogia Terra Fraturada 
Análise do Volume I, 1 julho 2020 
Análise do Volume II, 26 julho 2020

outubro 12, 2020

Intelligence Trap (2019)

O livro, The Intelligence Trap: Why smart people do stupid things and how to make wiser decisions, apresenta-se com um título e premissa muito instigantes, mais ainda em tempo de: grande polarização dos discursos na sociedade; perda de influência das figuras de especialistas e autoridades; assim como desintegração das metanarrativas que orientavam a sociedade para grandes objetivos. Contudo, não deixa simultaneamente de se apresentar como uma premissa popular, que se socorre de ideias genéricas e crenças assentes na mera anedota, com parca evidência científica. Se estranhamos, chegando mesmo a perturbar-nos, ver alguém que temos como inteligente ser levado ao engano por eventos ou situações simples, até patetas, daí não devemos desde logo intuir a regra, mas talvez antes manter a porta aberta à exceção. Mas vejamos o que nos diz Robson.

David Robson é um jornalista de ciência que tem trabalhado para alguns média de relevo, tais como BBC, New Scientist ou The Atlantic. Este seu livro, diz-nos, foi feito a partir de um conjunto de entrevistas realizadas com especialistas ao longo de 3 anos. A ideia de Robson era perceber porque pessoas inteligentes e educadas cometem grandes erros, tendo servido como mote: a história do Professor de Física que foi burlado num esquema de mulheres atraentes e correios de droga (história completa no NYT).

Para suportar a sua abordagem, começa com um dos ataques mais populares do último meio-século, o Coeficiente de Inteligência (IQ). Não sendo defensor desta métrica, não o sou porque não sou defensor de métricas, e não porque não creio na sua base teórica. Ou seja, algumas pessoas nascem com maiores privilégios cognitivos que outros. Isto não tem nada de anormal, menos ainda mágico. Para compreender porquê, basta uma comparação com algo mais imediato e mais popular ainda, a beleza humana. Por mais que instituamos a beleza como subjetiva, todos temos noção da enorme diferença que existe entre todos nós, e dos padrões com maior e menor poder de atração. Podíamos falar dos corpos com maior massa muscular, ou maior endurance física, etc. etc. Sendo diferentes, também o somos no que toca às capacidades de raciocínio. A grande questão é saber se os testes que fazemos aferem realmente melhores capacidades ou não. Mas isso, na verdade, como com todas as métricas, é pouco relevante, já que qualquer métrica é mero indicador e não uma variável que determina o futuro ou a pessoa.

Robson vai buscar vários casos para desmontar o poder do IQ, dando como referências pessoas que se perderam completamente na vida, que não chegaram a lado algum, apesar de apresentarem valores absurdamente altos de IQ. Contudo a minha questão é antes, como é que se pode pensar que um simples teste feito em criança ou adolescência pode determinar a vida de alguém, sabendo que as variáveis que nos condicionam vão muito para além da nossa capacidade de raciocínio? É no mínimo ingénuo.

No meio disto, Robson vai buscar os estereótipos dos cientistas incapazes de lidar com as necessidades sociais do dia-a-dia, para não apenas demonstrar como um simples teste de raciocínio é insuficiente para dar conta das necessidades da vida no mundo real, mas mais do que isso, para demonstrar que um alto IQ pode antes, pelo contrário, ser um problema na resolução de problemas. Sendo verdade, que o IQ não afere tantas outras necessidades da vida do quotidiano, nenhum teste, seja qual for, vai algum dia aferir tal, já que somos agentes de uma realidade em constante mutação. Esta ideia de que poderemos encontrar um indicador que nos pode dizer que esta ou aquela criança será um génio no futuro é digna de alquimistas, não cientistas.

Robson percebe as limitações do IQ, e por isso apresenta um conjunto de teorizações, relevantes e que tornam a leitura do livro per se mais interessante, ainda que nada apresente de novo. Dá conta, da já gasta teoria do EQ (Coeficiente Emocional) do Daniel Goleman; da teoria muito em voga do Grit (resilência) de Angela Duckworth (ver o efeito na avaliação académica por Paul Tough); e por fim acaba a fixar-se naquilo que tem sido o cerne dos livros populares sobre cognição, os vieses cognitivos de Tversky and Kahnemann. 

Daqui parte para a apresentação daquilo que vem sendo apresentado como bala mágica para todos os problemas cognitivos, ‘evidence-based wisdom’ (EBW), mas que do meu ponto de vista, vai pouco além daquilo que Kahnemann apresentou como teoria de processo duplo (rápido e lento, ao que Robson adiciona um conjunto de ideias repescadas da história da ciência, desde Sócrates até aos dias de hoje. A ponto de eu começar a suspeitar que o livro não é um ataque ao IQ, mas antes a sua defesa, no sentido em que tudo para Robson se resume à mente analítica, tudo o resto, nomeadamente a emoção, apesar de citar Damásio, é secundário. (Nota: enquanto lia o livro, vi a TED de Liv Boeree, “3 lessons on decision-making from a poker champion”, como especialista em poker, não em cognição, parece dizer o mesmo que Robson, como se continuássemos a andar em círculos no conhecimento sobre a cognição).

Diga-se que este desvio no texto, surge a partir de algo que vejo como uma contaminação do pensamento de Robson por parte das teorias sobre a emoção de Lisa Feldman-Barrett que defendem a emoção como algo meramente cultural, algo que podemos aprender a ignorar, porque não faz parte daquilo que somos. É interessante como Feldman-Barrett tem sido refutada por boa parte dos grandes cientistas da emoção, no entanto tem conseguido fazer toda a sua carreira com esta abordagem, cientificamente contra-corrente, mas imensamente popular.

Por outro lado, e mais uma vez, impressiona como alguém vai buscar uma teorização sobre os diferentes perfis de personalidade e cognitivos, no caso a “Triarchic Theory of Intelligence” de Robert Sternberg, que dá conta da existência de três perfis na abordagem à inteligência humana “analytical, creative and practical”, em linha com o modelo do design de Engagement — "abstracters, tinkerers,  and dramatists" —, para depois jogar pela janela fora. Serve de ilustração, mas na verdade depois disso, segue-se como se todos os tipos de abordagens humanas à realidade fossem idênticas, ou pudessem ser medidas da mesma forma.

O livro não deixa de ter o seu valor, e de dizer muitas coisas acertadas, desde logo chamar a atenção para a necessidade da humildade científica, algo vital, mas que por vezes se esquece, tal como compreender que ser-se doutorado em algo, não dá o privilégio nem a capacidade para emitir opiniões sobre algo fora da sua área científica. Mas na verdade, quando falamos de algo, são os especialistas na área que devemos ouvir, e neste caso, ler a resenha do livro feita por Valerie Thompson para a Science permite-nos ir além na compreensão do que sabemos hoje realmente sobre IQ e processos de decisão:

“Anecdotes abound of individuals with a high IQ who have made substantial blunders, and Robson presents many captivating examples. But in terms of where the field stands, scientists are currently grappling with the question of whether IQ and decision-making can even be disentangled—rather than whether they are in opposition.” Thompson in Science, August, 2019

Como nota final, é um livro de divulgação científica, de leitura rápida e fluída, que apesar de alguns problemas abre caminhos para muitas abordagens distintas e permite rapidamente ficar a conhecer o que está em jogo na área, a partir do que qualquer um pode então iniciar o aprofundamento das questões.

outubro 08, 2020

Mantel e a criação de conhecimento pelo drama (Thomas Cromwell vol. 3, 2020)

A leitura deste terceiro volume — "O Espelho e a Luz" (2020) — foi um prazer imenso, tendo sentido a presença de Hilary Mantel sempre ali, no pé de cada página, como que construindo e abrindo caminho para o nosso deleite, com um texto dotado de imponente e virtuosa forma escrita, assim como de enorme detalhe histórico, garantindo a completa ressurreição de um passado esquecido. São três volumes, mas é um livro único, de 2000 páginas, que nos faz atravessar a vida de alguém que viveu como comum mortal no século XVI, conseguindo subir a pulso até ao topo do seu mundo, para terminar de forma brutal. A escrita, altamente elaborada, emana em si uma paixão enorme da autora por Thomas Cromwell, mas acima de tudo pelo trabalho que faz, corroborado pelas entrevistas que foi dando em que se percebe que viveu e respirou a obra durante todos estes anos. Termino a leitura da trilogia com grande admiração pela criadora, nomeadamente pelo engenho na construção criativa a partir de história deixada em meros relatos descritivos, esparsos e dispersos, assim como pelo investimento de 15 anos da sua vida na criação deste legado.

"Thomas Cromwell" (1534) por Hans Holbein e "Hilary Mantel" (2015) por Louise Weir

Em 2017 Mantel foi convidada pela BBC para criar um conjunto de lições, para as conceituadas Reith Lectures. O título escolhido por ela foi: "Resurrection: The Art And Craft", o que serve na perfeição para enquadrar o seu trabalho. Ao longo dessas cinco aulas, assim como das várias entrevistas, percebe-se que o objetivo de Mantel não é apenas escrever sobre um caso histórico, nem criar uma novela. Mantel objetiva mais alto, dizendo-se uma historiadora frustrada, acabou por tentar sê-lo na literatura, e de certa forma podemos dizer que o consegue. Esta trilogia, por ser novelizada, não pode ser vista como ato de historiar, no seu sentido académico, mas o trabalho e o resultado é de tal forma minucioso e colado à documentação histórica, que não se pode simplesmente ignorar. Isto é evidente na sua resposta à possibilidade de alterar factos históricos para intensificar o drama:

"I would never do that. I aim to make the fiction flexible so that it bends itself around the facts as we have them. Otherwise I don’t see the point. Nobody seems to understand that. Nobody seems to share my approach to historical fiction. I suppose if I have a maxim, it is that there isn’t any necessary conflict between good history and good drama. I know that history is not shapely, and I know the truth is often inconvenient and incoherent. It contains all sorts of superfluities. You could cut a much better shape if you were God, but as it is, I think the whole fascination and the skill is in working with those incoherencies." Mantel em entrevista na Paris Review, n. 212, Abril 2015

Por isso não admira a reação da academia britânica, nos anos recentes, com todo um revivalismo de livros e trabalhos à volta da pessoa de Thomas Cromwell, o que quer dizer que ela tocou em pontos chave do conhecimento histórico. No caso de Mantel, a historicidade serve apenas a verosimilhança, ela não está preocupada em ensinar como se passaram as coisas, ou definir com o máximo de certeza os elementos. Ela utiliza o conhecimento existente para de certo modo conseguir entrar pela história adentro e recuperar o sentir humano de quem viveu nesses tempos. A tal ideia de trazer de novo à vida as pessoas de um mundo anterior e dar-lhes voz. Mantel vê-se um pouco como uma "medium", um canal de ligação entre o passado, os seus fantasmas, e o mundo atual. 

"The contradictions and the awkwardness—that’s what gives historical fiction its value. Finding a shape, rather than imposing a shape. And ­allowing the reader to live with the ambiguities. Thomas Cromwell is the character with whom that’s most essential. He’s almost a case study in ­ambiguity. There’s the Cromwell in popular history and the one in academic history, and they don’t make any contact really. What I have managed to do is bring the two camps together, so now there’s a new crop of Cromwell biographies, and they will range from the popular to the very authoritative and academic." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

No fundo, podemos ver esta sua abordagem como um modo distinto de fazer História, por via da dramatização. Tal como na psicologia se usa o drama e o jogo de papéis para levar as pessoas a compreenderem-se melhor a si mesmas, julgo que a História pode usar da dramatização para conseguir chegar mais perto de quem fez o que é relatado nos registos. Porque os registos são na sua maioria listas, descrições, datas, quantidades, elementos soltos e dispersos. Claro que isso não é algo simples de fazer. Repare-se como ela descreve o processo:

"I was a bit surprised by my own process sometimes, because when you’re reading the historical record, I think you’re always looking for history in its purest form. You’re looking for inventories and lists, particularly lists of people’s possessions, and pages of account books, and the prices of things, because there’s no agenda behind those, so you can trust them in a sense.

And I suppose what surprised me quite early in the book was how those would come to life for me. What seems like just an item on a list, or the price of something in a column of figures, would spark off a whole train of thought." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

A académica, Mary Robertson, especialista em Thomas Cromwell, e a quem a trilogia é dedicada por Mantel, refere a sua admiração por esta forma concreta de ir além na produção de conhecimento:

“In some ways it takes a greater skill to work with everything that is known—and from that add your imagination to craft a convincing story—than it does just to make it up.” Mary Robertson no The Huntington, October 2012

Algo que não deixa de ser secundado pelo crítico do NYT, James Wood:

"If you want to know what novelistic intelligence is, you might compare a page or two of Hilary Mantel’s work with worthy historical fiction by contemporary writers such as Peter Ackroyd or Susan Sontag. They are intelligent, but they are not novelistically intelligent. They copy the motions but rarely inhabit the movement of vitality. Mantel knows what to select, how to make her scenes vivid, how to kindle her characters. She seems almost incapable of abstraction or fraudulence; she instinctively grabs for the reachably real." James Wood na New Yorker, Abril 2012

Eu sinto isto na leitura, mas sinto isto ainda mais nas várias entrevistas que fui lendo e vendo dela, no modo como o seu pensamento é ágil, rápido e incisivo. Numa entrevista, deste mesmo ano, pelo espanhol ABC podemos ler Mantel comparando o mundo de há 500 anos com o atual — reis e políticos, a peste e o COVID — e perceber como conhece bem o funcionamento das entrelinhas que regulam o poder e as sociedades. Num ponto, aprofunda a importância do romance histórico de forma muito arguta:

"Se abre una brecha entre lo que sabemos ahora y lo que los personajes sabían en su época. El historiador emplea la mirada retrospectiva, es la herramienta fundamental de su oficio, pero esa mirada puede hacer que sintamos, erróneamente, que somos mucho más listos que las personas que vivieron antes que nosotros. La novela histórica estimula la empatía, el ejercicio crucial de ponernos en el lugar de otro. Nos permite pensar sobre la responsabilidad individual, sobre cómo controlamos nuestra vida (o lo intentamos), sobre la causa y el efecto, sobre el destino, si es que existe tal cosa, y sobre qué consecuencias imprevistas pueden derivarse de nuestras acciones con el tiempo. Puede ser superficial o producir la ficción más profunda sin esfuerzo aparente." Mantel em entrevista ao ABC, Setembro 2020 

Ao terminar o livro, tive de respirar fundo, o adeus a Cromwell é de tal forma intenso e vivido, impossível de realizar por qualquer outro meio que não a literatura, que nos deixa ali estacados. Sim, o livro trata de política, do modo como o poder é manipulado pela retórica e pelo controlo sub-reptício dos atores envolvidos, mas o livro vai bastante além disso, dá-nos a sentir o modo como a vida humana trespassa tudo, como todos os nossos orgãos estão envolvidos. Não é mera cognição, na maior parte do tempo não se discute sequer o quê e o como concretos, mas apenas os sentires, os respirares. Daí que Mantel introduza imenso detalhe sobre roupa e têxteis, sobre cozinha e gastronomia, sobre o tempo e temperatura, sobre a decoração e as telas que se vão pintando. Mantel cria um mundo completo, e coloca os personagens dentro dele a "brincar", o que se passa além disso requer conhecimento histórico prévio nosso, ou pesquisa durante a leitura, mas nem sequer é vital. O foco não é saber quem era o Papa, ou o Imperador, ou Rei de França, mas é a vida tal como vivida naquele círculo restrito de personagens. Como alguns referiram, esta trilogia funciona como uma viagem ao passado, em que nos é dado a ver uma parte do que se passou, ou um espelho para esse passado como diz Mantel:

"But I’m interested in a way that as you go through your life, your memories change. It’s quite wrong to say that the past doesn’t change. It changes behind you, and every time you try to remember back, in a sense, you’re making a fresh version. What you’re doing is you’re holding up a mirror, and really, that’s why the book is called The Mirror and the Light, because it’s a mirror to the books that have gone before and it has fresh light." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

E talvez funcione tão bem porque Mantel manteve-se fiel a Cromwell toda a trilogia. O livro poderia ser uma grandiosa história recontada, com detalhes e perspetivas de múltiplas personagens, algo comum e que serve para nos oferecer uma análise menos enviesada, porque podemos comparar as diferentes perspetivas. Mantel não teve pudor em fixar-se detrás do olhar de um único personagem, e um personagem que os registos históricos tendem a mostrar como maquiavélico, logo muito pouco credível. Daí que tudo o que vamos vendo parece embater contra o que sabemos daqueles tempos, porque aquilo que estamos ali a viver (reviver) é pelos olhos de Cromwell. Ele pode ter sido o maior filho-da-mãe da história inglesa, mas na sua cabeça ele era um visionário e o maior benfeitor de sempre, e é com o isso que Mantel nos obriga a debater. Aliás, no primeiro livro deixei-me de tal forma seduzir que acreditei em tudo o que ele dizia, no segundo e terceiro livro, já ciente do que tinha na minha frente, comecei então a debater-me com o personagem, e tudo se torna ainda mais instigante. O que ele pensa, como os outros reagem a ele, de que o vão acusando, e como conseguimos nós interpretar tudo isso. Porque repare-se que nenhuma vez o narrador/autor, muito pouco presente, sai em defesa de Cromwell ou de qualquer outro, o trabalho aparece como se estivéssemos a assistir àquela realidade, mas pelos olhos dele, cabendo-nos identificar o que pode ser mais real ou menos real.

Diga-se que esta forma de contar histórias, apesar de estarmos diante de prosa, parece-se muito mais com o drama. Existe uma quase ausência de reflexão ou discussão por parte do narrador/autor e mesmo do próprio personagem através de quem vemos a realidade. Nós estamos dentro da cabeça de Cromwell, mas não vemos o mundo através dos seus pensamentos e reflexões, apenas o vemos através dos seus olhos. Ou seja, Mantel, ao contrário de Pessoa que nos atira para dentro do emaranhado de pensamentos de Bernardo Soares, coloca-nos imediatamente por detrás dos seus olhos. A narração descreve continuamente o momento presente, o que está a ser feito, a quem como e porquê. Vemos a ação a decorrer, como se Mantel estivesse a encenar o passado, e não a discorrer sobre ele. Mas nem por isso, ou talvez por isso, a escrita não deixa de ser altamente elaborada, e por conseguinte a leitura laboriosa no descortinar do que está a acontecer em cada momento. 

De certa forma, esta abordagem enviesada por um olhar e pelo modo presente contribuiu para a definição do estilo de Mantel e para criação de um engajamento continuo dos leitores, como ela explica:

"the writer knows the outcome, so does the reader - but the characters don’t. You have to persuade your readers to be in 2 places at once. They can’t suspend their knowledge of what happened – they’re above the characters, looking down on them. But at the same time, if you’ve done your job, they’re moving forward with the characters, inhabiting their world. The suspense grows in the gap; the reader wants to know not so much what happens, as how the characters will react when it happens. The reader has to hold his or her own knowledge in suspension – hold reaction back. That’s what creates tension. You see them rushing towards their fate – you know, you fear for them, but you can’t stop them." Mantel entrevistada pelo Iowa Review, Junho 2017

É por isso que apesar da história de Inglaterra me dizer pouco ou nada, menos ainda um tempo dessa que se tornou popular por intrigas do foro privado da vida de reis e rainhas, li até ao final e com tanto prazer. Não me interessava em particular saber mais sobre Henry VIII, Anne Boleyn, Anne de Cleves ou Thomas Cromwell, mas o mundo recriado por Mantel, de tão vívido, gerou uma impressão continua tão forte que o meu engajamento nunca se desligou. Aliás repare-se como é a própria autora a dizer isto sobre o tema histórico em questão:

"When I began work on the French Revolution, it seemed to me the most interesting thing that had ever happened in the history of the world, and it still does in many ways. I had no idea how little the British public knew or cared or wished to know about the French Revolution. And that’s still the case. They want to know about Henry VIII (...) the imagination is parochial. I couldn’t have picked anything less promising, from a commercial point of view, than the French Revolution." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

outubro 01, 2020

"Metro Exodus" (2019)

"Metro 2033" (2010) foi uma enorme surpresa, "Metro: Last Light" (2013) elevou a qualidade em todas as dimensões, nomeadamente direção de arte e narrativa, tornando difícil qualquer nova sequela e por isso acaba a não surpreender a sensação de mera incrementação de "Metro Exodus" (2019) que se limita a adicionar enxertos de mundo-aberto. A partir do meio da jornada já só o fechar da última página parece manter-nos a jogar, mas continuar até ao final leva-nos à redenção da experiência, do jogo como um todo, em impacto e prazer estético de uma forma quase memorável.