O livro, The Intelligence Trap: Why smart people do stupid things and how to make wiser decisions, apresenta-se com um título e premissa muito instigantes, mais ainda em tempo de: grande polarização dos discursos na sociedade; perda de influência das figuras de especialistas e autoridades; assim como desintegração das metanarrativas que orientavam a sociedade para grandes objetivos. Contudo, não deixa simultaneamente de se apresentar como uma premissa popular, que se socorre de ideias genéricas e crenças assentes na mera anedota, com parca evidência científica. Se estranhamos, chegando mesmo a perturbar-nos, ver alguém que temos como inteligente ser levado ao engano por eventos ou situações simples, até patetas, daí não devemos desde logo intuir a regra, mas talvez antes manter a porta aberta à exceção. Mas vejamos o que nos diz Robson.
David Robson é um jornalista de ciência que tem trabalhado para alguns média de relevo, tais como BBC, New Scientist ou The Atlantic. Este seu livro, diz-nos, foi feito a partir de um conjunto de entrevistas realizadas com especialistas ao longo de 3 anos. A ideia de Robson era perceber porque pessoas inteligentes e educadas cometem grandes erros, tendo servido como mote: a história do Professor de Física que foi burlado num esquema de mulheres atraentes e correios de droga (história completa no NYT).
Para suportar a sua abordagem, começa com um dos ataques mais populares do último meio-século, o Coeficiente de Inteligência (IQ). Não sendo defensor desta métrica, não o sou porque não sou defensor de métricas, e não porque não creio na sua base teórica. Ou seja, algumas pessoas nascem com maiores privilégios cognitivos que outros. Isto não tem nada de anormal, menos ainda mágico. Para compreender porquê, basta uma comparação com algo mais imediato e mais popular ainda, a beleza humana. Por mais que instituamos a beleza como subjetiva, todos temos noção da enorme diferença que existe entre todos nós, e dos padrões com maior e menor poder de atração. Podíamos falar dos corpos com maior massa muscular, ou maior endurance física, etc. etc. Sendo diferentes, também o somos no que toca às capacidades de raciocínio. A grande questão é saber se os testes que fazemos aferem realmente melhores capacidades ou não. Mas isso, na verdade, como com todas as métricas, é pouco relevante, já que qualquer métrica é mero indicador e não uma variável que determina o futuro ou a pessoa.
Robson vai buscar vários casos para desmontar o poder do IQ, dando como referências pessoas que se perderam completamente na vida, que não chegaram a lado algum, apesar de apresentarem valores absurdamente altos de IQ. Contudo a minha questão é antes, como é que se pode pensar que um simples teste feito em criança ou adolescência pode determinar a vida de alguém, sabendo que as variáveis que nos condicionam vão muito para além da nossa capacidade de raciocínio? É no mínimo ingénuo.
No meio disto, Robson vai buscar os estereótipos dos cientistas incapazes de lidar com as necessidades sociais do dia-a-dia, para não apenas demonstrar como um simples teste de raciocínio é insuficiente para dar conta das necessidades da vida no mundo real, mas mais do que isso, para demonstrar que um alto IQ pode antes, pelo contrário, ser um problema na resolução de problemas. Sendo verdade, que o IQ não afere tantas outras necessidades da vida do quotidiano, nenhum teste, seja qual for, vai algum dia aferir tal, já que somos agentes de uma realidade em constante mutação. Esta ideia de que poderemos encontrar um indicador que nos pode dizer que esta ou aquela criança será um génio no futuro é digna de alquimistas, não cientistas.
Robson percebe as limitações do IQ, e por isso apresenta um conjunto de teorizações, relevantes e que tornam a leitura do livro per se mais interessante, ainda que nada apresente de novo. Dá conta, da já gasta teoria do EQ (Coeficiente Emocional) do Daniel Goleman; da teoria muito em voga do Grit (resilência) de Angela Duckworth (ver o efeito na avaliação académica por Paul Tough); e por fim acaba a fixar-se naquilo que tem sido o cerne dos livros populares sobre cognição, os vieses cognitivos de Tversky and Kahnemann.
Daqui parte para a apresentação daquilo que vem sendo apresentado como bala mágica para todos os problemas cognitivos, ‘evidence-based wisdom’ (EBW), mas que do meu ponto de vista, vai pouco além daquilo que Kahnemann apresentou como teoria de processo duplo (rápido e lento, ao que Robson adiciona um conjunto de ideias repescadas da história da ciência, desde Sócrates até aos dias de hoje. A ponto de eu começar a suspeitar que o livro não é um ataque ao IQ, mas antes a sua defesa, no sentido em que tudo para Robson se resume à mente analítica, tudo o resto, nomeadamente a emoção, apesar de citar Damásio, é secundário. (Nota: enquanto lia o livro, vi a TED de Liv Boeree, “3 lessons on decision-making from a poker champion”, como especialista em poker, não em cognição, parece dizer o mesmo que Robson, como se continuássemos a andar em círculos no conhecimento sobre a cognição).
Diga-se que este desvio no texto, surge a partir de algo que vejo como uma contaminação do pensamento de Robson por parte das teorias sobre a emoção de Lisa Feldman-Barrett que defendem a emoção como algo meramente cultural, algo que podemos aprender a ignorar, porque não faz parte daquilo que somos. É interessante como Feldman-Barrett tem sido refutada por boa parte dos grandes cientistas da emoção, no entanto tem conseguido fazer toda a sua carreira com esta abordagem, cientificamente contra-corrente, mas imensamente popular.
Por outro lado, e mais uma vez, impressiona como alguém vai buscar uma teorização sobre os diferentes perfis de personalidade e cognitivos, no caso a “Triarchic Theory of Intelligence” de Robert Sternberg, que dá conta da existência de três perfis na abordagem à inteligência humana “analytical, creative and practical”, em linha com o modelo do design de Engagement — "abstracters, tinkerers, and dramatists" —, para depois jogar pela janela fora. Serve de ilustração, mas na verdade depois disso, segue-se como se todos os tipos de abordagens humanas à realidade fossem idênticas, ou pudessem ser medidas da mesma forma.
O livro não deixa de ter o seu valor, e de dizer muitas coisas acertadas, desde logo chamar a atenção para a necessidade da humildade científica, algo vital, mas que por vezes se esquece, tal como compreender que ser-se doutorado em algo, não dá o privilégio nem a capacidade para emitir opiniões sobre algo fora da sua área científica. Mas na verdade, quando falamos de algo, são os especialistas na área que devemos ouvir, e neste caso, ler a resenha do livro feita por Valerie Thompson para a Science permite-nos ir além na compreensão do que sabemos hoje realmente sobre IQ e processos de decisão:
“Anecdotes abound of individuals with a high IQ who have made substantial blunders, and Robson presents many captivating examples. But in terms of where the field stands, scientists are currently grappling with the question of whether IQ and decision-making can even be disentangled—rather than whether they are in opposition.” Thompson in Science, August, 2019
Como nota final, é um livro de divulgação científica, de leitura rápida e fluída, que apesar de alguns problemas abre caminhos para muitas abordagens distintas e permite rapidamente ficar a conhecer o que está em jogo na área, a partir do que qualquer um pode então iniciar o aprofundamento das questões.
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