Na última década não têm faltado trabalhos no domínio da narrativa e storytelling sobre a sua importância para o humano e para as nossas capacidades cognitivas (Gottschall, Brian Boyd, Paul Zak, etc. ), contudo como diz Herman esses trabalhos têm-se limitado a importar apenas de um lado para o outro. Ora Herman apresenta uma obra na qual apresenta um troca entre ambas as partes, alimentando mutuamente o conhecimento tanto da narrativa como do modo como apreendemos o mundo. Assim o livro divide-se em duas grandes partes, procurando responder às duas grandes questões: (1) “How do stories across media interlock with interpreters’ mental capacities and dispositions, thus giving rise to narrative experiences?”, ou seja, como é que interpretamos os mundos apresentados pelas narrativas. (2) “And how (to what extent, in what specific ways) does narrative scaffold efforts to make sense of experience itself?”, ou seja, como é que a narrativa contribuiu para a nossa compreensão da realidade. Para o efeito Herman propõe dois grandes conceitos: “Narrative Worldmaking” e “Storying the World”.
Assim para o Worldmaking, Herman propõe que as narrativas — independentemente do media — funcionam de modo referencial, providenciando estímulos cognitivos para a criação de entidades na forma de mundos onde as histórias acontecem. No “storying”, Herman propõe que as histórias configuram o modo como organizamos o fluxo do caos de estímulos da experiência diária. Deste modo, o worldmaking poderia ser visto como um instrumento de criação de sentido da realidade. Esta proposta de convergência de enquadramento teórico acaba por configurar aquilo que Herman define como o “mind-narrative nexus”.
Em jeito de introdução a toda esta teorização Herman abre o livro como uma discussão extremamente pertinente e com a qual me venho debatendo há algum tempo, a intenção autoral. Assim, só faz sentido configurarmos as histórias com base na criação de sentido se assumirmos que quem conta histórias o faz com uma intenção, ou seja, que a narrativa é em essência um ato de comunicação, algo que Walter Fisher já tinha proposto em 1985, mas que choca com alguns defensores da arte como algo não comunicacional. Do meu lado, tendo a aceitar mais facilmente que a arte possa não ser dotada de intenção comunicativa quando ela é de ordem simbólica — música ou abstracta — contudo quando falamos de estruturas narrativas, falar de ausência de intenção expressiva é no mínimo paradoxal. Para Herman isto é tanto mais central porque o modo como compreendemos as narrativas é a partir das razões que movem os personagens/pessoas sendo elas que conduzem as razões das histórias e sendo com elas que nós nos envolvemos. Porque os atos das pessoas nas histórias estão fundamentadas em "crenças", "intenções", "objetivos", "motivações", "emoções", "estados mentais" ou "competências" que para a interpretação do leitor têm de inevitavelmente ser atribuídas aos autores/criadores das narrativas.
Isto vai ao encontro da discussão que se segue que tem que ver com a análise não-redutível das situações e das pessoas nas histórias. Herman considera que apesar de podermos aprofundar neurocientificamente os constituintes de "pessoa", isso não nos ajuda a compreender o que acontece no processo de experiência dos recetores. Porque considera que os processos que decorrem acontecem ao nível da intersubjectividade, que pode ser definida em dois níveis, segundo Trevarthen — primário, “the core of every human consciousness” que “appears to be an immediate, unrational, unverbalized, conceptless, totally atheoretical potential for rapport of the self with another’s mind”; e secundário “sympathetic intention toward shared environmental affordances and objects of purposeful action” — e que é responsável pela nossa noção de individualidade no seio da comunidade, e assim pela nossa capacidade de construir uma noção do nosso posicionamento nessa realidade. Deste modo as histórias servem não apenas o reforço de modelos sociais, mas servem fundamentalmente como experimento e teste desses modelos. Se as pessoas se baseiam nos seus conceitos do mundo para compreender o mundo apresentado pela narrativa, não deixam de usar essas mesmas narrativas como instrumentos de suporte ao pensamento crítico sobre esses conceitos. Ou seja, existe uma interação contínua entre aquilo que a narrativa apresenta e aquilo que é o mundo pré-exposição à história do recetor que conduz a uma discussão crítica interna.
Herman defende que o cerne do engajamento com as histórias acontece a partir do modo como podemos ou não mapear as pistas dadas em dimensões de configuração mental assentes no em: Quem, O Quê, Onde, Como e Porquê. E por sua vez como é que estas questões servem na passagem das categorias narrativas à definição dos personagens, para o que Herman defende que o leitor prossegue um conjunto de questões tais como:
(1) “For which elements of the WHAT dimension of the narrative world are questions about WHO, HOW, and WHY pertinent? In other words, in what domains of the storyworld do actions supervene on behaviors, such that it becomes relevant to ask, not just what cause produced what effect, but also who did (or tried to do) what, through what means, and for what reason?”Na segunda parte, dedicada ao "Storying the world", Herman dedica-se a desconstruir o modo como as narrativas podem servir de instrumentos ou ferramentas mentais para trabalhar o mundo, para o que apresenta cinco grandes modos de criação de sentido, ou modos de scaffolding (de suporte) ao nosso pensamento:
(2) “How does the text, in conjunction with broader understandings of persons, enable interpreters to build a profile for the characters who inhabit these domains of action? Put otherwise, how do textual features along with models of personhood (deriving from various sources) cue interpreters to assign to characters personlike constellations of traits?”
(3) “Reciprocally, how does the process of developing these profiles for individuals-in-a-world bear on broader understandings of persons?”
1 — “’chunking’ experience into workable segments”
Aqui Herman começa por exemplificar com a divisão em 3 atos de Aristóteles, que tem apenas como objetivo podermos separar em partes a experiência absorvida. Ou seja, particionar e atribuir estrutura à informação, organizando em “pedaços” facilmente indexáveis e chamáveis à memória. Neste processo de chunking enquadram-se vários processos, um também muito interessante é a noção de espaço versus lugar:
“stories can be used to turn spaces into places — to convert mere geographic locales into inhabited worlds. My analysis suggests that there is in fact a range of ways in which narrative can serve as a resource for transforming abstract spaces into lived-in, experienced, and thus meaningful places (..) As Johnstone (1990) puts it, “coming to know a place means coming to know its stories; new cities and neighborhoods do not resonate the way familiar ones do until they have stories to tell” (p. 109; cf. p. 119 and also Johnstone 2004; Easterlin 2012, pp. 111–151; Finnegan 1998; Relph 1985; Tuan 1977). Accordingly, “in human experience, places are narrative constructions, and stories are suggested by places” (Johnstone 1990, p. 134). Hence narrative worldmaking can also be described as a resource for place making—for saturating with lived experience what would otherwise remain an abstract spatial network of objects, sites, domains, and regions."2 — “imputing causal relations between events”
É esta componente que nos permite desenvolver pensamento crítico sobre o que acontece nas relações entre os agentes, analisar, contrastar e confrontar as razões, a justeza, a verdade e falsidade. Herman defende que lemos os eventos como ações que constroem o mundo-história dirigido a um objetivo, para uma meta que condiciona as ações e reações. No fundo esta abordagem pela causalidade serve também o chunking, já que permite relacionar eventos e ocorrências até aqui isoladas, em episódios ou cenas, que depois podemos utilizar mentalmente. Herman diz mesmo que as histórias funcionam como heurísticas de julgamento, que vão contribuindo para alimentar com regras básicas a nossa interpretação da realidade.
3 — “addressing problems with the 'typification' of phenomena”
Neste ponto entramos num processo de chunking, ou organização, em parte, do modo como resolvemos problemas. No fundo, o modo como conseguimos partir do particular de cada história para a generalização da nossa relação com a realidade diária. Herman fala então da tipificação, ou categorização — em objetos e classes — que nos permite gerar expectativas para determinadas resultados de solução para situações nunca antes encontradas, através daquilo que já experienciámos. Assim “If assimilated to preexistent types, any encountered object, situation, or event can be placed within a “horizon of familiarity and pre-acquaintanceship which is, as such, just taken for granted until further notice as the unquestioned, though at any time questionable stock of knowledge at hand”. As histórias recebidas sobre o mundo fornecem contextos de tipicidade, garantindo a interpretação de ocorrências inesperadas, permitindo vários modos de resolução de problemas. No fundo, “a general account of narrative as a mind-extending, mind-enabling resource” (p. 251).
4 — “sequencing actions”
Aqui a ideia é de que as histórias nos fornecem também uma espécie de protocolos de atuação, de racionalização da sequência de ações a tomar. Este processo é comparado por Herman à conversação, na qual nos organizamos para colaborar, aqui utilizamos as pistas para nos organizer para agir na relação com o problema proposto pela realidade.
5 — “distributing intelligence across time and space”
Este ponto surpeendeu-me porque me habituei a pensar nele a partir da rede de internet, e apesar dele ter nascido com o contar de histórias, e apesar de sabermos que esse é um dos grandes fundamentos das histórias, a passagem de conhecimento entre gerações, nunca tinha parado para compreender as histórias como um fenómeno de inteligência distribuída, que o é também.
Deixo ainda uma palavra para a complexidade do texto. Herman trabalha de forma soberba a abstração de conceitos, o seu problema acaba sendo a enorme dificuldade que tem em particularizar as mesmas. O livro denota um esforço tremendo no sentido de tornar o texto mais acessível, desde logo todos os capítulos apresentam introduções e conclusões de sumário, que repetem os argumentos, assim como são utilizadas várias histórias de vários meios — literatura, cinema, banda desenhada — para desmontar os conceitos, mas nem assim se torna mais fácil compreender o que é aqui discutido. É interessante como Herman compreende que a força das histórias está na particularização e individuação dos eventos e das ações, no uso das pessoas/personagens como veículos principais da compreensão, mas depois não consegue aplicar essas ideias na sua abordagem comunicativa. Não é uma mera questão de uso de jargão, embora diga-se que não houve nesse domínio qualquer controlo de danos, e isso também não ajuda, mas o maior problema são mesmo as enormes tiradas de conceitos abstractos, definidos por jargão, que se interligam e embrenham em novos conceitos, que obrigam o leitor a montar todo um enquadramento mental altamente exigente, para o que quem não possui experiência e conhecimentos anteriores da discussão se torna praticamente inacessível.
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