novembro 14, 2020

Livro: "Solaris"

"Solaris" Stanislaw Lem foi publicado em polaco em 1961, traduzido para inglês em 1970, e transformado em filme de culto russo, em 1972, por Andrei Tarkovsky. Nos últimos 25 anos vi o filme, pelo menos, uma dezena de vezes, e de cada vez fui compreendendo mais e melhor o mundo-história que nos era apresentado. Ajudou, pelo meio, a leitura de "Cosmos" (1980) de Carl Sagan, assim como múltiplas outras leituras de não-ficção e ficção-científica, assim como o meu próprio amadurecimento. Em 2002 saiu a versão de Soderbergh que pouco acrescentava, apesar de apresentar um discurso mais direto porque menos poético. O meu amor pelo cinema, e enorme respeito por Tarkovsky, fez com que tivesse sempre considerado a sua obra insuperável. Sempre que pegava no texto de Lem, as primeiras páginas faziam-me sentir que a simples especulação escrita nada podia face à mestria poética cinematográfica. Terminada a leitura, continuo a reconhecer a mestria artística de Tarkovsky, mas percebi que o visionarismo pertence todo a Lem.

Capa da primeira edição inglesa

A leitura do texto fez-me sentir que Tarkovsky tinha escondido excessivamente o âmago do universo de Lem no interior do seu filme. Ele está lá, e basta ver o curto videodoc  "Auteur in Space" (2015) de Kogonada para reavivar memórias e ligações, mas requer muito trabalho e persistência por parte do espectador, assim como bastante contexto. Ao terminar o livro, senti que Lem se tinha dado a nós, que mais do que um romance, tinha feito uma grandiosa obra especulativa, ou se preferirmos uma obra de "não-ficção futurista". Lem acusou Tarkovsky de se focar apenas nas relações humanas, o que é incorreto. Tarkovsky fá-lo tanto como Lem. O cerne de Solaris pode ser visto a partir da perspectiva preferida de Lem, a incomunicação com o não-humano, mas essa abordagem é construída com base em processos de espelho da noção de existência do humano, ou seja, das memórias, e isso é central tanto em Tarkovsky como em Lem.

Imagem central do filme homónimo de Andrei Tarkovsky com a russa Natalya Bondarchuk (Rhea) e o lituano Donatas Banionis (Kris)

A escrita surpreendeu-me, para uma obra de género, escrita sob um regime de opressão política como a URSS, e com cerca de 60 anos, é muito boa. Não existem artifícios de estrutura, nem inovações formais, a história serve apenas o relato, mas a escrita juntamente com a ciência eleva todo o discurso a ponto de nos colocar num elevado estado reflexivo. Se Tarkovsky consegue elevar a experiência por meio da poesia audiovisual, Lem fá-lo por meio da perfuração direta de conceitos sobre a condição humana.

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