Mostrar mensagens com a etiqueta narrativa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta narrativa. Mostrar todas as mensagens

dezembro 06, 2020

Do logro narrativo

Tenho notado um cada vez maior uso do logro narrativo, que se qualifica por um tipo de entretenimento altamente manipulativo, criado pelos contadores de histórias contemporâneas, talvez com maior incidência no domínio da ficção científica e do thriller. Cria-se todo um mundo-história altamente credível, no qual se apresenta uma premissa extremamente instigante que serve para manter os recetores completamente engajados, mas no final nada há para entregar. Ou seja, passam-se as páginas, passam-se os episódios, e a trama vai rodando sobre si, criando a ideia de que a saída está ao virar da esquina, mas o ciclo está fechado porque os criadores não sabem como sair dele. 

O mais recente exemplo aconteceu-me com "Autoridade", o segundo livro da série "Aniquilação" de Vandermeer. No primeiro tomo não são dadas respostas, mas a trama evolui, ficamos a saber muito mais sobre o quê e o quem. No segundo livro, começamos muito bem, rente à análise que está a ser feita às pessoas que voltaram da última expedição, mas assim como começa, assim continua e assim acaba, sem dali sairmos. Vandermeer escreve como se tudo fosse muito importante, como se cada personagem, cada espaço, cada detalhe fosse oferecer explicações, respostas, avanços, mas nada, nada serve nada. Sentimos Vandermeer a escrever linhas atrás de linhas, abrindo ruas e avenidas, para mostrar coisas que não são relevantes para o que se pretende efetivamente descobrir, conseguindo assim encher páginas e páginas sem nunca ter de chegar a vias de facto. No final, dá um salto com o personagem, literalmente, e com isso abre o desejo para a leitura do terceiro livro, mas convenhamos que só com muita ingenuidade acreditaríamos que ele teria verdadeiramente algo para oferecer depois de nos ter enrolado um livro inteiro e oferecido uma mão cheia de nada. 

Tinha sentido exatamente isto na segunda temporada do brilhante “The Leftovers”, assim como no sucessor do impressionante "Dark Matter" de Blake Crouch, “Recursion” (2019), que seguem o exemplo mais emblemático deste logro, o inesquecível “Lost”. Aliás, este é um assunto que já aqui tinha discutido a propósito do livro “The Lost Symbol” (2010) de Dan Brown, mas na altura peguei no mesmo por outra perspetiva, a do “objeto último” ou “inatingível”, e que define bem o mecanismo através do qual os criadores produzem o logro.

Em suma, todos estes criadores têm de apresentar trabalho. Precisam de produzir para ganhar a vida, e por isso debitar linhas, páginas, horas de televisão e de jogo é essencial. Não interessa sobre o quê, desde que os leitores e espetadores se mantenham fiéis e continuem a pagar. Só isso interessa. No fundo, estamos a falar de conteúdo literário e audiovisual enlatado, produzido em linhas de montagem, para cumprir a função de mero apaziguamento psicológico dos recetores, ou melhor, de adormecimento das suas funções cognitivas, fazendo-os esquecer mais um pedaço de tempo em que estiveram vivos. Nunca como agora tivemos tantas séries, tantas partes — 2, 3.. 6, 7 —e temporadas sem fim, e por isso nunca como agora tivemos tanta produção criada apenas porque é preciso criar, é preciso manter a máquina a funcionar. Esquece-se aqui a essência do processo criativo: liberdade para transcender não para entorpecer.

fevereiro 02, 2020

“The Science of Storytelling” (2019)

“The Science of Storytelling” é um pequeno livro criado por Will Storr a partir dos materiais que tem produzido para os cursos que vem lecionando sobre escrita criativa e storytelling. Como o título indica, o foco está naquilo que a ciência tem para nos dizer sobre a importância das histórias, narrativas, e do ato de contar histórias. Muita dessa ciência provém dos avanços no campo das neurociências realizados nos últimos 20 anos, que permitiu começar a compreender as histórias menos como mitos e fenómenos psicanalíticos e mais como esquemas cognitivos enraizados na biologia que suporta a nossa consciência. Autores como Damásio, Paul Zak, Paul Bloom ou Kahneman deram passos a partir da ciência, mas outros como Jonathan Gottschall, Brian Boyd, Patrick Colm Hogan ou David Herman souberam integrar esse conhecimento nas novas definições narrativas e de storytelling, tornando-os parte integrante do discurso académico que define hoje os estudos na área da narrativa. Storr não tem nada de novo para apresentar, contudo o modo jornalístico como comunica e apresenta todo este mundo de conhecimento científico pode fazer deste livro algo apetecível para um público leigo na matéria.
Para garantir este discurso leve, Storr não aprofunda a ciência do storytelling, antes se serve desta para lançar alguns conceitos que depois trabalha por meio da desconstrução de exemplos de obras reconhecidas, aproveitando muito bem essa desconstrução para explicar conceitos básicos do design narrativo, base dos cursos de escrita criativa. Diga-se que deste modo, para quem tiver apenas interesse em conhecer a área, com objetivos simples como compreender melhor como funcionam as histórias nos livros ou no cinema, ou porque nos apaixonam tanto as histórias, o livro acaba por servir bem. Contudo, não se espere um livro que dê resposta ao título, nem no seu avanço nem aprofundamento, digamos que é um título excessivamente ambicioso, ainda mais para alguém mais ligado à prática do contar de histórias do que à ciência propriamente dita.

janeiro 06, 2020

Saunders, o Bardo retornado

Lembro-me de quando "Lincoln no Bardo" (2017) saiu, da comoção da crítica e do público, seguida de múltiplos prémios, mas só agora que o li me apercebi totalmente da motivação do uso da expressão Bardo. O meu primeiro contacto com a definição tinha sido exatamente por via do budismo do Tibete, no qual o conceito se define como espaço-tempo que intermedeia a morte e o renascimento. Contudo esta definição do termo é menos comum no ocidente, onde o bardo define também os contadores de histórias medievais — sendo um epíteto muito associado hoje a Shakespeare —, principais responsáveis pelas histórias que se contavam, nomeadamente das façanhas de reis e nobres, criadores da cultura que preservaria momentos e pessoas para a eternidade. Assim, enquanto fui contactando com o livro fui-me sempre movendo entre ambas as definições, apesar de ir lendo que se tratava de uma história passada num cemitério, lia também que era onde os fantasmas contavam as suas histórias. Quando agora resolvi entrar no livro e parei para ler um pouco sobre o mesmo, percebi que era concretamente do bardo tibetano que se falava, dito pelo próprio autor que utilizou tudo aquilo que condicionou o enterro do filho de Lincoln como motivo para o seu enredo no além. Contudo, e talvez contaminado por tudo isto que disse, ao chegar ao final do livro fiquei honestamente em dúvida. Sim, estamos naquele momento após a morte, em que os fantasmas/almas/pessoas aguardam pelo que há-de vir, que cada autor/pensador vai definindo em função da influência religiosa — do bardo ao purgatório, passando pelo limbo — mas na verdade, o que temos neste livro são histórias, histórias de vidas simples e de presidentes quase-reis. Saunders não só "foi" ao Bardo pescar essas histórias, como se transformou ele próprio no Bardo que as relata para todo o sempre.
Entrando no livro, aconselho previamente o visionamento de “Lincoln” (2012), um filme muito acessível sobre os momentos marcantes da presidência de Abraham Lincoln, em que Steven Spielberg explica porque este 16º presidente se tornou num dos três mais influentes da história dos EUA. Para além disso, interessa saber que um, dos três de quatro dos seus filhos que morreram, tendo morrido em 1962, em plena Guerra Civil americana, ficou temporariamente num cemitério em Washington até ser trasladado com o pai em 1965 para a morada final no Illinois. Saunders aproveita este hiato tornado acontecimento, com tudo aquilo que historicamente o circundou, para produzir a sua ficção.
Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln no filme "Lincoln" (2012) de Steven Spielberg

“Lincoln no Bardo” poderia assim ser mais um livro de ficção-histórica, ainda que original pela componente fortemente fantasiosa, ao utilizar o pós-morte para dar conta dos efeitos e impactos da História, mas é mais do que isso. Porque se tudo isto que até aqui relatei parece original, dá apenas conta do contexto daquilo que é a verdadeira originalidade da obra. Saunders queria mais, não fosse ele reconhecido pela sua veia mais cómico-sarcástica, por isso além das vozes dos mortos, resolveu ir buscar vozes reais de registos deixados por múltiplas pessoas que viveram os dias que cercaram o dia retratado no livro. Deste modo, temos além da ficção, registos reais transcritos com aspas — de diários, cartas, registos estatais, livros, jornais, etc. — que Saunders entremeia num relato único. É uma escrita imensamente comum no meio académico — a narração do investigador intermediada com as citações de múltiplos outros autores em debate —, mas imensamente estranha em romance, mesmo histórico.
Lincoln lendo para o seu filho mais novo, Thomas "Tad" Lincoln

Contudo se o ponto de partida (o bardo) e a estrutura (intermediação entre ficção e registos escritos reais) eram já caso para oferecer o rótulo de originalidade, o que realmente faz do livro uma obra original é a inovação de Saunders, ao transformar a forma para nos dar a sentir diferentemente. Ele faz isso exatamente através do cruzamento entre o real e o ficcional, nomeadamente entre as vozes/pensamentos/corpos dos mortos e dos vivos. O presidente Lincoln é dado a ver e a sentir como em nenhuma outra obra antes, tal como aquilo que sente um pai quando perde um filho, e um filho que parte e deixa o pai para trás. Claro que o momento é per se imensamente melodramático, mas o relato de Saunders está longe da lamechice, antes cruza habilmente humor e melancolia, como tão raras vezes se pôde já ver. Porque é de verdade histórica que se trata, de humanos que existiram, mas é de muitos outros que sendo meras invenções em busca da consciência do estado em que se encontram, servem de veículos, de autênticos condutores, entre mundos, pessoas e sentires.
"Lincoln in the Bardo: 360 VR Video" (2017) The New York Times

Notas finais. Além do Booker, o livro foi adaptado a audiolivro tendo sido utilizadas vozes de 160 atores para dar conta da imensidade humana que atravessa o livro, tendo ainda um excerto sido adaptado para uma instalação do New York Times, que pode ser experienciado em parte no Youtube 360º.

dezembro 31, 2019

Design de Narrativa 2010 - 2019

Mais uma década passada, mais um conjunto de artefactos narrativos que contribuíram para o avanço da nossa percepção sobre os modos como contamos e registamos histórias. Muitos destes parecem recuperar ideias com trinta, quarenta e até centenas de anos, mas acabam sempre por trazer algo de novo e impulsionar a reflexão sobre os modos de fazer. Nos primeiros lugares coloquei artefactos que abrem para media completamente distintos — filme-jogo, novela gráfica, novela objeto, filme interativo, jogo-livro, simulação-jogo —, que como se percebe pela categorização não são claros, ou melhor, não se encaixam num único medium, pela simples razão de que quebram as convenções dos supostos media de origem.

1. Her Story [Filme-jogo] (análise)
2. Here [Novela gráfica] (análise)
3. S. [Novela objeto] (análise)
4. Possibilia [Filme Interativo] (análise)
5. Return of the Obra Dinn [Jogo-livro] (análise)
6. Bury Me, My Love [Simulação-jogo] (análise)
7. The Stanley Parable [RV] (análise)
8. Alma, A Tale of Violence [Webdoc] (análise)
9. Pearl [Animação 360º] (análise)
10. Florence [Novela Gráfica-jogo] (análise)
11. The Art of Pho [Motion comic] (análise)
12. Bandersnatch [Filme interativo] (análise)
13. Way to Go [RV] (análise)
14. The Random Adventures of Brandon Generator [Motion comic] (análise)
15. This War of Mine [Simulação-jogo] (Análise)
16. Pry [Livro multimédia] (Análise)
17. Thirty Flights of Loving [Videojogo experimental] (análise)
18. Lifeline [Simulação] (Análise)
19. CIA : Operation Ajax [Motion comic] (análise)
20. Thomas was Alone [Videojogo] (análise)

Nesta lista coloco apenas artefactos que surpreenderam no design da narrativa — estrutura e medium. Muitos dos objetos que o têm feito pertencem ao domínio dos videojogos, contudo aqui destaco apenas as inovações. Em termos de qualidade narrativa, tendo em conta história e jogabilidade, dedicarei uma lista própria aos videojogos narrativos brevemente.

Além destes, deixo ainda um conjunto de objetos ou abordagens a que vale pena ficar atento no futuro próximo, tais como os audiobooks de Choose-Your-Own-Adventure e os audiobooks da Marvel que poderão vir a garantir lugares privilegiados em sistemas como a Siri ou Alexa, ou ainda as séries para plataformas móveis de novelas gráficas interativas — Episode ou Choices — que apesar de estarem numa fase embrionária conseguiram já um público bastante alargado.

dezembro 20, 2019

“Eliza”, a IA como psicoterapia

O melhor de “Eliza” é sem dúvida o enquadramento da história que conta, centrada nos problemas da Inteligência Artificial e da quebra da privacidade, apresenta um novo ângulo da discussão, o potencial da IA como suporte à saúde mental, partindo da premissa: e se todos pudéssemos ter acesso a sessões de psicoterapia com IA? É um tema que poderíamos ver no mundo de “Black Mirror”, além de bastante atual, não apenas pela recente grande evolução da IA, mas por todos os desenvolvimentos tecnológicos que vêm sendo introduzidos na área da saúde. “Eliza” parte desta aparente atualidade, mas vai além, lança ideias para um futuro próximo e questiona-nos sobre um dos maiores flagelos das sociedades desenvolvidas: a doença mental.
Sendo um jogo interativo, as dúvidas emanadas do uso da tecnologia, a diferença entre humano e tecnologia no suporte aos humanos acaba surgindo como centro das nossas escolhas, do mundo em que acreditamos ou desejamos acreditar. Será uma máquina mais eficaz na leitura dos problemas que assolam as nossas mentes, os nossos Eu? Será a máquina mais objetiva e concreta, capaz de desafiar as nossas constantes dúvidas e incertezas? Poderemos confiar nas propostas de uma máquina imparcial?

“Eliza” apresenta várias propostas inovadoras, desde logo a ideia do Proxy. As consultas de psicoterapia não funcionam apenas numa relação humano-máquina, mas são mediadas por um outro humano que serve apenas de veículo à IA. Neste sentido destaca, desde logo, a necessidade do outro, a necessidade de sentir o conselho emanado por um igual, e não uma mera máquina que não poderá nunca sentir a dor do humano. Um outro ponto imensamente interessante acaba surgindo a partir das lutas empresariais e detém-se sobre a questão do sofrimento e da sua necessidade para a nossa felicidade. Filosoficamente falando, poderemos ser felizes se nunca nos sentirmos infelizes, se deixarmos de sentir a dor?

Enquanto videojogo é ficção interativa suportada por uma boa camada de ilustração gráfica, sem movimento nem animação, ou seja, uma “visual novel” ou história visual interativa. Como tudo se move ao redor da história e dos diálogos, a elevação da experiência assenta no texto e nas nossas decisões, relevando para segundo plano a componente audiovisual. Em termos de narração interativa, podemos dizer que temos um bom trabalho, embora sinta que o seu forte é mesmo o enquadramento da história, ficando as nossas decisões demasiado presas ao mero progresso narrativo.
Interessante foi perceber no final dos créditos que o jogo surgiu como fruto de uma residência artística interdisciplinar de Matthew Seiji Burns em Inglaterra, tendo eu depois percebido que Burns é também o co-criador do belíssimo "The Writer Will Do Something" (2015).

dezembro 16, 2019

"Neo Cab" (2019)

"Neo Cab" é o jogo narrativo de 2019. O tema assenta num cyberpunk não muito distante, quase relacionável com os dias de hoje, no que toca a uso de redes sociais, Uber e IA, o que acaba por funcionar muito bem em termos de dramatização das ansiedades sociais atuais: o desemprego pela automatização, as diferenças humano-máquina, a vigilância e a perda de privacidade, o isolamento e o distanciamento da natureza. Em termos formais, temos uma narrativa multilinear com múltiplas escolhas, mais centradas no diálogo, mas com implicações no desenrolar dos eventos. O melhor de tudo acaba sendo a escrita, ou seja, a capacidade de introduzir os temas complexos no meio das discussões e de nos fazer pensar sobre eles.



O jogo usa jogabilidade da gestão de corridas de táxi/uber para nos envolver no universo. Temos várias noites de trabalho, estamos numa cidade nova, e temos de fazer 3 circuitos diários, cuidando das estrelas que nos atribuem, recarregar a energia do carro escolhendo os locais mais em conta, assim como arranjar hotel todas as noites para descansar. No meio de tudo isto a narrativa desenrola-se pela conversação que encetamos com todos aqueles que vamos apanhando na cidade. A progressão, tanto no jogo como na narrativa, está imensamente cuidada, garantido grandes níveis de engajamento. Não raras as noites, queremos continuar, porque queremos saber mais, queremos ajudar, queremos descobrir, queremos avançar.



A imersão é ainda conseguida pela interface muito assente em grandes planos das faces, mesmo que estas nem sempre se concertem com o que está a ser dito, aproximam-se. Mas garantem uma proximidade com alguém ali na nossa frente, sem que, contudo, isso tenha implicado um grande investimento da equipa, em termos de recursos gráficos e de produção (é um jogo indie, e custa menos de 20 euros). Sem dúvida que o que leva o jogo às costas é a história e a sua escrita, tanto a componente linear, como as nossas escolhas.


No campo das escolhas, o mais importante de uma narrativa interativa, houve o cuidado de trabalhar as mesmas em duas frentes — racional e emocional. Não podemos sempre escolher o que queremos, existem condicionantes emocionais que por vezes nos impedem de reagir. Podemos de algum modo sentir a nossa liberdade recortada, por outro lado, é desta forma que conseguem garantir personalidade à Lina, a nossa condutora Uber. Ela não é uma mera extensão de nós, tem vontade própria, tem ansiedades e desejos, e nós enquanto jogamos não estamos meramente a controlar um universo interativo por meio dela, mas estamos a aprender sobre ela e com ela. No fundo, é assim que os autores conseguem gerar empatia entre nós e a Lina, e ao mesmo tempo produzir a enorme sensação de engajamento que sentimos com o jogo. Estamos, na esfera narrativa, mais do que um jogo, isto é uma história, e o que “Neo Cab” faz é construir um acesso privilegiado que o recetor usa não apenas para sorver a história, mas por meio dela experienciar uma realidade distinta da sua, o que é conseguido através da reflexão e consequente tomada de decisões dentro do mundo-história.

dezembro 04, 2019

Entrevista com Neil Druckmann (The Art of Video Game Storytelling)

Mais um vídeo sobre o desenvolvimento de "The Last of Us" (2013) focado na narrativa, contando com uma excelente entrevista com Neil Druckmann, o co-diretor e principal responsável pelo argumento. Em pouco mais de 20 minutos Druckmann explica algumas das semelhanças entre a escrita para cinema e videojogos, destacando modos de representação, exposição e construção de arcos narrativos de personagens. Algumas coisas são já bem conhecidas, outras como a construção do argumento e o modo como ele é usado na encenação do jogo estão excelentes. Claro que ao longo da entrevista Druckmann vai sempre revelando pequenos detalhes sobre o design da narrativa que não só deliciam quem quer que tenha jogado, como dão conta do modo como tudo o que está no jogo foi pensado ao ínfimo detalhe.
"The Last of Us" continua sendo um dos melhores jogos de sempre do meio, apesar dos 6 anos passados, continua perfeitamente jogável e tão poderoso, em termos expressivos, como quando saiu.

outubro 11, 2019

A Ilusão do Powerpoint e a Oralidade vs. Escrita

O Powerpoint tem servido de saco de boxe a todos e mais alguns, são inúmeros os comentários e discursos contra o seu uso, uns por causa da componente estética, outros porque serve apenas de cábula à apresentação, outros porque é uma distração, etc. Ao longo dos últimos 15 anos tenho ouvido todo o tipo de justificativos para boicotar a ferramenta. Em todos os casos levantei-me sempre contra tais boicotes, tenho defendido e continuo a defender o seu uso, no entanto a leitura dos justificativos dados por Jeff Bezos fizeram-me refletir, não propriamente no seu uso, mas antes no seu consumo. Ou seja, o problema não me parece estar nos slides, nem nos oradores que os usam (se os souberem utilizar) mas na audiência, nos seus consumidores.


Num e-mail enviado aos colegas da administração de topo, em 2004, Jeff Bezos pedia o fim do uso do Powerpoint nas reuniões com os seguintes argumentos:
“Subject: Re: No PowerPoint presentations from now on at S-team
A little more to help with the question “why.”
Well-structured, narrative text is what we’re after rather than just text. If someone builds a list of bullet points in Word, that would be just as bad as PowerPoint.
The reason writing a good six-page storied memo is harder than “writing” a 20 page PowerPoint is because narrative structure forces better thought and better understanding of what’s more important than what, and how things are related.”
Mais tarde em entrevista a Charlie Rose diria ainda:
“The traditional corporate meeting starts with a presentation. Somebody gets up with a PowerPoint display, some type of slide show. In our view you get very little information, you get bullet points. This is easy for the presenter, but difficult for the audience. And so instead, our meetings are structured around six-page narratives. When you have to write your ideas out in complete sentences, complete paragraphs, and tell a complete story, it forces a deeper clarity.”
Não podia estar mais de acordo no que toca as forças de um texto narrativo versus slides de pontos e palavras-chave. Contudo nesta equação Bezos esquece, ou melhor, elimina da cena totalmente, o orador. Não se pode comparar um texto narrativo e um powerpoint, a comparação, a fazer-se teria de ser feita entre um texto e um orador, podendo depois o orador ser subdividido em: com suporte e sem suporte de powerpoint. Mas foi ao tentar compreender Bezos, que compreendi o verdadeiro problema do Powerpoint, ou melhor, dos consumidores de Powerpoint. Para quem, como eu participa há décadas em reuniões com e sem powerpoint e também dá aulas há décadas com Powerpoints, fez-se luz. Analise-se o seguinte cenário:
9h00, reunião/aula, chegam todos, 12 pessoas (ou 60 alunos), o orador/professor já está com o Powerpoint ligado, os colegas/alunos sentam-se, puxam dos portáteis, colocam-nos à sua frente, ligados à rede, o telemóvel ao lado e um café ou copo de água. O orador/professor inicia, lança a discussão e atrás de si vai projetando palavras, frases, imagens e tabelas que ilustram o que vai dizendo. Passados 5 minutos, metade dos espetadores está a ler os e-mails que chegaram durante o fim do dia anterior e noite, um quarto a verificar as notícias do dia, e o restante quarto a verificar as redes sociais. De vez em quando levantam as cabeças e ouvem uma expressão, uma piada ou um exemplo mais estranho, fixam algumas palavras do Powerpoint, mas rapidamente voltam aos seus afazeres matinais. No final da reunião (aula), as tarefas e trabalhos são divididos ou pedidos. O Powerpoint é enviado para todos ou colocado no sistema de eLearning online, e cabe a cada um lançar mãos ao trabalho. Chegados aos gabinetes ou a casa, vão ler e reler o Powerpoint, e dizem que não serve para nada, que a reunião/aula foi uma perda de tempo.
Ora o que aconteceu não foi um problema de Powerpoint, mas antes um total desrespeito para com o colega/professor que preparou a palestra e aula, que desenvolveu os slides para acompanhar os 30 a 50 minutos de performance no contar de história oral. Por outro lado, os slides não foram desenhados para serem lidos como história. Os slides servem apenas de suporte, ilustração e reforço de uma performance oral. Quando se pega neles sem orador, é como se pegássemos numa lista de supermercado, são mero descritivo, sem narrativização, sem contexto, sem exemplos, nem metáforas.

Não é este o bom uso que refiro. Entre isto e ler um texto não há diferença. Preferível enviar o texto por e-mail e cancelar a reunião.

Claro que um texto narrativo é superior, mas quantos de vocês já assistiram a sessões de textos lidos? Lidos não por dramaturgos ou atores, mas por simples pessoas? Ninguém aguenta (eu já aguentei muitas) de leitura monocórdica de textos. Os textos escritos como narrativas não servem a oralidade porque enrijecem a linguagem não-verbal do orador, porque quando são escritas são-no para se valerem per se, sem orador — servem antes como dizia Stephen King “a telepatia entre escritor e leitor” —, e por isso mesmo convidam à castração da performance retórica, o objetivo de um texto narrativo é colocar o leitor dentro da ação, já um texto oral é uma partilha, o orador é um guia da ação, não se abstém da sua presença, é a sua função principal levar pela mão a audiência a sentir e a ver, tal Virgilio conduzindo Dante pelos estágios do Inferno.

Gravura de Gustave Dore, "Virgilio e Dante", in "Divina Comédia" de Dante

Claro que podemos comunicar sem Powerpoint. Os comediantes fazem-no todos os dias, e não precisam de Powerpoint. Mas um comunicador ou professor não tem de ser um comediante, não pode ser um comediante, cabem-lhe outras responsabilidades além da produção de um momento de partilha de ideias pela oralidade. O Professor tem matéria nova para digerir todos os dias, e tem de encontrar as melhores formas pedagógicas de as levar até à sua audiência, não apenas pela oralidade, mas essencialmente através da produção de exercícios e atividades. E ao aluno não cabe apenas realizar os exercícios, cabe também estar presente no momento da partilha, e aceitar a mão oferecida pelo professor que o guia. Por outro lado, o Powerpoint é útil na expansão de recursos de suporte à performance do orador, nomeadamente porque pode dar a ver aquilo que é apenas texto ou verbo, tornar palpável ao espectador o que é simbólico (palavras e texto) ou seja abstrato.

Veja-se a diferença entre uma interface de comandos de texto MS-Dos e uma interface gráfica Windows. A maior facilidade que o utilizador tem no uso conceptual dos conceitos. Não estamos a falar de diferença entre texto narrativo e imagens narrativas, isso é outra discussão.

Assim o verdadeiro problema do Powerpoint não é, de todo, a sua fragilidade comunicativa, mas é antes a ilusão que cria no espectador de que ele pode estar a ouvir e a ver a comunicação. Não só porque o multicanal da comunicação cria a sensação de que o multitasking (ver e-mail, responder, redes, etc.) é possível, mas mais gravoso ainda porque o facto de ser um objeto digital, pode ser facilmente registado e copiado, sem qualquer esforço. Ou seja, os alunos baseiam as suas memórias do momento na ideia de que depois vão ter acesso aos slides, e por isso nem sequer precisam de tirar notas, algo impensável quando os quadros eram escritos a giz, e apagados para todo o sempre no final da aula. Ora quando depois chegam a casa e vão ler os slides, verificam que neles está uma mera síntese de palavras-chave e pistas para ideias, mas que para quem não esteve concentrado na performance da história e não realizou a “visita guiada às ideias” pelo professor, nada dizem.

Diga-se que, e no caso das aulas em particular, muito disto podia ser colmatado ainda, se os alunos lessem os textos, a bibliografia recomendada, mas como isso é ainda mais trabalhoso do que estar atento nas aulas, acabam por limitar o seu estudo aos slides, e isso reflete-se de forma inevitável nas notas finais.

setembro 29, 2019

Diálogo: A Arte da Ação Verbal

Robert McKee é uma das maiores autoridades do guionismo de Hollywood, sendo o seu livro “Story: Substance, Structure, Style and the Principles of Screenwriting” (1997) considerado uma espécie de bíblia para quem escreve para o meio audiovisual. “Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen” (2016) é assim além da sua primeira publicação em 20 anos, um verdadeiro sucessor de “Story”, capaz de aprofundar toda a componente da escrita de diálogo. Entretanto McKee passou todos estes anos envolvido nos seus famosos workshops, aquilo que confessa mais gostar de fazer porque segundo ele“Life is absurd. But there is one meaningful thing, one inarguable thing, and that is that there is suffering. Fine writing helps alleviate that suffering – and anything that puts meaning and beauty into the world in the form of story, helps people to live with more peace and purpose and balance, is deeply worthwhile.” 



É interessante ver como as reações ao livro se dividem entre acusações de academismo e falta dele. McKee é um brilhante analista de histórias, nos mais variados meios, o que faz com que não raras vezes se exceda e entre em processos de sistematização de ideias, conceitos e argumentos que não são muito úteis a quem escreve. Contudo, para académicos como eu, são autênticas pepitas, porque provêm de um olhar único, que funciona como um microscópio de aumento das teias narrativas e sociais plasmadas nas obras. O facto de McKee ser mais artesão que académico, dá-lhe um acesso à arte do fazer absolutamente invejável. Neste segundo livro McKee dedica-se a desconstruir a arte do diálogo nas suas mais variadas estruturas, sistemas e lógicas, usando exemplos amplos e variados para expor as suas teorizações, que vão desde o teatro à televisão, passando pelo cinema. Os casos apresentados, e desmontados, são brilhantemente dissecados, como se despisse os filmes de toda a sua envolvência plástica e nos apresentasse os nós da narrativa completamente nus, dando conta daquilo que considera mais importante no diálogo — o subtexto — ou “the double dimension of dialogue—the outer aspect of what is said versus the inner truth of what is thought and felt.” .

Simultaneamente McKee não deixa de tecer comentários e justificativas sobre o efeito plástico do medium, nomeadamente sobre as diferenças nas capacidades de cada um dos media, o que torna o livro imensamente relevante para todos aqueles que trabalham o âmbito do transmedia.
O trabalho de McKee acaba sendo bastante académico, ainda que metodologicamente siga uma via pouco comum, já que como revela, o método seguido é o de apresentar ideias às suas audiências de criadores, com quem vai depurando e filtrando até que condigam com um sentir da maior parte dos criativos. Na verdade, e tendo em conta tratar-se de arte, o método é profundamente académico, e se serve quem procura fórmulas, ou modelos, para chegar ao maior número de pessoas, acaba afastando aqueles que andam à procura de autenticidade ou da subversão do status quo.
O livro apresenta-se em 4 partes, sendo a primeira de domínio mais académico, no qual é exposto toda a sua teorização sobre a arte do diálogo, e diga-se, a parte que mais me interessou. Depois temos três partes dedicadas a conselhos sobre problemas nos diálogos, sobre o tratamento do diálogo em função dos personagens, e por fim a desconstrução de várias cenas no seu design de diálogo. Vou deixar aqui uma síntese da primeira parte, e aconselho vivamente a leitura de uma entrevista para a Creative Screenwriting na qual ele dá conta de algumas das ideias aqui discutidas:


1 – DEFINIÇÃO do DIÁLOGO, por McKee

Este ponto começa por ser desde logo inovador, não porque McKee olha para todos os media narrativos, mas porque McKee resolve estender totalmente a relevância do Diálogo, e ao fazê-lo eu não podia estar mais de acordo, uma vez que segue completamente o sentido da Pragmática da Comunicação.
“Tradition defines dialogue as talk between characters. I believe, however, that an all-encompassing, in-depth study of dialogue begins by stepping back to the widest possible view of storytelling. From that angle, the first thing I notice is that character talk runs along three distinctly different tracks: said to others, said to oneself, and said to the reader or audience.
“I place these three modes of talk under the term “dialogue” for two reasons: First, no matter when, where, and to whom a character speaks, the writer must personalize the role with a unique, character-specific voice worded in the text. Second, whether mental or vocal, whether thought inside the mind or said out into the world, all speech is an outward execution of an inner action. All talk responds to a need, engages a purpose, and performs an action. No matter how seemingly vague and airy a speech may be, no character ever talks to anyone, even to himself, for no reason, to do nothing. Therefore, beneath every line of character talk, the writer must create a desire, intent, and action. That action then becomes the verbal tactic we call dialogue.”
“To say something is to do something, and for that reason, I have expanded my redefinition of dialogue to name any and all words said by a character to herself, to others, or to the reader/audience as an action taken to satisfy a need or desire. In all three cases, when a character speaks, she acts verbally as opposed to physically”
Para explanar melhor esta definição, McKee apresenta uma diferença entre Dramatização e Narrativização de diálogo, entre o diálogo realizado dentro da cena (dramatizado) e aquele exterior à cena — o monologo ou a fala para o leitor/espectador — (narrativizado). Para se compreender esta distinção, McKee faz o que sabe melhor fazer, pega num pequeno diálogo, e dá-o a ler nas 3 formas: "said to oneself", "said to others", "said to the reader". Deixo apenas primeiros parágrafos do exercício.
1) “Dreams run like streams.” Hoary proverbial wisdom, I know you well. And in reality most of what one dreams is not worth a second thought—loose fragments of experience, often the silliest and most indifferent fragments of those things consciousness has judged unworthy of preservation but which, even so, go on living a shadow life of their own in the attics and box-rooms of the mind. But there are other dreams.”
2) “Dreams run like streams.” A proverb I know you’ve heard. Don’t believe it. Most of what we dream isn’t worth a second thought. These fragments of experience are the silly, indifferent things our consciousness judges unworthy. Even so, in the attic of your mind they go on living a shadow life. That’s unhealthy. But some dreams are useful. ”
3) “Glas and Markel sit in a café. As dusk turns to night, they sip after-dinner brandies.
GLAS: Do you know the proverb “Dreams run like streams”?
MARKEL: Yes, my grandmother always said that, but in reality, most dreams are just fragments of the day, not worth keeping.
GLAS: Worthless as they are, they live shadow lives in the attic of the mind.
MARKEL: In your mind, Doctor, not mine.
GLAS: But don’t you think dreams give us insights?”

O Dialogo e o Medium
Ainda na definição, McKee dedica uma boa parte à discussão do efeito do media no uso do tipo de diálogo,
“All dialogue, dramatized and narratized, performs in the grand symphony of story, but from stage to screen to page, its instruments and arrangements vary considerably. For that reason, a writer’s choice of medium greatly influences the composition of dialogue—its quantities and qualities. The theatre, for example, is primarily an auditory medium. It prompts audience members to listen more intently than they watch. As a result, the stage favors voice over image” [assim, cabe ao som transportar a maior parte do diálogo, ou informação, 80/20]. Cinema reverses that. Film is primarily a visual medium. It prompts the audience to watch more intently than it listens. For that reason, screenplays favor image over voice. [Cabe a imagem a maior parte do diálogo: 80/20]. The aesthetics of television float between the theatre and cinema. Teleplays tend to balance voice and image, inviting us to look and listen more or less equally. [Imagem/som: 50/50]. Prose is a mental medium. Whereas stories performed onstage and onscreen strike the audience’s ears and eyes directly, literature takes an indirect path through the reader’s mind.” [Por isso não existe regra, tanto pode ser dramatizado como narrativizado.]

2 – AS 3 FUNÇÕES DO DIÁLOGO

“Dialogue, dramatized and narratized, performs three essential functions: exposition, characterization, action.” 

2.1. Exposition 
“Is a term of art that names the fictional facts of setting, history, and character that readers and audiences need to absorb at some point so they can follow the story and involve themselves in its outcome. A writer can embed exposition in the telling in only one of two ways: description or dialogue.”
“Onstage and onscreen, directors and their designers interpret the writer’s descriptions into every expressive element that isn’t dialogue: settings, costumes, lighting, props, sound effects, and the like. Comic book artists and graphic novelists illustrate their stories as they tell them. Prose authors compose literary descriptions that project word-images into the reader’s imagination.”
A exposição é ainda responsável por vários parâmetros da construção narrativa, vitais para a construção de cenas que garantam o total envolvimento do espectador/leitor: “pacing and timing”; “showing versus telling”; “narrative drive”; “exposition as ammunition”; “revelations”; “direct telling”; “forced exposition”. Destes todos, deixo uma das mais relevantes para compreender o que está a acontecer no processo de contar uma história:
“Narrative drive is a side effect of the mind’s engagement with story. Change and revelations incite the story-goer to wonder, “What’s going to happen next? What’s going to happen after that? How will this turn out?” As pieces of exposition slip out of dialogue and into the background awareness of the reader or audience member, her curiosity reaches ahead with both hands to grab fistfuls of the future to pull her through the telling. She learns what she needs to know when she needs to know it, but she’s never consciously aware of being told anything, because what she learns compels her to look ahead.”
2.2. Characterization
“The second function of dialogue is the creation and expression of a distinctive characterization for each character in the cast. Human nature can be usefully divided into two grand aspects: appearance (who the person seems to be) versus reality (who the person actually is).”

Deste modo o desenvolvimento de personagens obriga-nos a criar duas facetas: o verdadeiro personagem, e a sua caracterização. A primeira diz respeito aos momentos de tensão e escolha, momentos no qual percebemos que tipo de pessoa é, os valores que se levantam e falam por si, a sua dignidade ou ausência dela. Já para a caracterização McKee apresenta três parâmetros:
“1) To intrigue. The reader/audience knows that a character’s appearance is not her reality, that her characterization is a persona, a mask of personality suspended between the world and the true character behind it (..) Having hooked the reader/audience’s curiosity, the story becomes a series of surprising revelations that answer these questions.”
“2) To convince. A well-imagined, well-designed characterization assembles capacities (mental, physical) and behaviors (emotional, verbal) that encourage the reader/audience to believe in a fictional character as if she were factual.”
“3) To individualize. A well-imagined, well-researched characterization creates a unique combination of biology, upbringing, physicality, mentality, emotionality, education, experience, attitudes, values, tastes, and every possible nuance of cultural influence that has given the character her individuality (..) And the most important trait of all: talk. She speaks like no one we have ever met before.”
2.3. Action 
“Dialogue’s third essential function is to equip characters with the means for action. Stories contain three kinds of action: mental, physical, and verbal. (..) Mental Action: Words and images compose thoughts, but a thought does not become a mental action until it causes change within a character. (..)Physical Action: Physical action comes in two fundamental kinds: gestures and tasks. (..)Verbal Action: As novelist Elizabeth Bowen put it, “Dialogue is what characters do to each other.” (..) Therefore, before writing a line, ask these questions: What does my character want out of this situation? At this precise moment, what action would he take in an effort to reach that desire? What exact words would he use to carry out that action?”


3 – EXPRESSIVIDADE

O terceiro ponto do método de McKee apresenta-se na desconstrução da expressividade, que McKee faz em três frentes diferentes: conteúdo, forma e técnica.

3.1 Conteúdo
“As you compose dialogue, I think it’s useful to imagine character design as three concentric spheres, one inside the other—a self within a self within a self. This three-tiered complex fills dialogue with content of thought and feeling while shaping expression in gesture and word. The innermost sphere churns with the unsayable; the middle sphere restrains the unsaid; the outer sphere releases the said.”
Aqui entramos pelos reinos da interpretação narrativa adentro, com McKee a levar consigo todas as ferramentas da pragmática e semiótica para ajudar no suporte à construção por via da desconstrução e interpretação que cada leitor faz do que vai enfrentando e construindo mentalmente.

The Said: “The surface level of things said supports the more or less solid meanings that words, spoken or written, directly express with both denotations and connotations.
The Unsaid: “A second sphere, the unsaid, revolves within a character. From this inner space the self gazes out at the world. As thoughts and feelings form at this level, the self deliberately withholds them.”
The Unsayable: “Deepest yet, concealed beneath the unsaid, the sphere of the unsayable roils with subconscious drives and needs that incite a character’s choices and actions.”

Isto permite McKee chegar à essência do que tem para dizer e definer:

Text and Subtext
“Text means the surface of a work of art and its execution in its medium: paint on canvas, chords from a piano, steps by a dancer. In the art of story, text names the words on the page of a novel, or the outer life of character behavior in performance—what the reader imagines, what an audience sees and hears. In the creation of dialogue, text becomes the said, the words the characters actually speak.
Subtext names the inner substance of a work of art—the meanings and feelings that flow below the surface. In life, people “speak” to each other, as it were, from beneath their words. A silent language flows below conscious awareness. In story, subtextual levels enclose the hidden life of characters’ thoughts and feelings, desires and actions, both conscious and subconscious—the unsaid and unsayable.”
3.2 Forma
“The qualities and quantities of dialogue vary with the levels of conflict used in the storytelling (..) Conflict disrupts our lives from any one of four levels: the physical (time, space, and everything in it), the social (institutions and the individuals in them), the personal (relationships of intimacy—friends, family, lovers), and the private (conscious and subconscious thoughts and feelings). The difference between a complicated story and a complex story, between a story with minimum dialogue versus maximum dialogue, hinges on the layers of conflict the writer chooses to dramatize.”

3.2 Technique
“Figurative devices range from metaphor, simile, synecdoche, and metonymy to alliteration, assonance, oxymoron, personification, and beyond. In fact, the list of all linguistic tropes and ploys numbers in the hundreds. These turns of phrase not only enrich what’s said, but also send connotations of meaning resonating into the subtexts of the unsaid and unsayable as well.”
Neste ponto McKee aprofunda questões de paralinguagem, de design de informação — suspense, cumulativo, balanceado — economia (dizer o máximo com o mínimo), pausa e a necessidade do silencio

O livro continua com todo um trabalho de desconstrução e depuração de técnicas — com cenas de "The Sopranos", "The Great Gatsby", "Lost in Translation" ou ainda "O Museu da Inocência" de Pamuk—, através do que McKee partilha uma imensidade de conhecimento sobre a arte do diálogo mas também sobre a arte da narrativa e sua relevância para o ser humano. Para muitos o livro soará formulaico, para mim soa metódico, imensamente sistematizado algo que não é comum nas artes. Diria que McKee, ao usar esta abordagem também já no "Story" foi um dos grandes percursores daquilo que hoje qualificamos como Narrative Design.

Fica uma nota final, a versão audiobook é narrada pelo próprio McKee, o que adiciona toda uma outra camada de interesse à leitura via audio.

setembro 08, 2019

Para evitar a Crise Existencial evitem a Narrativa

Kieran Setiya é professor de filosofia no MIT e escreveu o livro “Midlife: A Philosophical Guide” (2017) que se tornou uma espécie bestseller no tema das crises existenciais da meia-idade. Li o artigo que deu origem ao livro (passei depois os olhos pelo livro mas acrescentava pouco mais) e deixo aqui as linhas principais defendidas pelo autor, sendo que a razão que me levou a realizar esta partilha é de que a conclusão maior vai contra tudo aquilo que tenho feito e estudado nas última décadas. E o pior é que conhecendo tão bem como conheço o modo de organização da vida no formato narrativo, tendo a dar a razão a Setiya. Diz-nos ele que não podemos resolver a crise se continuarmos a tentar construir histórias sobre aquilo que fomos, somos ou queremos ser. Para Setiya, o problema assenta na diferença entre os valor atribuído ao que fazemos, entre o télico e atélico, ou seja, entre "ter um fim" ou ser simplesmente "interminável".


Como  surge a crise existencial de meia-idade:
“As we have seen, what elicits the crisis, for many, is a confrontation with mortality. Something about the fact that we will eventually die, that life is finite, makes us feel that everything we do is empty or futile. It is essential to the experience I have in mind, however, that this sense of emptiness or futility is not an apprehension that nothing matters: that there is no reason to do one thing instead of another. Even in the grip of the crisis, I know that there is reason to care for those I love, read the books and watch the movies I admire, do my job well, if I can, be responsible, help and not do harm. It does not seem worthless to prevent the suffering of others, or impossible to justify action. Yet somehow the succession of projects and accomplishments, each one rational in itself, falls short.”
Isto levaria a pensar que o problema é a falta de narrativa:
"What is missing is narrative unity: a story of development and progress over time, not just of repetition. "
Mas Setiya diz-nos:
“Imagine someone who accepts the underived value of intellectual progress. It matters in itself, according to her, whether we answer scientific questions and solve mathematical problems. These things are worth doing apart from their relation to anything else. As she sees it, the value of discovering truths and proving theorems does not derive from their technological applications. It does not even derive from the prior value of knowing. What matters most fundamentally is finding out. Her days are dedicated to pure science, replete with activities of these kinds.”
“There are problems involved in living an episodic life, a life devoted to consecutive, limited projects, but the answer does not lie in the construction of a larger story into which the episodes fit. My description of the scientist anticipates this point, since it does not rest on the absence of an over- arching narrative. Even if she has a consuming goal, the search for a grand theory of widgets, and she is convinced that the search has underived value, the scientist may wonder what, in the end, she will have achieved. Suppose she has the final theory. Now what?”

Preparando a resposta:
A) Telic: “What I will call a “telic activity” includes in its nature a terminal point, the point at which it will be finished and thus exhausted. The scientist’s activities are telic in this sense. They are finished, and exhausted, when she has proved the theorem, discovered the truth, solved the scientific problem. Walking home tonight is a telic activity, since it aims at getting home. So is writing this essay, since it is over when the essay is done. Almost anything we would be inclined to call a “project” will be telic: buying a house, starting a family, earning a promotion, getting a job. These are all things one can finish doing or complete.”
B) Atelic: “Importantly, however, not all activities are like this. Some do not aim at a point of termination or exhaustion: a final state in which they have been achieved and there is no more to do. For instance, as well as walking home, getting from A to B, you can go for a walk with no particular destination. Going for a walk is an “atelic” activity. The same is true of hanging out with friends or family, of studying philosophy, of living a decent life. You can stop doing these things, and you eventually will, but you cannot finish or complete them in the relevant sense. It is not just that you can repeat them, as you could repeatedly walk home, but that they do not have a telic character. There is no outcome whose achievement exhausts them. They are not in that way limited.” 

A explicação:  
“This is what disturbed the scientist: not that her ends had only derivative value, but that they were projects she would complete, one after another. Hence the feeling of repetition and futility. Again and again, her engagement with what she cares about removes it from her life, as a completed task, and she is forced to start over. (..) [the] work is devoted to destroying its own purpose. It is not a mistake to have ends like this. But it is a mistake for them to dominate one’s life.”
“the appeal to telic ends explains the connection between death and the midlife crisis. Pausing in the midst of the life, in the rush of demands and deadlines, I know that I am half-way through. Death is not imminent. I am not afraid that I will not finish the projects I am engaged in right now. But the best I can hope for is another forty years. In the end, my works, whatever they count for, will be numbered. This is distinctive of telic ends. One asks how many, not how much. How many essays published? How many books? How many students taught? To think about the finitude of life in the face of death is to see that one’s ends are telic, if they are. It is in this mood that I imagine looking back, counting my achievements and failures, wondering “What do they add up to, after all?” 
"If the problem is that our ends are telic, we can see why death elicits the crisis and why immortality does not help. Gaining infinite duration does not affect the nature of our projects. It does not change how we engage with them; nor does it give us atelic ends. Unlike the diagnosis in terms of derivative value, this argument explains how the midlife crisis involves our relation to time (..) So long as your new ambitions are telic, however, they will at most distract you from the structural defect in your life. Fast cars and wild affairs are not the answer.”

Como proceder:
“You can resolve the midlife crisis, or prevent it, by investing more deeply in atelic ends. Among the activities that matter most to you, the ones that give meaning to your life, must be activities that have no terminal point. Since they cannot be completed, your engagement with atelic ends will not exhaust or destroy them.”
“Instead of studying Aristotle in order to write an essay, which is a telic end, one writes an essay in order to study Aristotle (..) Do not work only to solve this problem or discover that truth, as if the tasks you complete are all that matter; solve the problem or seek the truth in order to be at work. When you relate to it in this way, your life is not a mere succession of deeds. There is no pressure to feel that the activities you care about are done with, one by one, and so to ask, repeatedly, what next? The projects you value may end but the process of pursuing them does not.”

A demonstração final da irrelevância da narrativa:
“If this is the answer to the midlife crisis, it is clear why narrative is not the point. The defect of the episodic life is not that the episodes do not fit into a larger structure of development and growth, but that their temporal structure is telic. The remedy is to engage in them for the sake of atelic ends, in a life that need not have variety, suspense, or drama. The contemplative life may be quite dull from a novelist’s point of view. But if it is shaped by a concern for contemplation that is not purely instrumental, it is not subject to the sense of exhaustion and emptiness that marks the critical phase.”
“A focus on atelic ends, which have no future goals, may even conflict with the desire for narrative. Stories differ in many ways, and I have no theory of narrative to propose. But it tends towards closure: beginnings, middles, and ends. If what you care about most of all is that your life have a certain arc, then in travelling along that arc you are moving towards a point at which the arc is complete and your purpose is lost. If you are telling the story of your life, and you hope to avoid the midlife crisis, better not to tell a story of this kind.”

E assim temos a Filosofia a tentar responder a algo que a Psicologia continua a ter problemas em desvendar. Por outro lado, demonstra que estudar filosofia, que estudar a cultura que nos transforma todos os dias naquilo que somos, ainda tem muito a dar a sociedade, ao contrário daquilo que os colegas das exatas teimam em propagandear.

agosto 25, 2019

O Doente Inglês (1992)

Li-o há duas semanas, e não foi só por estar de férias e sem computador que não escrevi sobre ele, foi também porque a impressão que deixou não era clara. Clara, no sentido de poder ser traduzida em palavras. Escrevi quando o terminei — “Imensamente sensorial...” — e continuo sentindo-o como tal. Ondaatje apresenta não só um vocabulário rico como uma prosa elaborada e poética. Existe uma história, entre várias histórias por cada uma das personagens, cada uma carrega consigo as suas morais, cada uma toca-nos à sua maneira, permitindo-nos ler o livro a partir de múltiplas perspectivas de sentido, daí a minha dificuldade em verbalizar uma ideia central única. Espero no entanto ver emergir essa ideia nas linhas seguintes...


Vi o filme quando saiu, não era de todo o meu tipo de filme, e surpreendentemente adorei, talvez porque no meio da expectável fórmula de Hollywood tenha visto algo mais, algo que já nessa altura não consegui verbalizar, mas que senti como diferente de anteriores obras de grande aura pedestalizada pelos Oscars. Nos Oscars estava a torcer por “Fargo” e “Shine”, mas nunca senti que tivesse sido um erro perder-se para o Paciente, diga-se que Geoffrey Rush ("Shine") levou o melhor actor e Frances McDormand ("Fargo") a melhor atriz. O Paciente tinha algo não só de épico, mas também de incompreensível e contraditório. As múltiplas personagens, distintas e opostas, puxavam em cada direção, e na fragmentação ofereciam unidade, que os atores suportavam muito bem, mas acima de tudo a direção e cinematografia levavam para níveis de transcendência. Não num sentido místico, mas de belo, de pura beleza formal, que tudo envolvia e a tudo garantia sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme de Anthony Minghella, o deserto quente parecia transmigrar por entre as imagens captadas.


Quando comecei a ler o livro, passados 23 anos sobre o visionamento do filme, esse mesmo calor do deserto, amarelo torrado, denso e a perder de vista, ressurgiu. O paciente na sua cama, Juliette Binoche sempre a seu lado, e Kristin Scott Thomas nos sonhos do passado do paciente. A estrutura narrativa usa o espaço do improvisado e abandonado hospital na Toscânia, para a partir dos personagens viajar geograficamente até ao Norte de África, Canada, a Segunda Guerra e Hiroshima, num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do que vamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores e morais. A narrativa deslinearizada vai emergindo da densa malha de factos que se vão solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos. Os personagens que chegam a atingir um ponto de equilíbrio, visto por nós a partir da compreensão do seu passado e assunção da sua presença real, ali naquele lugar e naquele tempo presente, começam a dissolver-se, a perder força, e a desagregar-se, abandonando o lugar e as pessoas, parecendo emocionalmente seguir o rumo da aproximação do fim da Guerra, que apesar de caminhar para a vitória terminaria profundamente negra.


À superfície temos um triângulo amoroso e as consequências funestas para todos os envolvidos, mas isso é apenas o suporte humano daquilo que Ondaatje quer contar, ou melhor criar. Porque na verdade, e daí a minha dificuldade em verbalizar, Ondaatje não quer mesmo contar, ele quer fazer sentir. E faz sentir, porque usa todos aqueles personagens, os do triângulo e todos os que o envolvem, com os seus passados, ligações e missões de vida e dá-lhes forma por meio de um texto que se assume como ele próprio também personagem, porque é ele que todos liga, e é dele que obtemos respostas às nossas perguntas, mas essas respostas nunca são diretas, nem tão pouco completas, porque as respostas de Ondaatje não são textuais mas antes texturais. Porque as personagens não contribuem com respostas cabais, antes aceitam apenas alargar a nossa compreensão do que estamos a ler, alargando o sentido do artefacto, oferecendo-lhe textura por via do espaço viajado e comportamento desfiado. Se no final fica imenso por responder, nem por isso sentimos que não atingimos o final, porque o final daquele espaço-tempo foi sentido, e aquelas personagens, cada uma à sua maneira, ficaram em nós.

Se não temos respostas, se é difícil verbalizar o que nos dá o livro, se se sente mais do que se reflete, nem por isso nos deixa de questionar, e um dos momentos altos que só com esta idade poderia compreender, chegou com a frase abaixo que poderia servir de definição do existencialismo da meia-idade:
“Quando somos jovens não nos vemos ao espelho. Fazemo-lo quando chegamos a velhos, quando nos preocupamos com o nosso nome, com a nossa lenda, com o significado que as nossas vidas terão para o futuro. Envaidecemo-nos dos nomes que usamos, da nossa pretensão a termos sido os primeiros olhos, o exército mais forte, o mercador mais astuto. É depois de velho que Narciso quer uma imagem gravada de si próprio.” (p.151)

Edição lida: Círculo de Leitores, capa dura, 1997

julho 08, 2019

Storytelling e as Ciências da Mente

O livro “Storytelling and the Sciences of Mind” (2013) de David Herman, pela MIT Press, trata um dos temas que mais tem atraído o meu interesse nos últimos 15 anos, e que tem que ver com o modo como as histórias servem o nosso enquadramento da realidade. Tentar compreender como é que a organização narrativa de informação nos ajuda a compreender o mundo e os outros, como é que essa organização se relaciona com as nossas capacidades cognitivas e nos impele não apenas a refletir e a interpretar os mundos, situações e pessoas apresentadas, mas também a conceber e especular planos futuros para ação, produzindo assim transformações comportamentais a partir da relação com essas narrativas. O livro de Herman é brilhante, porque não se limita a um dos lados da questão, antes trabalha transdisciplinarmente a narratologia e as ciências cognitivas, importando e fusionando conhecimento de parte a parte. O único problema é estar escrito numa forma nada amigável para quem não estude a área, reduzindo completamente o alcance da obra.


Na última década não têm faltado trabalhos no domínio da narrativa e storytelling sobre a sua importância para o humano e para as nossas capacidades cognitivas (Gottschall, Brian Boyd, Paul Zak, etc. ), contudo como diz Herman esses trabalhos têm-se limitado a importar apenas de um lado para o outro. Ora Herman apresenta uma obra na qual apresenta um troca entre ambas as partes, alimentando mutuamente o conhecimento tanto da narrativa como do modo como apreendemos o mundo. Assim o livro divide-se em duas grandes partes, procurando responder às duas grandes questões: (1) “How do stories across media interlock with interpreters’ mental capacities and dispositions, thus giving rise to narrative experiences?”, ou seja, como é que interpretamos os mundos apresentados pelas narrativas. (2) “And how (to what extent, in what specific ways) does narrative scaffold efforts to make sense of experience itself?”, ou seja, como é que a narrativa contribuiu para a nossa compreensão da realidade. Para o efeito Herman propõe dois grandes conceitos: “Narrative Worldmaking” e “Storying the World”.

Assim para o Worldmaking, Herman propõe que as narrativas — independentemente do media — funcionam de modo referencial, providenciando estímulos cognitivos para a criação de entidades na forma de mundos onde as histórias acontecem. No “storying”, Herman propõe que as histórias configuram o modo como organizamos o fluxo do caos de estímulos da experiência diária. Deste modo, o worldmaking poderia ser visto como um instrumento de criação de sentido da realidade. Esta proposta de convergência de enquadramento teórico acaba por configurar aquilo que Herman define como o “mind-narrative nexus”.

Em jeito de introdução a toda esta teorização Herman abre o livro como uma discussão extremamente pertinente e com a qual me venho debatendo há algum tempo, a intenção autoral. Assim, só faz sentido configurarmos as histórias com base na criação de sentido se assumirmos que quem conta histórias o faz com uma intenção, ou seja, que a narrativa é em essência um ato de comunicação, algo que Walter Fisher já tinha proposto em 1985, mas que choca com alguns defensores da arte como algo não comunicacional. Do meu lado, tendo a aceitar mais facilmente que a arte possa não ser dotada de intenção comunicativa quando ela é de ordem simbólica — música ou abstracta — contudo quando falamos de estruturas narrativas, falar de ausência de intenção expressiva é no mínimo paradoxal. Para Herman isto é tanto mais central porque o modo como compreendemos as narrativas é a partir das razões que movem os personagens/pessoas sendo elas que conduzem as razões das histórias e sendo com elas que nós nos envolvemos. Porque os atos das pessoas nas histórias estão fundamentadas em "crenças", "intenções", "objetivos", "motivações", "emoções", "estados mentais" ou "competências" que para a interpretação do leitor têm de inevitavelmente ser atribuídas aos autores/criadores das narrativas.

Isto vai ao encontro da discussão que se segue que tem que ver com a análise não-redutível das situações e das pessoas nas histórias. Herman considera que apesar de podermos aprofundar neurocientificamente os constituintes de "pessoa", isso não nos ajuda a compreender o que acontece no processo de experiência dos recetores. Porque considera que os processos que decorrem acontecem ao nível da intersubjectividade, que pode ser definida em dois níveis, segundo Trevarthen  — primário, “the core of every human consciousness” que “appears to be an immediate, unrational, unverbalized, conceptless, totally atheoretical potential for rapport of the self with another’s mind”; e secundário “sympathetic intention toward shared environmental affordances and objects of purposeful action” — e que é responsável pela nossa noção de individualidade no seio da comunidade, e assim pela nossa capacidade de construir uma noção do nosso posicionamento nessa realidade. Deste modo as histórias servem não apenas o reforço de modelos sociais, mas servem fundamentalmente como experimento e teste desses modelos. Se as pessoas se baseiam nos seus conceitos do mundo para compreender o mundo apresentado pela narrativa, não deixam de usar essas mesmas narrativas como instrumentos de suporte ao pensamento crítico sobre esses conceitos. Ou seja, existe uma interação contínua entre aquilo que a narrativa apresenta e aquilo que é o mundo pré-exposição à história do recetor que conduz a uma discussão crítica interna.

Herman defende que o cerne do engajamento com as histórias acontece a partir do modo como podemos ou não mapear as pistas dadas em dimensões de configuração mental assentes no em: Quem, O Quê, Onde, Como e Porquê. E por sua vez como é que estas questões servem na passagem das categorias narrativas à definição dos personagens, para o que Herman defende que o leitor prossegue um conjunto de questões tais como:
(1) “For which elements of the WHAT dimension of the narrative world are questions about WHO, HOW, and WHY pertinent? In other words, in what domains of the storyworld do actions supervene on behaviors, such that it becomes relevant to ask, not just what cause produced what effect, but also who did (or tried to do) what, through what means, and for what reason?” 

(2) “How does the text, in conjunction with broader understandings of persons, enable interpreters to build a profile for the characters who inhabit these domains of action? Put otherwise, how do textual features along with models of personhood (deriving from various sources) cue interpreters to assign to characters personlike constellations of traits?” 

(3) “Reciprocally, how does the process of developing these profiles for individuals-in-a-world bear on broader understandings of persons?” 
Na segunda parte, dedicada ao "Storying the world", Herman dedica-se a desconstruir o modo como as narrativas podem servir de instrumentos ou ferramentas mentais para trabalhar o mundo, para o que apresenta cinco grandes modos de criação de sentido, ou modos de scaffolding (de suporte) ao nosso pensamento:

1 — “’chunking’ experience into workable segments”
Aqui Herman começa por exemplificar com a divisão em 3 atos de Aristóteles, que tem apenas como objetivo podermos separar em partes a experiência absorvida. Ou seja, particionar e atribuir estrutura à informação, organizando em “pedaços” facilmente indexáveis e chamáveis à memória. Neste processo de chunking enquadram-se vários processos, um também muito interessante é a noção de espaço versus lugar:
“stories can be used to turn spaces into places — to convert mere geographic locales into inhabited worlds. My analysis suggests that there is in fact a range of ways in which narrative can serve as a resource for transforming abstract spaces into lived-in, experienced, and thus meaningful places (..) As Johnstone (1990) puts it, “coming to know a place means coming to know its stories; new cities and neighborhoods do not resonate the way familiar ones do until they have stories to tell” (p. 109; cf. p. 119 and also Johnstone 2004; Easterlin 2012, pp. 111–151; Finnegan 1998; Relph 1985; Tuan 1977). Accordingly, “in human experience, places are narrative constructions, and stories are suggested by places” (Johnstone 1990, p. 134). Hence narrative worldmaking can also be described as a resource for place making—for saturating with lived experience what would otherwise remain an abstract spatial network of objects, sites, domains, and regions."
2 — “imputing causal relations between events” 
É esta componente que nos permite desenvolver pensamento crítico sobre o que acontece nas relações entre os agentes, analisar, contrastar e confrontar as razões, a justeza, a verdade e falsidade. Herman defende que lemos os eventos como ações que constroem o mundo-história dirigido a um objetivo, para uma meta que condiciona as ações e reações. No fundo esta abordagem pela causalidade serve também o chunking, já que permite relacionar eventos e ocorrências até aqui isoladas, em episódios ou cenas, que depois podemos utilizar mentalmente. Herman diz mesmo que as histórias funcionam como heurísticas de julgamento, que vão contribuindo para alimentar com regras básicas a nossa interpretação da realidade.

3 — “addressing problems with the 'typification' of phenomena” 
Neste ponto entramos num processo de chunking, ou organização, em parte, do modo como resolvemos problemas. No fundo, o modo como conseguimos partir do particular de cada história para a generalização da nossa relação com a realidade diária. Herman fala então da tipificação, ou categorização — em objetos e classes — que nos permite gerar expectativas para determinadas resultados de solução para situações nunca antes encontradas, através daquilo que já experienciámos. Assim “If assimilated to preexistent types, any encountered object, situation, or event can be placed within a “horizon of familiarity and pre-acquaintanceship which is, as such, just taken for granted until further notice as the unquestioned, though at any time questionable stock of knowledge at hand”. As histórias recebidas sobre o mundo fornecem contextos de tipicidade, garantindo a interpretação de ocorrências inesperadas, permitindo vários modos de resolução de problemas. No fundo, “a general account of narrative as a mind-extending, mind-enabling resource” (p. 251).

4 — “sequencing actions” 
Aqui a ideia é de que as histórias nos fornecem também uma espécie de protocolos de atuação, de racionalização da sequência de ações a tomar. Este processo é comparado por Herman à conversação, na qual nos organizamos para colaborar, aqui utilizamos as pistas para nos organizer para agir na relação com o problema proposto pela realidade.

5 — “distributing intelligence across time and space”
Este ponto surpeendeu-me porque me habituei a pensar nele a partir da rede de internet, e apesar dele ter nascido com o contar de histórias, e apesar de sabermos que esse é um dos grandes fundamentos das histórias, a passagem de conhecimento entre gerações, nunca tinha parado para compreender as histórias como um fenómeno de inteligência distribuída, que o é também.


Deixo ainda uma palavra para a complexidade do texto. Herman trabalha de forma soberba a abstração de conceitos, o seu problema acaba sendo a enorme dificuldade que tem em particularizar as mesmas. O livro denota um esforço tremendo no sentido de tornar o texto mais acessível, desde logo todos os capítulos apresentam introduções e conclusões de sumário, que repetem os argumentos, assim como são utilizadas várias histórias de vários meios — literatura, cinema, banda desenhada — para desmontar os conceitos, mas nem assim se torna mais fácil compreender o que é aqui discutido. É interessante como Herman compreende que a força das histórias está na particularização e individuação dos eventos e das ações, no uso das pessoas/personagens como veículos principais da compreensão, mas depois não consegue aplicar essas ideias na sua abordagem comunicativa. Não é uma mera questão de uso de jargão, embora diga-se que não houve nesse domínio qualquer controlo de danos, e isso também não ajuda, mas o maior problema são mesmo as enormes tiradas de conceitos abstractos, definidos por jargão, que se interligam e embrenham em novos conceitos, que obrigam o leitor a montar todo um enquadramento mental altamente exigente, para o que quem não possui experiência e conhecimentos anteriores da discussão se torna praticamente inacessível.