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janeiro 17, 2021

Do não-dizível por Clarice Lispector

Ler “A Paixão Segundo G.H.” (1964), de Clarice Lispector, é como ler o tom de Beckett traduzido pela poética de Pessoa. Nada aqui é convenção, tudo é experimental, não existe princípio, meio, nem fim, porque existem apenas interrogações. Interrogações que se vão abrindo como matrioskas, de onde vão saindo novas questões que como borboletas voam para longe sem aguardar por resposta. É uma obra carregada de existencialismo, mas mais do que isso, é uma obra confessional, recorda-nos Santo Agostinho, pelo confronto das ações passadas com os julgamentos do presente e as punições do futuro. Mas vai mais fundo, pela dor que Lispector imprime em G.H. que nos recorda a dor a que Von Trier submete C.G. em “Antichrist” (2009).

dezembro 31, 2020

Kudos para a trilogia de Cusk

O último livro da trilogia de Rachel Kusk, “Kudos” (2018), foi escrito depois da sua passagem por Portugal, onde esteve a convite do festival Literatura em Viagem 2017. Se o primeiro livro da trilogia “Outline” (2014) se passava na Grécia, e o segundo, “Transit” (2016), em Inglaterra, este terceiro passa-se em Portugal. Contudo, ao contrário desses dois, Kusk nunca revela que a ação se passa no nosso país. Percebemos que assim é, através de pequenos indícios como o pastel de nata, aqui tratado como tarte de creme de ovos, mas ainda mais pela profusão da presença temática da religião e futebol nas conversas, e claro pelo calor e mar. Mas o maior indício está no enredo construído à volta de uma visita da narradora a um festival literário no sul da Europa. 

Fotografia de Rachel Cusk em Lisboa, de Nuno Santos para o jornal Público, maio 2017

dezembro 27, 2020

Da inconsequência das nossas vidas

"A Vida Modo de Usar" (1978) de Georges Perec é um clássico muito pouco lido, não só pela dificuldade de suster a leitura ao longo das 500/600 páginas, dependendo da edição, mas também pela dificuldade de chegar ao seu propósito. Enquanto o lia, fui-me dividindo entre as qualificações de obra-prima e obra de artesanato. O domínio da arte de contar histórias é virtuoso, tal como é o domínio da escrita, contudo, todas essas competências parecem, em momentos, estar unicamente ao serviço do mecanismo criado por Perec. É preciso chegar ao final, bater com a cabeça na parede, questionar o que acabámos de ler, relacionar, e voltar a equacionar, para chegar a compreender o substrato escondido e reconhecer o génio do criador.

Considerações Breves

1 - Perec era um estruturalista convicto, tendo pertencido ao movimento OULIPO, criado por Raymond Queneau, a quem dedica esta obra. Este movimento precede o pós-modernismo, podendo confundir-se, mas distingue-se por seguir uma via concreta e distinta: a rigidez estrutural. Ou seja, os criadores não escrevem de forma livre, menos ainda caótica como os pós-modernistas, mas antes o fazem seguindo conjuntos de regras, ou como eles preferem dizer: “restrições de escrita”. Um exemplo máximo disto pode ser visto no livro “La Disparition” (1969), também de Perec, escrito integralmente sem nunca fazer uso da letra “E”.

Placa de Rua francesa, apesar de falsa, criada como homenagem a Georges Perec, em particular ao trabalho "La Disparition", demonstrando a ausência do uso do "E".

Esta abordagem baseia-se na ideia de que a criatividade brota das restrições, por isso se ditarmos constrangimentos ao que pode ser feito isso poderá conduzir o criador a ir além. De certa forma, liga-se ao ditado de que a criatividade nasce da necessidade. Contudo, a abordagem apresenta alguns problemas, como veremos à frente na análise do livro em questão.

2 – O plano estrutural usado para conceber “A Vida Modo de Usar” assenta num corte de perfil de um prédio, que nos permite olhar para todas as peças de habitação do mesmo. Perec esboçou assim um diagrama com 100 quadrados, 10 por 10, com cada quadrado a fornecer o constrangimento ao mundo que pode ser contado (ver imagem abaixo do plano do imóvel). Os quadrados, por sua vez, fornecem não só personagens, mas também elementos para a produção de histórias, que foram produzidas previamente em listas — de quadros, livros, mobiliário, animais, objetos, cores, etc. Os elementos em si, são depois emparelhados em duplas e distribuídos pelo prédio, seguindo uma lógica de grelha, do tipo puzzle de Sudoku. Para a passagem entre cada quadrado, Perec não segue a ordenação numérica, mas faz uso do chamado algoritmo do cavalo, do xadrez, que lhe permite saltar entre quadrados sem deixar rastos de aparente relação no discurso. Todas estas regras podem ser estudadas em pormenor, uma vez que Perec as forneceu, e nos dias de hoje podemos analisar as mesmas na net

Desta forma Perec tinha construído a verdadeira "máquina de fazer histórias", já que os espaços de habitação poderiam dar origem a tudo o que pudéssemos imaginar, e as regras fariam o resto funcionar por si.

3 – Apesar das dezenas de histórias contadas ao longo do livro, existe uma história central, que atravessa todo o livro, e se relaciona intimamente com o trabalho de Perec, e diz respeito à personagem de Bartlebooth, alguém tão rico que nada existia na vida capaz de lhe interessar, por isso encetou um projeto para se manter ocupado por toda a sua vida, este consistiria em: passar 10 anos a aprender a pintar a aguarela, de 1925 a 1935; depois passar 20 anos a viajar pelo mundo, pintando 500 aguarelas, que iria enviando para que fossem transformadas em puzzles, de 1935 a 1955; e por fim, passar os restantes 20 anos a reconstruir esses puzzles, após o que seriam reenviados para o local onde foram pintados, com uma lata de diluente, para que fossem destruídos, de 1955 a 1975.
Repare-se como o trabalho de Perec se vai aproximar do trabalho de Bartlebooth, a construção das telas e o seu recorte em puzzle, para que possam ser reconstruídas e esquecidas pelos leitores do seu livro.


Experiência de Leitura

A - Começar por dizer que se as histórias, individualmente, são interessantes e por vezes até bastante envolventes, na generalidade o processo de leitura de quase 600 páginas sem causalidade concreta entre as dezenas e dezenas de histórias, torna o processo bastante penoso. As regras criadas por Perec parecem só funcionar para si, enquanto criador e organizador dos espaços, já para o leitor, não ajudam nem servem qualquer propósito. 

Esta primeira constatação vem ao encontro de uma das minhas primeiras recusas da premissa de Perec, o puzzle de cartão, por o considerar vazio em termos de jogabilidade. Ou seja, o recorte das peças é irrelevante, já que todo o trabalho se centra na reconstrução mental da imagem em causa. Mas, Perec abre o livro defendendo que o puzzle que lhe importa é o de corte vitoriano, em que o criador do puzzle toma decisões sobre como e onde cortar as peças, ao contrário dos contemporâneos que são cortados por máquinas em peças iguais (ver imagem abaixo). Contudo, isso é mera ilusão, já que não decorre daí qualquer tipo de acrescento ao enigma visual. Repare-se que ou o recorte segue as formas concretas do desenho, e se revela muito facilmente (ver puzzle do mapa da Europa, abaixo), ou então segue modelos de recorte externos à representação (ver puzzle colorido e as formas dos recortes, abaixo) que acabam valendo o mesmo que fazendo uso do recorte automático. 

Efeitos do recorte: à esquerda, recorte mecânico; à direita, recorte manual

Puzzles de recorte vitoriano: à esquerda, um puzzle recortado seguindo com as formas dos países do mapa da Europa; à direita, um puzzle colorido e a imagem das suas peças constituintes, os recortes seguem formas externas às formas da representação final.

Da mesma forma, quando olhamos ao trabalho de Perec, na elaboração dos saltos entre histórias, que são as suas peças do puzzle, tanto faz que ele salte em L, como em Z, ou noutra forma qualquer, não se constrói qualquer causalidade daí, de modo que nada se ganha ou perde, é mero artifício vazio, tal como são os recortes de puzzle.

O algoritmo do cavalo, ou saltos em L. Imagem do filme de animação de Clarence Stiernet

Animação que mostra os saltos em L entre cada uma das peças de habitação do prédio de Perec

B – A relação entre Bartlebooth e Perec acontece na inconsequencialidade. Bartlebooth não tinha interesse por nada, concebeu todo um plano para apenas ter um propósito que o mantivesse vivo, de dia para dia, mas sem qualquer objetivo ou vontade de produzir qualquer resultado efetivo, antes pelo contrário, tudo o que resultasse deveria ser destruído. Perec, de certa forma segue a mesma ideia, criar todo um sistema altamente complexo de construção do romance que servisse apenas este em particular e mais nenhum, mas não objetivasse a nada mais do que a criação do próprio sistema.

Este ponto, é talvez o ponto alto do romance, já que nos lança na mais pura indagação filosófica, nos dois pontos que se sucedem:

B1. Deve um romance ter algo para dizer, ou deve constituir-se num mero enredo de eventos e personagens que nos ajudam a passar o tempo?

B2. Enquanto seres humanos e criativos que somos, devemos almejar a ter uma vida consequente? Devemos nos esforçar para deixar a nossa marca? Servir de exemplo e deixar um legado que sirva quem vem atrás? 

A edição portuguesa da Editorial Presença, de 1989, apresenta a belíssima tradução de Pedro Tamen


Conclusão

Olhando aos dois pontos, A e B, a resposta torna-se por demais evidente, apesar de eu só agora, após ter escrito estas linhas, ter visto essa evidência de forma cristalina. Assim, as histórias das nossas vidas não vivem da causalidade, porque não vivemos num mundo predeterminado, antes vivemos numa realidade regulada pelo acaso. Como tal, construir todo um conjunto de regras, com base num conjunto de crenças ou valores rígidos, para com isso chegar a produzir o nosso legado, seja para os nossos filhos ou para a humanidade, é totalmente inconsequente, para não dizer uma perda de tempo.

Georges Perec

Por isso, o título da obra, para a qual não se encontra explicação nas dezenas de histórias contadas, surge do resultado vazio da amálgama final. Perec, como todos aqueles que algum dia se dedicaram a criar algo, questiona aqui a razão essencial de todo o processo de criação humana.

De certa forma, o resultado deste texto liga-se ao que nos foi proposto pela Pixar, através do filme “Soul” (2020) de que aqui dei no dia de Natal. Contudo e paradoxalmente, aquilo que as duas obras fazem é ecoar pela Eternidade o pensamento de Epicuro.

dezembro 26, 2020

Design de Narrativa em Gabriel García Márquez

"Crónica de uma Morte Anunciada" (1981) pode ler-se como crónica, relato de eventos ocorridos, como o próprio título sugere, mas se melhor analisado poderemos ver que é um trabalho de narrativa experimental, como muito bem identifica Jane Alison na sua análise em "Meander, Spiral, Explode" (2019). Alison diz-nos que Márquez não conta uma narrativa linear, cronicando os eventos na sua ocorrência cronológica, mas antes o faz por meio de uma narrativa radial, expondo múltiplos elementos ao redor do evento e em direção ao clímax (ver imagem abaixo). À medida que ia lendo, fui concordando com Alison, e se tentei em parte compreender porque Márquez o fez, centrei-me mais em tentar perceber porque funciona para nós enquanto leitores.

Estrutura narrativa radial, uma proposta de Jane Alison

Se o relato dá conta de um assassinato consumado, logo nas primeiras páginas ficamos a saber: quem morreu e quem assassinou, assim como quando e porquê; ficando pouco para atiçar a curiosidade de quem lê, e no entanto seguimos atrás de Márquez sem qualquer problema, lendo sofregamente tudo, tentando entrar na cabeça de cada personagem que nos propõe, tudo para descobrir mais e mais sobre o "como"; porque é apenas isso que nos falta para fechar a história que se conta.

Mapa dos eventos de "Crónica de uma Morte Anunciada", criado pelo internauta JJ Marquete. Aqui podemos ver como todos os personagens e todos os eventos se ligam de forma centrípeta em relação à personagem principal de Santiago Nasar, o morto.

Enquanto lia, e tendo em conta o design da narrativa, fui-me sentido como no meio de uma pequena aldeia, ouvindo tudo e todos, aprendendo mais e mais sobre o como aconteceu. O crime é algo que nunca para de nos atrair, por mais que a nossa consciência tente dizer-nos que não nos diz respeito, é difícil passar ao lado de um acidente sem tentar olhar. Mas não é pela morbidez, na verdade o mesmo acontece quando o acidente não envolve feridos ou mortes, como um simples assalto. Por isso, o que temos é no fundo uma perturbação do estado das coisas, do padrão de normalidade, e a nossa ânsia ativa-se para perceber o que produziu essa alteração no padrão: o quê, quem, quando, porquê e claro como.

Inevitavelmente, isto prende-se com a nossa insaciável vontade de aprender, porque, evolutivamente, sobrevivemos melhor quanto melhor estivermos preparados, não só para lidar com os problemas, mas também para os antecipar e prever, medindo o alcance das suas consequências e evitando os seus potenciais danos.

E é disto que Márquez se aproveita, como no fundo aproveitam as histórias que se contam sempre, mas neste caso Marquez torna essa nossa avidez muito mais evidente porque poderíamos dizer que já sabíamos tudo o que havia para saber, contudo verificamos que assim não é, que à medida que as pessoas vão falando, vamos apreendendo dados desconhecidos sobre o sucedido e isso mantém-nos engajados, tentando encaixar os novos dados no modelo que já construímos sobre o que aconteceu e tentando compreender se se altera ou não a nossa perspectiva. Como se estivéssemos a tentar chegar a uma espécie de certeza absoluta sobre o sucedido. Enquanto o criador conseguir apresentar novos dados sobre o evento que possam de algum modo transformar o modo como pensamos que tudo aconteceu, a nossa atenção mantém-se e o interesse não desaparece.

dezembro 03, 2020

"O Som da Montanha" (1954)

De Kawabata ainda só tinha lido "Terra de Neve" (1948), e se tinha gostado não me tinha deslumbrado, dadas as expectativas colocadas por qualquer autor recipiente de um Nobel. Decidi continuar com "O Som da Montanha" (1954) por ser o livro escolhido pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo. Posso dizer que as obras se aproximam, ainda assim, em termos de mundo-história e sentimento imprimido, prefiro Terra de Neve, por sinal, o seu livro com mais edições e resenhas no GoodReads.

Estamos em 1954, pouco tempo após o final da Segunda Grande Guerra, a cultura é japonesa clássica, mas o foco de Kawabata parece ser exatamente a viragem que estava a acontecer nos costumes mais tradicionais do Japão, nomeadamente as relações entre casais, o divórcio e o adultério, e especialmente o modo como as gerações mais velhas lidavam com a transformação dos costumes que estava a ser operada pelos filhos.

É uma obra dramática, mas sem tragédia, o olhar japonês mais dado à reflexão tranquila impede esse caminho. Mas percebemos, ainda que à superfície, que as personagens sofrem, mais por não saber como lidar com o diferente do que propriamente por considerarem esse diferente errado. 

Mas, como disse a propósito de "Terra de Neve", é difícil para nós ocidentais e em pleno século XXI, descortinar a interpretação esperada por Kawabata na escrita e delinear dos comportamentos dos seus personagens. Não temos certezas das linhas vermelhas que estão ou não a ser ultrapassadas, por isso lemos tudo como se de uma realidade, um tanto indiferente, se tratasse, apesar de compreendermos, ou melhor sentirmos que de pessoas reais se trata.

outubro 08, 2020

Mantel e a criação de conhecimento pelo drama (Thomas Cromwell vol. 3, 2020)

A leitura deste terceiro volume — "O Espelho e a Luz" (2020) — foi um prazer imenso, tendo sentido a presença de Hilary Mantel sempre ali, no pé de cada página, como que construindo e abrindo caminho para o nosso deleite, com um texto dotado de imponente e virtuosa forma escrita, assim como de enorme detalhe histórico, garantindo a completa ressurreição de um passado esquecido. São três volumes, mas é um livro único, de 2000 páginas, que nos faz atravessar a vida de alguém que viveu como comum mortal no século XVI, conseguindo subir a pulso até ao topo do seu mundo, para terminar de forma brutal. A escrita, altamente elaborada, emana em si uma paixão enorme da autora por Thomas Cromwell, mas acima de tudo pelo trabalho que faz, corroborado pelas entrevistas que foi dando em que se percebe que viveu e respirou a obra durante todos estes anos. Termino a leitura da trilogia com grande admiração pela criadora, nomeadamente pelo engenho na construção criativa a partir de história deixada em meros relatos descritivos, esparsos e dispersos, assim como pelo investimento de 15 anos da sua vida na criação deste legado.

"Thomas Cromwell" (1534) por Hans Holbein e "Hilary Mantel" (2015) por Louise Weir

Em 2017 Mantel foi convidada pela BBC para criar um conjunto de lições, para as conceituadas Reith Lectures. O título escolhido por ela foi: "Resurrection: The Art And Craft", o que serve na perfeição para enquadrar o seu trabalho. Ao longo dessas cinco aulas, assim como das várias entrevistas, percebe-se que o objetivo de Mantel não é apenas escrever sobre um caso histórico, nem criar uma novela. Mantel objetiva mais alto, dizendo-se uma historiadora frustrada, acabou por tentar sê-lo na literatura, e de certa forma podemos dizer que o consegue. Esta trilogia, por ser novelizada, não pode ser vista como ato de historiar, no seu sentido académico, mas o trabalho e o resultado é de tal forma minucioso e colado à documentação histórica, que não se pode simplesmente ignorar. Isto é evidente na sua resposta à possibilidade de alterar factos históricos para intensificar o drama:

"I would never do that. I aim to make the fiction flexible so that it bends itself around the facts as we have them. Otherwise I don’t see the point. Nobody seems to understand that. Nobody seems to share my approach to historical fiction. I suppose if I have a maxim, it is that there isn’t any necessary conflict between good history and good drama. I know that history is not shapely, and I know the truth is often inconvenient and incoherent. It contains all sorts of superfluities. You could cut a much better shape if you were God, but as it is, I think the whole fascination and the skill is in working with those incoherencies." Mantel em entrevista na Paris Review, n. 212, Abril 2015

Por isso não admira a reação da academia britânica, nos anos recentes, com todo um revivalismo de livros e trabalhos à volta da pessoa de Thomas Cromwell, o que quer dizer que ela tocou em pontos chave do conhecimento histórico. No caso de Mantel, a historicidade serve apenas a verosimilhança, ela não está preocupada em ensinar como se passaram as coisas, ou definir com o máximo de certeza os elementos. Ela utiliza o conhecimento existente para de certo modo conseguir entrar pela história adentro e recuperar o sentir humano de quem viveu nesses tempos. A tal ideia de trazer de novo à vida as pessoas de um mundo anterior e dar-lhes voz. Mantel vê-se um pouco como uma "medium", um canal de ligação entre o passado, os seus fantasmas, e o mundo atual. 

"The contradictions and the awkwardness—that’s what gives historical fiction its value. Finding a shape, rather than imposing a shape. And ­allowing the reader to live with the ambiguities. Thomas Cromwell is the character with whom that’s most essential. He’s almost a case study in ­ambiguity. There’s the Cromwell in popular history and the one in academic history, and they don’t make any contact really. What I have managed to do is bring the two camps together, so now there’s a new crop of Cromwell biographies, and they will range from the popular to the very authoritative and academic." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

No fundo, podemos ver esta sua abordagem como um modo distinto de fazer História, por via da dramatização. Tal como na psicologia se usa o drama e o jogo de papéis para levar as pessoas a compreenderem-se melhor a si mesmas, julgo que a História pode usar da dramatização para conseguir chegar mais perto de quem fez o que é relatado nos registos. Porque os registos são na sua maioria listas, descrições, datas, quantidades, elementos soltos e dispersos. Claro que isso não é algo simples de fazer. Repare-se como ela descreve o processo:

"I was a bit surprised by my own process sometimes, because when you’re reading the historical record, I think you’re always looking for history in its purest form. You’re looking for inventories and lists, particularly lists of people’s possessions, and pages of account books, and the prices of things, because there’s no agenda behind those, so you can trust them in a sense.

And I suppose what surprised me quite early in the book was how those would come to life for me. What seems like just an item on a list, or the price of something in a column of figures, would spark off a whole train of thought." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

A académica, Mary Robertson, especialista em Thomas Cromwell, e a quem a trilogia é dedicada por Mantel, refere a sua admiração por esta forma concreta de ir além na produção de conhecimento:

“In some ways it takes a greater skill to work with everything that is known—and from that add your imagination to craft a convincing story—than it does just to make it up.” Mary Robertson no The Huntington, October 2012

Algo que não deixa de ser secundado pelo crítico do NYT, James Wood:

"If you want to know what novelistic intelligence is, you might compare a page or two of Hilary Mantel’s work with worthy historical fiction by contemporary writers such as Peter Ackroyd or Susan Sontag. They are intelligent, but they are not novelistically intelligent. They copy the motions but rarely inhabit the movement of vitality. Mantel knows what to select, how to make her scenes vivid, how to kindle her characters. She seems almost incapable of abstraction or fraudulence; she instinctively grabs for the reachably real." James Wood na New Yorker, Abril 2012

Eu sinto isto na leitura, mas sinto isto ainda mais nas várias entrevistas que fui lendo e vendo dela, no modo como o seu pensamento é ágil, rápido e incisivo. Numa entrevista, deste mesmo ano, pelo espanhol ABC podemos ler Mantel comparando o mundo de há 500 anos com o atual — reis e políticos, a peste e o COVID — e perceber como conhece bem o funcionamento das entrelinhas que regulam o poder e as sociedades. Num ponto, aprofunda a importância do romance histórico de forma muito arguta:

"Se abre una brecha entre lo que sabemos ahora y lo que los personajes sabían en su época. El historiador emplea la mirada retrospectiva, es la herramienta fundamental de su oficio, pero esa mirada puede hacer que sintamos, erróneamente, que somos mucho más listos que las personas que vivieron antes que nosotros. La novela histórica estimula la empatía, el ejercicio crucial de ponernos en el lugar de otro. Nos permite pensar sobre la responsabilidad individual, sobre cómo controlamos nuestra vida (o lo intentamos), sobre la causa y el efecto, sobre el destino, si es que existe tal cosa, y sobre qué consecuencias imprevistas pueden derivarse de nuestras acciones con el tiempo. Puede ser superficial o producir la ficción más profunda sin esfuerzo aparente." Mantel em entrevista ao ABC, Setembro 2020 

Ao terminar o livro, tive de respirar fundo, o adeus a Cromwell é de tal forma intenso e vivido, impossível de realizar por qualquer outro meio que não a literatura, que nos deixa ali estacados. Sim, o livro trata de política, do modo como o poder é manipulado pela retórica e pelo controlo sub-reptício dos atores envolvidos, mas o livro vai bastante além disso, dá-nos a sentir o modo como a vida humana trespassa tudo, como todos os nossos orgãos estão envolvidos. Não é mera cognição, na maior parte do tempo não se discute sequer o quê e o como concretos, mas apenas os sentires, os respirares. Daí que Mantel introduza imenso detalhe sobre roupa e têxteis, sobre cozinha e gastronomia, sobre o tempo e temperatura, sobre a decoração e as telas que se vão pintando. Mantel cria um mundo completo, e coloca os personagens dentro dele a "brincar", o que se passa além disso requer conhecimento histórico prévio nosso, ou pesquisa durante a leitura, mas nem sequer é vital. O foco não é saber quem era o Papa, ou o Imperador, ou Rei de França, mas é a vida tal como vivida naquele círculo restrito de personagens. Como alguns referiram, esta trilogia funciona como uma viagem ao passado, em que nos é dado a ver uma parte do que se passou, ou um espelho para esse passado como diz Mantel:

"But I’m interested in a way that as you go through your life, your memories change. It’s quite wrong to say that the past doesn’t change. It changes behind you, and every time you try to remember back, in a sense, you’re making a fresh version. What you’re doing is you’re holding up a mirror, and really, that’s why the book is called The Mirror and the Light, because it’s a mirror to the books that have gone before and it has fresh light." Mantel em entrevista, Glamour, March 2020

E talvez funcione tão bem porque Mantel manteve-se fiel a Cromwell toda a trilogia. O livro poderia ser uma grandiosa história recontada, com detalhes e perspetivas de múltiplas personagens, algo comum e que serve para nos oferecer uma análise menos enviesada, porque podemos comparar as diferentes perspetivas. Mantel não teve pudor em fixar-se detrás do olhar de um único personagem, e um personagem que os registos históricos tendem a mostrar como maquiavélico, logo muito pouco credível. Daí que tudo o que vamos vendo parece embater contra o que sabemos daqueles tempos, porque aquilo que estamos ali a viver (reviver) é pelos olhos de Cromwell. Ele pode ter sido o maior filho-da-mãe da história inglesa, mas na sua cabeça ele era um visionário e o maior benfeitor de sempre, e é com o isso que Mantel nos obriga a debater. Aliás, no primeiro livro deixei-me de tal forma seduzir que acreditei em tudo o que ele dizia, no segundo e terceiro livro, já ciente do que tinha na minha frente, comecei então a debater-me com o personagem, e tudo se torna ainda mais instigante. O que ele pensa, como os outros reagem a ele, de que o vão acusando, e como conseguimos nós interpretar tudo isso. Porque repare-se que nenhuma vez o narrador/autor, muito pouco presente, sai em defesa de Cromwell ou de qualquer outro, o trabalho aparece como se estivéssemos a assistir àquela realidade, mas pelos olhos dele, cabendo-nos identificar o que pode ser mais real ou menos real.

Diga-se que esta forma de contar histórias, apesar de estarmos diante de prosa, parece-se muito mais com o drama. Existe uma quase ausência de reflexão ou discussão por parte do narrador/autor e mesmo do próprio personagem através de quem vemos a realidade. Nós estamos dentro da cabeça de Cromwell, mas não vemos o mundo através dos seus pensamentos e reflexões, apenas o vemos através dos seus olhos. Ou seja, Mantel, ao contrário de Pessoa que nos atira para dentro do emaranhado de pensamentos de Bernardo Soares, coloca-nos imediatamente por detrás dos seus olhos. A narração descreve continuamente o momento presente, o que está a ser feito, a quem como e porquê. Vemos a ação a decorrer, como se Mantel estivesse a encenar o passado, e não a discorrer sobre ele. Mas nem por isso, ou talvez por isso, a escrita não deixa de ser altamente elaborada, e por conseguinte a leitura laboriosa no descortinar do que está a acontecer em cada momento. 

De certa forma, esta abordagem enviesada por um olhar e pelo modo presente contribuiu para a definição do estilo de Mantel e para criação de um engajamento continuo dos leitores, como ela explica:

"the writer knows the outcome, so does the reader - but the characters don’t. You have to persuade your readers to be in 2 places at once. They can’t suspend their knowledge of what happened – they’re above the characters, looking down on them. But at the same time, if you’ve done your job, they’re moving forward with the characters, inhabiting their world. The suspense grows in the gap; the reader wants to know not so much what happens, as how the characters will react when it happens. The reader has to hold his or her own knowledge in suspension – hold reaction back. That’s what creates tension. You see them rushing towards their fate – you know, you fear for them, but you can’t stop them." Mantel entrevistada pelo Iowa Review, Junho 2017

É por isso que apesar da história de Inglaterra me dizer pouco ou nada, menos ainda um tempo dessa que se tornou popular por intrigas do foro privado da vida de reis e rainhas, li até ao final e com tanto prazer. Não me interessava em particular saber mais sobre Henry VIII, Anne Boleyn, Anne de Cleves ou Thomas Cromwell, mas o mundo recriado por Mantel, de tão vívido, gerou uma impressão continua tão forte que o meu engajamento nunca se desligou. Aliás repare-se como é a própria autora a dizer isto sobre o tema histórico em questão:

"When I began work on the French Revolution, it seemed to me the most interesting thing that had ever happened in the history of the world, and it still does in many ways. I had no idea how little the British public knew or cared or wished to know about the French Revolution. And that’s still the case. They want to know about Henry VIII (...) the imagination is parochial. I couldn’t have picked anything less promising, from a commercial point of view, than the French Revolution." Mantel em entrevista na Paris Review, n.212, Abril 2015

setembro 03, 2020

Tragam os Corpos (Thomas Cromwell, volume 2)

A saga continua com grande desenvoltura, a descrição e o enredo funcionam em torrente tornando a leitura deste segundo livro muito mais rápida. Ajuda também o facto de Mantel ter aligeirado o labirintismo da escrita, é tudo bastante mais claro, ou então já aprendemos a respirar nas suas malhas. Por outro lado, fiquei um pouco desgostoso com a primeira parte na qual Mantel parece querer corrigir algum exagero do primeiro tomo no que toca a pessoa de Thomas More, e acaba por apontar o dedo a Cromwell. Passa mesmo a ideia que Mantel parece querer rever o que disse, talvez por ter sofrido duras críticas dos historiadores, não sei, mas sei que o seu Cromwell perde brilho, torna-se menos visionário e mais vingativo, afastando-me dele a ponto de a meio do livro dizer para mim que já não leria o terceiro. Contudo a segunda parte funciona num crescendo tão grande, imparável em direção à apoteose final, fazendo esquecer tudo o que de menos bom tinha encontrado.
"O Livro Negro" é a tradução portuguesa de "Bring Up the Bodies"

Contribui talvez para esta minha percepção mais crítica de Cromwell e benevolência com More, o facto de entre os dois livros ter revisto o filme "A Man for All Seasons" (1966) no qual Cromwell é muito mal tratado, e More é elevado a patamar de santo. Mas tudo isso se apaga porque este segundo tomo já não pertence a More mas a Boleyn. É ela quem sobe ao cadafalso, e assim percebemos, pela lógica, quem subirá ao cadafalso no final do terceiro volume.
Tower of London, local central da ação desta saga, para onde eram enviados os nobres para aguardar julgamento

Este livro tem as suas nuances, momentos altos, tal como por exemplo a discussão política sobre o que deve ou não deve fazer o Estado:

“It was too much for the Commons to digest, that rich men might have some duty to the poor; that if you get fat, as gentlemen of England do, on the wool trade, you have some responsibility to the men turned off the land, the labourers without labour, the sowers without a field. England needs roads, forts, harbours, bridges. Men need work. It’s a shame to see them begging their bread, when honest labour could keep the realm secure. Can we not put them together, the hands and the task? But Parliament cannot see how it is the state’s job to create work. Are not these matters in God’s hands, and is not poverty and dereliction part of his eternal order? To everything there is a season: a time to starve and a time to thieve. If rain falls for six months solid and rots the grain in the fields, there must be providence in it; for God knows his trade. It is an outrage to the rich and enterprising, to suggest that they should pay an income tax, only to put bread in the mouths of the workshy. And if Secretary Cromwell argues that famine provokes criminality: well, are there not hangmen enough?”

Mas talvez o ponto mais alto seja mesmo a descrição que Cromwell faz do modo como se gere a comunicação com um Rei, no caso particular com Henry VIII é genial. Claro que o génio aqui é Mantel, a forma como ela planeia e preenche e todas as frentes, e imagina o xadrez político em redor do Rei:

“As a child, a young man, praised for the sweetness of his nature and his golden looks, Henry grew up believing that all the world was his friend and everybody wanted him to be happy. So any pain, any delay, frustration or stroke of ill-luck seems to him an anomaly, an outrage. Any activity he finds wearying or displeasant, he will try honestly to turn into an amusement, and if he cannot find some thread of pleasure he will avoid it; this to him seems reasonable and natural. He has councillors employed to fry their brains on his behalf, and if he is out of temper it is probably their fault; they shouldn’t block him or provoke him. He doesn’t want people who say, ‘No, but…’ He wants people who say, ‘Yes, and…’ He doesn’t like men who are pessimistic and sceptical, who turn down their mouths and cost out his brilliant projects with a scribble in the margin of their papers. So do the sums in your head where no one can see them. Do not expect consistency from him. Henry prides himself on understanding his councillors, their secret opinions and desires, but he is resolved that none of his councillors shall understand him. He is suspicious of any plan that doesn’t originate with himself, or seem to. You can argue with him but you must be careful how and when. You are better to give way on every possible point until the vital point, and to pose yourself as one in need of guidance and instruction, rather than to maintain a fixed opinion from the start and let him think you believe you know better than he does. Be sinuous in argument and allow him escapes: don’t corner him, don’t back him against the wall. Remember that his mood depends on other people, so consider who has been with him since you were with him last. Remember he wants more than to be advised of his power, he wants to be told he is right. He is never in error. It is only that other people commit errors on his behalf or deceive him with false information. Henry wants to be told that he is behaving well, in the sight of God and man. ‘Cromwell,’ he says, ‘you know what we should try? Cromwell, would it not reflect well on my honour if I…? Cromwell, would it not confound my enemies if…?’ And all these are the ideas you put to him last week. Never mind. You don’t want the credit. You just want action.”

Enquanto lia estes livros fui também pensando o quão errado estamos quando pensamos que ser Rei, ou nobre, significa poder fazer tudo o que se quer. Ter acesso a tudo como mais ninguém. Ser nobre implica um tal espartilho de responsabilidades sociais que não deixa espaço para mais nada. Qualquer passo ao lado pode ditar a perda dessa nobreza, e o fim do aparente sonho cor-de-rosa. Ao longo destes dois livros percebemos como Henry VIII queria apenas um filho varão, mas toda a sua vontade, dinheiro e súbditos não eram suficientes para lhe dar o que mais queria. Percebemos também que Boleyn foi mais do que um capricho, foi uma necessidade imposta pelo espartilho das obrigações de ser-se Rei. Aliás, isto mesmo parece ter sido o que esteve na base da recente saída de Harry da monarquia britânica, pois se lá continuasse teria de obedecer a um conjunto tão apertado de protocolos que dificilmente se poderia considerar como uma pessoa livre.

Anne Boleyn in the Tower (1835) de Édouard Cibot

Mantel é brilhante na escrita, mas são os rasgos psicológicos que nos agarram que nos fazem sentir aquele mundo-história e nos permitem não só viajar no tempo mas aprender com as vidas de pessoas que à partida nada teriam que ver connosco. São homens e mulheres, não são deuses, carregados de fragilidades, receosos do dia de amanhã como qualquer outro mortal que foi posto neste mundo para todos os dias lutar pela sua preservação e sobrevivência.

Nota final para a tradução. A tradução do primeiro livro — Maria Beatriz Sequeira — está primorosa, a do segundo livro — Miguel Freitas da Costa — está boa, não posso dizer que seja inferior, mas senti-a diferente, não sei o quanto terá que ver com as próprias alterações introduzidas por Mantel no seu discurso. Mas se puxo este assunto é porque me desgostou a tradução do título. Se no primeiro se manteve um titulo inglês, ainda que sendo um nome, quem é que os autorizou a mudar o nome da obra criada por Mantel? Se em inglês se intitula "Bring Up the Bodies" e a frase aparece traduzida quase no final do livro como "Tragam os Corpos", porque é que o livro em português vai assumir o título de um capítulo muito anterior — O Livro Negro. Este título diz respeito a um conjunto de códigos de conduta real que ainda que imensamente relevantes, e relacionados com as tais questões de protocolo, mas distintas daquilo que é o objeto de destaque escolhido pela autora, e que está mais focado na apoteose por ela criada? Não se compreende, não deixando de irritar esta vontade de se procurar sobrepor ao autor.

Anne Boleyn, a única desta saga a ser deacapitada com espada, uma suposta clemência do Rei (autor desconhecido)

agosto 27, 2020

Vamos morrer sem os poder ler

A artista escocesa, Katie Paterson, criou, em 2014, o projeto Future Library com o apoio da cidade de Oslo, Noruega. Um projeto criado enquanto obra de arte pública e que consiste numa ideia revolucionária e altamente instigadora que vai decorrer ao longo dos próximos 100 anos, entre 2014 e 2114. A obra pretende colecionar trabalhos originais, nunca publicados, de escritores internacionais, um por ano, e preservá-los fechados até 2114. Para o efeito foi plantada uma floresta com mil árvores que serão usadas daqui a 100 anos para imprimir todos os 100 livros, e todos os anos é escolhido um autor de renome para escrever um novo livro para a biblioteca.

Os autores são selecionados pela artista, a quem é dado um ano para criar o texto, que pode ter o tamanho que quiserem, e entregá-la à biblioteca. Assim em 2014 Margaret Atwood iniciou o processo, tendo entregue o seu livro em 2015. A antologia completa começou já a ser vendida, para já num lote reduzido de mil certificados, no valor de cerca de 1000 euros. 

2014 – Margaret Atwood, Scribbler Moon

2015 – David Mitchell, From Me Flows What You Call Time

2016 – Sjón, As My Brow Brushes On The Tunics...

2017 – Elif Shafak, The Last Taboo

2018 – Han Kang, Dear Son, My Beloved

2019 – Karl Ove Knausgård, ainda não entregue devido ao COVID_19

2020 - Ocean Vuong, selecionado este ano

Deixo uma breve perspectiva sobre a ideia para o projeto que nos pode fazer refletir sobre tantas e tantas ideias: sobre os livros; as árvores que vão ser usadas; nós que não estaremos cá e que nunca os poderemos ler; e aqueles que lerão aquilo que nunca ninguém pôde antes ler...

“It is less egotistical than regular publishing too. So much of publishing is about seeing your name in the world, but this is the opposite, putting the future ghost of you forward. You and I will have to die in order for us to get these texts. That is a heady thing to write towards, so I will sit with it a while.”

“If you look at any literary epoch, who gets carried forward in time is a mystery, still. Melville sold about 1,000 copies of Moby-Dick and now he is the totem of American fiction. This is an antidote, to say regardless what happens in market trends, we have a record of what humans have found valuable, the voices we were interested in, for better or worse." Ocean Vuong, entrevista ao Guardian, 19.8.2020 

Deixo um vídeo, de 2014, no qual a artista explica mais promenorizadamente o que pretende com a sua obra: 

agosto 23, 2020

Thomas Cromwell, volume 1

“Wolf Hall” (2009) de Hillary Mantel, à semelhança de “Guerra e Paz” (1868) de Leo Tolstói, apresenta-se como ficção histórica, no sentido em que oferece primazia à criação de um mundo-história ficcional construído sobre alicerces de factos reais. O cenário escolhido por Mantel é o do reinado de Henry VIII, que ficou conhecido, além do divórcio com Catarina e o casamento, à revelia do Papa, com Anne Boleyn, por impor a Reforma Protestante em Inglaterra, terminando com a subjugação da coroa britânica a Roma, no século XVI. Iniciada na Alemanha por Lutero, a Reforma encontraria em Inglaterra dois rivais: Thomas More contra, Thomas Cromwell a favor. Mantel resolveu ir contra à corrente e criar o mundo de “Wolf Hall” a partir dos olhos da pessoa mais mal-amada, Thomas Cromwell, produzindo uma obra de grande relevo estético e interesse histórico. Este livro é apenas o primeiro volume de uma trilogia, mas podemos ver nele, desde já, uma forma de escrita única assim como uma representação bastante audaz da pessoa de Thomas Cromwell.

Thomas More e Thomas Cromwell, ambos pintados por Hans Holbein, o primeiro em 1527, o segundo em 1533

A Forma Escrita

Começando pela escrita, esta é não-linear, seguindo Joyce, Woolf ou Faulkner, mas não é fluxo de consciência, é algo que podemos aproximar mais de Lobo Antunes, no sentido em que o desenvolvimento narrativo se faz por cenas, aparentemente desligadas, que vão ganhando forma apenas à medida que vamos avançando e interligando as mesmas, como peças de puzzle, permitindo-nos reconstruir, mentalmente, e compreender o que nos está a ser apresentado. 

Seria suficiente para elevar o patamar de exigência à leitura, mas Mantel introduz ainda variações no verbo da narração e no ponto de vista. Uma narrativa é uma história que aconteceu, é passado, mais ainda quando falamos de há 500 anos atrás, no entanto Mantel narra tudo no tempo presente. Não diz “ele fazia” ou “atravessaram o rio”, mas antes diz “ele faz” ou “estão a atravessar”. A isto junta o facto de na grande maioria das vezes em que se quer referir a Thomas Cromwell, que serve o nosso ponto de vista na terceira-pessoa, se lhe referir apenas como “Ele”, o que com múltiplos personagens em cena baralha qualquer leitor, a não ser que tenha em mente que o “Ele” é sempre, em 95% das vezes, Thomas Cromwell.

Diria assim que mais do que a não-linearidade, é a ação sempre no presente e a menção ao protagonista, quase encriptada, como “ele”, que tornam a leitura laboriosa. Mas por outro lado, é também essa forma verbal e a constante referência a “ele” que criam uma forma de contar única que confere ao texto um maior poder imersivo. Por um lado, o presente cola-nos ao momento da leitura, e prende a nossa atenção perante algo que está a acontecer ali e agora, enquanto o “ele”, cria a sensação de estar sempre presente, ao pé de nós. 

Claro que para o aumento de imersão, ou de engajamento, contribui a dificuldade da leitura e isso é algo que a própria não-linearidade procura fazer. Os vários estudos que têm sido realizados dão conta de maior memorização e atenção das pessoas ao que é dito quando o texto é mais difícil de ler ou de compreender. A razão prende-se com a necessidade de despender mais energia na descodificação o que acaba por tornar o momento mais envolvente e ao mesmo tempo mais fácil de registar na memória.

O Olhar de Thomas Cromwell

É inevitável começar por ligar a profissão de Cromwell com a inicial de Mantel, ambos advogados, uma profissão ligada à litigação, ao lidar com as palavras e os múltiplos sentidos dados pelas pessoas, algo que fica bem presente no seguinte excerto:

“When you are writing laws you are testing words to find their utmost power. Like spells, they have to make things happen in the real world, and like spells, they only work if people believe in them.”

Mas mais importante do que isso é o facto de Thomas Cromwell ter nascido como um pobre e desconhecido, e desde essa condição ter chegado, sozinho, ao cargo mais poderoso do país. Um verdadeiro “self-made man”, um hino à meritocracia. Cromwell aprendeu muito, enquanto jovem, percorrendo metade da Europa. Tornou-se advogado, contabilista, poliglota e era dono de uma memória invejável, como se resume a determinada altura:

“It is said he knows by heart the entire New Testament in Latin, and so as a servant of the cardinal is apt – ready with a text if abbots flounder. His speech is low and rapid, his manner assured; he is at home in courtroom or waterfront, bishop's palace or inn yard. He can draft a contract, train a falcon, draw a map, stop a street fight, furnish a house and fix a jury. He will quote you a nice point in the old authors, from Plato to Plautus and back again. He knows new poetry, and can say it in Italian. He works all hours, first up and last to bed.”

Cromwell foi um polimata, um renascentista, alguém extremamente dotado com múltiplas competências, só assim se explica que tenha conseguido elevar-se numa hierarquia na qual o sangue tudo determinava. Se não tinhas brasão de família, não existias, simplesmente era impossível ser-se considerado para o que quer que fosse. No entanto Cromwell conseguiu tornar-se no homem mais temido de toda a Inglaterra. A sua capacidade para persuadir os outros a fazerem o que pretendia era infindável, e não se fazia de meras palavras, mas de um conjunto de estratégias de comunicação, verbais e não verbais, assim como de silêncios, ações e inações. Cromwell era aquele que tudo observava, compreendia, calculava e exprimia. A sua visão do mundo era como a de um jogador de xadrez, sempre em jogo.  

“One of the things I’m really exploring is the universal question of what’s luck? What’s fate? Does anybody make their own luck? How far can you write your own story? And he’s someone whose whole career ought not to be possible. But at some point in early middle age, he just grabs the pen and starts writing it.” [Mantel em entrevista ao The Guardian, 22.2.2020]

Este modo de estar é o que explica a forma de escrita adotada por Hillary Mantel. A não-linearidade e o tempo presente, não são meras decorações estéticas, a forma reflete a personalidade de Cromwell, alguém que era quase impossível de descodificar, alguém que estava sempre presente quando era preciso, alguém que nunca era o centro, mas era sempre “ele” que estava lá para o que fosse necessário. A memória e o conhecimento imensamente detalhado de todos e tudo, tornou-o numa peça central, primeiro para o cardeal Wolsey, e depois para o rei Henry VIII, era ele quem lhes valia, sendo muito mais do que um braço direito. Como disse Mantel em entrevista:

"I am interested in the fact that in this era, kingship is coming into its full glory, in England and elsewhere; kings are insisting on their godlike status, their divine appointment. But who really has the power? Increasingly, it’s not the man with the sceptre, it’s the man with the money bags.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

Por outro lado, a personalidade e a ação de Cromwell, tal como trabalhada por Mantel, abre todo um novo mundo de perspectivas, mostrando uma Inglaterra a caminho do humanismo, veja-se mais este excerto da entrevista:

 “When we look at what connects that age with this, I am interested in Cromwell’s radicalism; in the tentative beginnings of the notion that the state might take a hand in creating employment, that the economic casualties of the system deserved practical help; that poverty has human causes and is preventable, rather than being a fate ordained by God. I am disturbed to think that we might be going backward in this regard, back to stigma and fatalism and complacency.” [Mantel em entrevista à Historical Novel Society]

A Rivalidade entre More e Cromwell

Se não bastasse o trabalho realizado por Mantel sobre Cromwell, o outro ponto historicamente inovador relaciona-se com a apresentação de Thomas More que é quem nos serve o climax deste primeiro volume. More é relembrado como o contrário de Cromwell, também advogado, mas um grande académico, respeitado por toda a universidade Europeia, autor de "Utopia" (1516). Dono de uma dignidade irrevogável, morreu como Sir, tendo sido canonizado em 1935, sendo hoje referenciado como Santo. Para o público em geral, o filme de 1966 "A Man for All Seasons" dá conta da importância da sua pessoa. 

Contudo, o interessante da abordagem de Mantel é quase virar a leitura de ambos os Thomas, ao contrário. Mantel dá conta de atos terríveis cometidos por More, de verdadeira inquisição, com a defesa e aplicação de tortura e fogueiras de hereges para todos os que decidissem abraçar a Reforma Protestante. No fundo, a grande questão desta obra está longe de ser o divórcio e a concubina, mas é antes a Igreja, Inglaterra e o humanismo. A humanização da vida pública que deixa para trás os misticismos religiosos. Repare-se como Mantel dá conta das acusações a Cromwell de que ele teria destruído os grandes mosteiros e conventos ingleses:

"‘If you ask me about the monks, I speak from experience, not prejudice, and though I have no doubt that some foundations are well governed, my experience has been of waste and corruption. May I suggest to Your Majesty that, if you wish to see a parade of the seven deadly sins, you do not organise a masque at court but call without notice at a monastery? I have seen monks who live like great lords, on the offerings of poor people who would rather buy a blessing than buy bread, and that is not Christian conduct. Nor do I take the monasteries to be the repositories of learning some believe they are. Was Grocyn a monk, or Colet, or Linacre, or any of our great scholars? They were university men. The monks take in children and use them as servants, they don't even teach them dog Latin. I don't grudge them some bodily comforts. It cannot always be Lent. What I cannot stomach is hypocrisy, fraud, idleness – their worn-out relics, their threadbare worship, and their lack of invention. When did anything good last come from a monastery? They do not invent, they only repeat, and what they repeat is corrupt. For hundreds of years the monks have held the pen, and what they have written is what we take to be our history, but I do not believe it really is. I believe they have suppressed the history they don't like, and written one that is favourable to Rome.’"

A questão que move Cromwell não é teológica, saber se Deus existe ou não, se o Papa está investido de poderes divinos ou não. Cromwell não foi um académico, era advogado e contabilista. Mais, ele era um self-made man, alguém vindo do nada, ciente do que esse nada representava. O que o movia era conseguir obter mais e melhor, mas não apenas para si. Cromwell ajuda imensas pessoas, financeiramente e de muitas outras formas. Cromwell traz para casa crianças que perderam os pais, ou que se encontram abandonadas, mulheres perdidas, dá-lhes um teto, não para as explorar, mas para as fazer florescer, como diz a certa altura:

 “You learn nothing about men by snubbing them and crushing their pride. You must ask them what it is they can do in this world, that they alone can do.”

Cromwell fez isto porque apreendeu o mundo que habitava como ninguém, compreendeu que o mundo era muito mais do que aquilo que a Igreja queria vender, ou que a cor do sangue corrente nas veias era igual para todos. Cromwell elevou-se ao compreender que aquilo que fazia mexer o mundo era algo muito mais direto e efetivo do que o sangue ou a espiritualidade, como faz neste excerto: 

“‘They are my tenants, it is their duty to fight.’
But my lord, they need supply, they need provision, they need arms, they need walls and forts in good repair. If you cannot ensure these things you are worse than useless. The king will take your title away, and your land, and your castles, and give them to someone who will do the job you cannot.’
‘He will not. He respects all ancient titles. All ancient rights.’
‘Then let's say I will. Let's say I will rip your life apart. Me and my banker friends.
How can he explain that to him?’
'The world is not run from where he thinks. Not from his border fortresses, not even from Whitehall. The world is run from Antwerp, from Florence, from places he has never imagined; from Lisbon, from where the ships with sails of silk drift west and are burned up in the sun. Not from castle walls, but from counting houses, not by the call of the bugle but by the click of the abacus, not by the grate and click of the mechanism of the gun but by the scrape of the pen on the page of the promissory note that pays for the gun and the gunsmith and the powder and shot.'”


Claro que toda esta visão magnânima de Cromwell faz levantar muitas dúvidas, e alguns estudiosos referem mesmo que comporta falsidade. Numa entrevista ao The Guardian, John Guy, um dos mais reputados historiadores da época dos Tudor, ataca Mantel, aceitando as suas qualidades como escritora mas desprezando a visão histórica por si apresentada. Para John Guy, Mantel deixou-se levar por relatos sem credibilidade, de pessoas que tinham interesses e não diziam a verdade, mas apenas o que lhes interessava. Por outro lado, se ouvirmos outros académicos, como Diarmaid MacCulloch, vamos perceber o quão certa Mantel pode estar. Na verdade, Mantel não é historiadora, nem se assume enquanto tal, mas se existe algo que este seu livro demonstra é o modo como a monarquia e o Estado funcionavam, a política sem si, o quanto era decidido por jogadas assentes na mentira, bluff e suborno, e o quanto tudo isso faz parecer tudo uma grande ilusão, com o sentido da verdade a esfumanr-se.


Sendo a leitura laboriosa, deixo algumas ligações que ajudarão a preparar a mesma:

The World of Wolf Hall, A reading guide to Hilary Mantel’s Wolf Hall and Bring Up the Bodies,  2020

A Man for All Seasons, 1966, de Fred Zinnemann (trailer)

The Other Boleyn Girl, livro de Philippa Gregory 2001 ou filme 2008 com Natalie Portman e Scarlett Johansson (trailer).

. Thomas CromwellThomas More e Henry VIII

. Reforma protestante

. A BBC fez uma série (2015) a partir do livro, pode valer a pena ver no final.


Nota: texto usado no original, em inglês, por facilidade de transcrição. Lido na versão portuguesa, da Editora Civilização.

agosto 15, 2020

Minha Ántonia (1918)

Foi o meu segundo livro de Willa Cather (tinha lido "A Casa do Professor") e foi mais uma excelente leitura. A autora possui uma forma particular de dar a ver, sentimos ao lê-la como se estivéssemos diante de uma tela em movimento, em que tudo acontece num tempo específico próprio da ficção contada, delimitada pelo que a autora quer dizer e mostrar. Nem sempre a emoção segue o brilho da poética escrita, mas isso é assim porque Cather claramente restringe a emocionalidade. Facilmente poderia dramatizar e elevar o sentido de tragédia, mas não o faz por opção, procurando manter assim a sua tela delimitada e oferecendo-nos um recorte muito particular de uma época e lugar.

Este trabalho de Cather juntamente com "Butcher's Crossing" de John Williams levaram-me a conhecer um Oeste americano muito diferente daquele que tinha aprendido a amar em criança vendo filmes intermináveis de cowboys. São duas janelas muito distintas sobre um mesmo território e conjunto de pessoas, mas que se complementam na perfeição.

Planícies do Nebraska, para onde migraram muitos europeus da Escandinávia e da Rússia

Deixo um excerto brilhante:

"Anos mais tarde, quando os dias de pastagem a céu aberto tinham terminado e a erva vermelha fora sistematicamente lavrada até quase ter desaparecido da pradaria; quando todos os terrenos se encontravam vedados e as estradas deixaram de ser completamente desorganizadas e passaram a seguir os limites estabelecidos entre os terrenos, a campa do Sr. Shimerd continuava lá, rodeada por uma vedação de arame já meio frouxa e com uma cruz de madeira pintada de branco. Tal como o meu avô previra, a Sra. Shimerd nunca chegara a ver as estradas passarem por cima da cabeça dele. A estrada que vinha do norte curvava ligeiramente nesse lugar a este e a estrada que vinha do oeste desviava-se um pouco para sul; pelo que a campa, com a sua vegetação vermelha alta que nunca era cortada, mais parecia uma pequena ilha; e no lusco-fusco, sob uma Lua Nova ou um céu estrelado, as estradas de terra costumavam parecer pequenos rios cinzentos fluindo ao largo da mesma. Aquele lugar comovia-me e era o meu sítio favorito em toda a região. Encantava-me a superstição obscura, a intenção expiatória que colocara a sepultura nesse lugar; e acima de tudo adorava o espírito que não pudera cumprir a sentença — o erro da definição dos limites dos terrenos, a clemência das brandas estradas de terra ao longo das quais as carroças com destino a casa ribombavam depois do pôr do sol. Estou certo de que nunca um condutor cansado passara pela cruz de madeira sem dizer uma prece por quem ali dorme."

Willa Cather (1918) “Minha Antonia” P.85


agosto 03, 2020

O irmão "Lebensborn"

O livro "Meio-Irmão" (2001) de Lars Saabye Christensen tem dois grandes atributos, a voz interior do personagem principal, Barnum, que nos dá a sentir com particular intensidade e profundidade a vida na Noruega ao longo de toda a segunda metade do século XX. Este atributo funciona no suporte da saga familiar e coming-of-age contribuindo para a universalidade e consequente interesse internacional. Contudo esse interesse não tem comparação com o sucesso obtido no país, onde foi fortemente aclamado e recebeu vários prémios, e a razão de o ser é a existência de um segundo atributo que tem que ver com o contexto histórico da própria Noruega no pós-Segunda Grande Guerra.
O motivo que lança toda a trama, a violação da jovem Vera, tem uma leitura histórica na Noruega que não tem em mais lado nenhum, está completamente ausente de análises críticas francesas, inglesas ou americanas (L'ExpressThe GuardianSan Francisco Chronicle, em defesa destes críticos podemos dizer que escreveram as suas análises em 2004, quando este tema era ainda pouco ou nada conhecido fora da Noruega), não tendo encontrado referências mesmo no Goodreads, pelo menos em português ou inglês. A violação acontece no exato dia em que a guerra terminou, 8 maio 1945, um dia muito feliz em toda a Europa, incluindo na Noruega, contudo, nem tudo o que estava em marcha termina porque se anuncia o fim. Quando os alemães invadiram a Noruega, os seus soldados receberam ordens para engravidarem o maior número de norueguesas possível. O programa formal alemão, com a designação Lebensborn ("fonte da vida") defendia que como povo nórdico, deteriam sangue verdadeiramente ariano, por isso era importante fertilizar. Mas isso foi apenas a primeira parte do filme de horror, quando os alemães foram mandados embora, as mulheres que ficaram sozinhas com filhos dessas violações ou pseudo-relações, foram ostracizadas, muitas delas tiveram de abandonar o país, sozinhas, com as crianças. 
Imagem do videojogo "My Child Lebensborn" (2018) (análise), em que ajudamos uma criança que vive com uma senhora que o adotou na busca pelos seus pais (o pai alemão foi-se embora, a mãe norueguesa não o quer).

Descobri este mesmo assunto apenas há 2 anos, quando saiu um pequeno jogo documental norueguês, "My Child Lebensborn" (análise do jogo). Agora, por causa de Christensen, fui procurar mais informação e fiquei a saber que o livro saiu na Noruega quando se começou a discutir o perdão do Governo às vítimas dessa ostracização, em 2001, um perdão formal que só chegaria 18 anos depois, na comemoração dos 70 anos da Declaração dos Direitos Universais do Humanos (fonte). Mais, que as mulheres não foram apenas mandadas emboras, muitas, assim como os seus filhos, foram institucionalizadas, tendo nessas instituições continuado a sofrer abusos sexuais, e as crianças idem, sendo usadas como cobaias ou ainda torturadas — algumas eram atadas às camas durante 16 horas por dia, obrigadas a comer à força, se vomitassem tinham de comer o próprio vomitado (fonte). Lendo isto, o guião cinematográfico que surge quase no final, para o suposto filme “Engorda”, ganha uma dimensão nova e fortíssima, muito maior do que o simples e fácil contraponto com “Fome” de Hamsun. Aliás, podemos juntar a esta leitura o facto da avó de Barnum iniciar a obra a queimar os livros de Hamsun por causa do obituário que ele tinha acabado de escrever a Hitler.
Os nazis mandaram criar maternidades para receber as mulheres grávidas dos soldados e os seus filhos. Provavelmente recebendo tratamento preferencial, o que serviria para aumentar o ódio dos noruegueses após o fim da guerra.

Um exemplo famoso, que encontrei agora também, destas crianças é Anni-Frid Lyngstad, cantora dos Abba, filha de uma norueguesa e de um alemão, que no fim da guerra, foi obrigada a emigrar com a mãe para a Suécia, tendo perdido a mesma com a 2 anos e ficado órfã na Suécia onde cresceu. Ela foi um dos rostos do ativismo norueguês na exigência de reparações e pedido de desculpas (fonte).
Anni-Frid Lyngstad, membro dos Abba

Contextualizados historicamente, torna-se mais fácil, ou diferente, compreender o que Christensen está a fazer. Muito do que parecia totalmente desprovido de uma causa, e eu confesso que cheguei a invocar Tchékov ("Nunca se deve colocar uma espingarda carregada em palco se não for para a disparar"), porque Lars parecia lançar os eventos e não querer dar explicações. Parecia querer apenas gerar confusão na nossa cabeça, abrindo conflitos, mas não identificando o quem ou porquê. Contudo para compreender era preciso saber, ser-se norueguês ajudaria, não o sendo obriga-nos a procurar, a ir atrás da História daquele país. Quando chegamos ao substrato que suporta tudo aquilo que acabámos de ler, sentimos um baque enorme. Parece impossível, e por o parecer é que Lars teve de escrever um livro que por vezes borda o absurdo. O tom é cómico, mas não se pode qualificar de comédia-negra, talvez antes de comédia surreal, porque, também talvez, não fosse possível lidar com tamanha tragédia de outro forma. 

Claro que podemos apontar o "dedo" a Christensen. Ele coloca-se a jeito na construção de confusão, sendo a mais flagrante, a colagem de uma característica física do violador (um dedo cortado) ao homem com quem Vera acaba mais tarde por casar e ter o segundo filho, Barnum, o meio-irmão de Fred. Seria então violador um alemão em fuga, ou teria sido um simples norueguês mas altamente perverso? Fico com a ideia que para Christensen não era suficiente a ideia do violador alemão abstracto, porque na verdade aquelas mulheres ao serem ostracizadas foi como se fossem violadas uma segunda vez. Por isso, Christensen parece querer colocar o dedo bem dentro da ferida, com esta confusão de dedos cortados, apontando o “dedo” aos alemães, mas também a toda a perversidade norueguesa.

Ao longo do livro, o autor, insistentemente e pela voz de mais do que um personagem, diz: "Não é o que vês que é o mais importante, mas o que pensas que vês." Esta frase dá conta do que vamos presenciando ao longo de todo o livro, e recorda-nos que não chega ver, é preciso refletir, é preciso interpretar. Alguns críticos, muito erradamente, viram na ausência de explicações de Lars, um sentido existencialista, de que a vida é assim porque nem tudo pode ser explicado. Ora Lars, vai muito além disso, ele é verdadeiro pós-modernista, obriga o leitor a trabalhar para desconstruir sentido, para compreender. Não basta abrir o livro e ler, aceitar tudo como contido naquelas páginas e imagens, é preciso ir atrás, trabalhar as ideias e oferecer-lhes substrato para as poder interpretar. Só assim podemos evitar a ilusão.

julho 01, 2020

Universos de fantasia-científica

“Quinta Estação” (2015) é o primeiro volume da trilogia “Terra Fraturada” da escritora americana N. K. Jemisin que se tornou numa espécie de recordista ao ser a primeira mulher negra a receber um prémio Hugo e o primeiro autor a receber 3 prémios Hugo em anos consecutivos, exatamente com esta trilogia — em 2016, 2017 e 2018 — sendo considerada "indiscutivelmente o escritor especulativo mais importante da sua geração". Se isto não chegar, posso ainda dizer que a formação de base de Jemisin é a Psicologia e que ela tende a escrever suportada em ciência. Aliás, foi esta última parte que me fez embarcar na sua leitura, após perceber que os seus mundos-história operavam num domínio que podemos definir, de forma oxímora, como fantasia-científica.


Desde o início do livro, Jemisin é bastante clara no desenho do universo, apresentando-o aos poucos, mas sempre suportado em lógica e racionalidade. O mundo-história é constituído por uma realidade alternativa na qual o planeta em que os humanos, e outras espécies, habitam atravessa constante agitação sísmica, provocando em ciclos de centenas de anos o apagamento de civilizações inteiras, fazendo com que as gerações seguintes praticamente desconheçam as anteriores. Esta premissa abre espaço para um mundo de possibilidades que colocam em conflito o racional de um desconhecido que garante o sentido mágico que a fantasia tanto preza. Pode-se dizer que o universo criado oferece ciclos continuados de ambientes pós-apocalípticos, aproximando-se da tendência atual do uso da figura do pós-apocalipse mas exacerbando a mesma para explorar os seus efeitos no ser humano.  
Mapa do Sossego, o planeta em que se desenrolam as histórias

E é exatamente aqui, no campo dos personagens, que Jemisin eleva a qualidade do discurso no género, menos habituado à dramatização psicológica, para oferecer a cada um dos personagens todo um historial, variabilidade moral e profundidade emocional. Estamos muito longe da mera premissa que puxa o enredo e faz seguir as aventuras, como a necessidade de descobrir a origem de uma qualquer força, a conquista de um qualquer território, ou o regresso do bem/paz ou equilíbrio, mais importante do que isso é conhecer aquelas pessoas: porque estão ali e porque se comportam daquela forma. Neste sentido, a obra acaba fugindo bastante aos cânones do género, já que se aproxima muito mais do tradicional romance. Os personagens vivem em realidades de relações sociais complexas, em que temos dominadores e submissos, em que a opressão é uma constante e cabe à narrativa levar-nos compreender como funcionam as desigualdades e como lidam as pessoas com as mesmas.

Tendo em conta o enfoque nas relações sociais e sua psicologia, o mundo criado por Jemisin é, no âmbito do nosso mundo contemporâneo, imensamente progressivo, algo que em tempos de grande polarização política, e provindo de uma autora americana negra dá conta de uma forma de estar reflexiva e preocupada com o mundo real que habitamos. Temos protagonistas negros, mulheres, homossexuais, transgéneros e até relações poliamorosas, tudo servido como parte de um universo perfeitamente lógico e natural. A autora tem perfeita noção dessa polarização, conhece fenómenos como o GamerGate, e a própria tem vindo a ser alvo dos mais diversos ataques à medida que vem ganhando prémios e tornando-se mais conhecida. Por isso os universos por ela criados não são inocentes, sendo ela a primeira a admitir que a criação de mundos-história por criativos serve na criação de mitologia e modelos mentais que os leitores utilizam para interpretar o mundo. Por isso, podemos dizer que estes seus livros contribuem para uma espécie de ativismo, no qual Jemisin reflete sobre o mundo que habitamos e oferece alternativas que nos questionam sobre muito daquilo que damos por adquirido nesta nossa realidade.


Entrando na leitura propriamente dita, podemos dizer que “Quinta Estação” começa por parecer algo estranha, dada a quantidade de factos de uma realidade que nos é estranha, ao que acresce uma narração a três vozes. Mas ao fim de meia-centena de páginas estamos ambientados e o universo começa a ganhar forma na nossa cabeça. A história conta-se no presente, mas uma das vozes dá-se a conhecer numa rara segunda-pessoa que sabe bastante mais sobre o antes e o depois do que se vai contando. Jemisin é bastante hábil a coser as diferentes vozes e a construir os arcos de cada personagem, ainda que me pareça que com este quadro teria sido possível criar um pouco mais de clímax, perto do final, com a junção das três narrações. Contudo, emocionalidade não falta ao longo de todo o livro, com as diferentes espécies a darem conta das castas e classes sociais e das opressões vividas, assim como dos comportamentos mais impróprios que nos incomodam, não tanto pelas figuras representadas, mas antes por conhecermos a base societal que serviu de inspiração à criação dessas figuras.

Voltando à ideia da fantasia-científica, diria que isto é talvez aquilo que tende a distinguir os universos da Marvel e da DC ou de Star Wars e Star Trek. Na Marvel as histórias que suportam as origens de cada um dos heróis tem normalmente por base uma explicação científica, sejam as transformações radioativas sejam as mutações genéticas da biologia evolucionária. Neste sentido não admira que as histórias passadas ao cinema tendam a focar-se repetitivamente nessas origens, já que isso é o que verdadeiramente interessa nos personagens, e não as suas repetitivas aventuras rocambolescas. Já no caso de Star Trek, o foco tende a estar na compreensão da diferença entre espécies, na exploração dos traços alternativos daquilo que poderíamos ser enquanto espécie, e não meramente das histórias de luta entre o bem e o mal que se repetem sem fim, e das quais pouco ou nada podemos retirar. É isso que Jemisin faz aqui, foca-se nas origens do seu mundo e dos seus personagens e procura explorar as diferenças, a partir das quais cria espelhos de nós próprios que nos obrigam a refletir sobre as sociedades que criámos.

Vale a pena ver o discurso de Jemisin na receção do terceiro prémio Hugo, e se tiverem vontade de compreender melhor como se criam estes universos, aconselho vivamente o workshop que ela deu no ano passado na comemoração dos 25 anos da revista Wired, no qual ficarão a saber do gosto, e claro influência, que têm tido videojogos como "Mass Effect" no seu trabalho.


Imagens do Workshop de Jemsin na Wired 25, explicando a conceptualização da criação de mundos (world building) nas suas formas Macro e Micro.


Análise do segundo volume.
Análise do terceiro volume.