"Germinal" acontece numa região mineira francesa focando-se numa greve desencadeada por uma crise internacional que pressiona a baixa de salários. O conflito serve para descrever as condições de trabalho, a criação de uma organização sindical de operários e as reações da burguesia e do capital. Pelo meio ficamos a conhecer as condições em que trabalham e vivem os mineiros que servirão para nos interrogar sobre a natureza do humano.O naturalismo literário apesar de se definir como imanente das grandes teorias científico-naturais da época (nomeadamente a teoria da evolução de Darwin), e apesar de considerar o humano na sua envolvente natural e biológica, afastado das problemáticas religioso-superticiosas, serve-se da força da tragédia dramática para acentuar a emoção narrativa. Ou seja, tendo ideias fundeadas na natureza para relatar, não procura formas expressivas, ditas naturais, para o fazer. Isto é tanto mais evidente quando comparado, por exemplo, com o chamado neo-realismo italiano (movimento artístico cinematográfico dos anos 1940-50), em que para dar conta de forma naturalista das realidades vividas, se empregavam atores não-profissionais, filmava-se nos locais reais, e usava-se uma cinematografia o mais sóbria possível. É verdade que em termos narrativos também se apontava o foco às tragédias e aos dilemas, contudo notava-se uma tentativa de refrear os mecanismos do cinema para não impactar de modo visceral os espectadores.
Zola pelo seu lado não olha a meios. Vai ao fundo da investigação sobre o que está a relatar. Passou meses numa comunidade de mineiros e desceu ao fundo de várias minas para compreender a brutalidade da experiência, trazendo tudo para o centro do livro. Mas não se limita a descrever ou sequer demonstrar, tudo é envolvido por um teia de personagens ainda que naturalistas, colocados em situações de conflito geometricamente definidas para produzir impacto dramático nos leitores. Isto é tanto mais evidente pela quantidade de situações simbólicas que vão surgindo ao longo do texto (ex. título da obra, os nomes das minas e de vários personagens; a descida e subida dos cavalos; os corpos que bóiam; ou os excisados das partes), quanto pelo melodrama representado na figura do romanceado do trio de personagens centrais; ou do administrador da mina e da sua infiel mulher.
Imagem do filme de Claude Berri:"Germinal "(1993)
Lê-se que Zola terá optado por uma componente romanceada, com tragédia amorosa, com o objetivo de poder fazer chegar a obra a um público mais vasto, nomeadamente às pessoas com quem conviveu e que lhe serviram de modelo nas minas que visitou. Acredito que sim, tal como acredito que isso é também responsável pela popularidade do livro. Ou seja, questões complexas e muito pouco digeríveis — como a formação de um sindicato, os excessos do capitalismo, as alternativas do comunismo e da anarquia, ou os direitos e os deveres de trabalhadores — não teriam sido capazes per se de catapultar esta obra. Mas de certo modo, esse romancear, ou melhor a nossa necessidade desse romancear, acaba por ir de encontro ao naturalismo. Se desejamos apresentar uma realidade da forma mais natural possível, não deverá essa mesma apresentação realizar-se seguindo a forma mais natural de o recetor/leitor a compreender? É muito provável que Zola tenha conseguido com esta obra algo que tão raramente se consegue, juntar a necessidade de expor factos e a necessidade de experienciar esses factos.
“Esses operários chapeleiros de Marselha que ganharam a sorte grande de cem mil francos e, imediatamente, foram comprar títulos, dizendo que de agora em diante iam viver sem fazer nada! Essa é a intenção de todos vocês, operários franceses: encontrar um tesouro e em seguida comê-lo sozinhos, refestelados no egoísmo e na vagabundagem. Gostam de gritar contra os ricos, mas não têm coragem de dar aos pobres o dinheiro que a sorte lhes envia... Vocês nunca serão dignos da felicidade enquanto possuírem alguma coisa, enquanto esse ódio aos burgueses for apenas o desejo desesperado de serem burgueses também.”Apesar desta minha aparente crítica, “Germinal” é brutalmente naturalista no que à psicologia e fisiologia se refere. Não é por acaso que muitos se distanciam da obra, pela sua fealdade, pelo retrato grotesco que do humano dá. Zola opera como investigador de microscópio em punho, olhando ao detalhe e relatando ainda mais detalhadamente, o que sentem as pessoas e como sentem. Não há pejo, as palavras são ditas, os atos selvagens representados sem dó, e ao leitor resta esconder-se no cantinho da sua humanidade, e esperar não ser contagiado por tanta barbaridade. Da promiscuidade ilimitada ao assassinato sem motivação, tudo surge por força da natureza humana, da impossibilidade de fugir às malhas naturais não domadas ainda pela civilização.
Imagens reais de mineiros e mineiras da época
Aliás, isso é aquilo que mais ressalta para mim de toda esta obra, mais até do que o fortíssimo ataque ao capitalismo, a animalidade humana. Uma comunidade que durante uma centena de anos trabalhou de sol a sol para ter um tecto e pão na mesa, a quem todos abandonaram. Atirados para um bairro, reduzidos à condição de irrelevantes, sem acesso a escolas, a quem nem sequer a Igreja ligava. Submetidos ao mínimo das necessidades fisiológicas — a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção e o abrigo (Maslow)—, não restando tempo nem espaço para as restantes necessidades — a segurança, a família, a auto-estima, impossibilitando qualquer almejo de realização pessoal. Zola tendo sentido isto mesmo, dá-o a sentir de forma absolutamente detestável, é difícil ler porque é difícil aceitar que assim se possa viver.
“Germinal” é leitura obrigatória nas escolas francesas, mas não faria mal nenhum se também o fosse nas escolas portuguesas. As primeiras páginas não cativam, mas chegando ao fim da primeira centena torna-se impossível parar o virar de páginas. O desenho da narrativa, a suspensão ante o que vai acontecer a seguir, e o ritmo intenso traduzido em frases curtas e muito diretas, fazem desta obra tão profundamente sócio-política um autêntico thriller. Poder aprender sobre um tema que passados 100 anos continua atual por meio de toda uma experiência de leitura altamente envolvente, tem um valor inestimável.
Nota sobre a tradução. É uma pena que a única tradução portuguesa de Eduardo de Barros Lobo date já de 1885. Apesar de não lhe apontar propriamente erros formais, a fluidez e ritmo tão caros a Zola, perdem-se completamente. Acabei por preferir a leitura na tradução em Português do Brasil, de Francisco Bittencourt para Abril, de 1981.
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