janeiro 17, 2021

Do não-dizível por Clarice Lispector

Ler “A Paixão Segundo G.H.” (1964), de Clarice Lispector, é como ler o tom de Beckett traduzido pela poética de Pessoa. Nada aqui é convenção, tudo é experimental, não existe princípio, meio, nem fim, porque existem apenas interrogações. Interrogações que se vão abrindo como matrioskas, de onde vão saindo novas questões que como borboletas voam para longe sem aguardar por resposta. É uma obra carregada de existencialismo, mas mais do que isso, é uma obra confessional, recorda-nos Santo Agostinho, pelo confronto das ações passadas com os julgamentos do presente e as punições do futuro. Mas vai mais fundo, pela dor que Lispector imprime em G.H. que nos recorda a dor a que Von Trier submete C.G. em “Antichrist” (2009).

Porque não se dão respostas, nem se fecham as ideias que se vão abrindo, esta é uma obra, por excelência, aberta, no sentido de Eco. Lispector fala-nos a partir do “inexpressivo” que ela qualifica como “entre o número um e o número dois”, “entre duas notas de música”, “entre dois fatos”, “entre dois grãos de areia” em que “existe um sentir que é entre o sentir”. Ela fala a partir do não-dizível, esforçando-se, mas dizendo “não tenho palavras para exprimir”, porque não faz sentido, e “se fizer sentido é porque erro”. Por isso, cabe ao leitor encontrar o sentido e fechar a “obra aberta” dentro de si.

A um terço do livro comecei a acusar algum cansaço, percebia o que Lispector estava a fazer, mas sentia falta de amarras para me agarrar. Deambular pelo meio de ideias, sentires, dores, culpas é algo que todos nós fazemos, é aquilo que o nosso cérebro faz continuamente, mas que assim que nos damos conta, o obrigamos a refrear e a ganhar uma direção, a encontrar um sentido, objetivo ou linha. No meu caso, foi só perto do meio do livro que encontrei a ponta do novelo que me permitiu começar a ordenar e a organizar todos aqueles espaços-tempo, até ali aparentemente "neutros". E não foi a barata, ainda que seja ela quem serve a G.H. para se abrir, para então nos falar da sua interrupção voluntária de gravidez.

Quando bati na enunciação deste facto, parei e questionei tudo o que tinha lido, no livro e fora dele. Não recordava alguém ter falado disto, por isso procurei, e ainda bem porque encontrei o artigo, “Re(leitura) do romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector: o aborto voluntário de G. H. simbolizado na morte de uma barata”, de Maria De Fatima Do Nascimento, da UFPA, na Revista Brasileira em Literatura Comparada. Neste artigo, Nascimento dá conta da tal ausência de menção ao facto por grande parte da crítica, algo que me pareceu incompreensível. Continuando a leitura e chegando ao final, acabei percebendo melhor o porquê essa ausência. 

Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia também não saberei me arriscar a morrer sozinha, morrer é do maior risco, não saberei passar para a morte e pôr o primeiro pé na primeira ausência de mim – também nessa hora última e tão primeira inventarei a tua presença desconhecida e contigo começarei a morrer até poder aprender sozinha a não existir, e então eu te libertarei. Por enquanto eu te prendo, e tua vida desconhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que sem a tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri. No tamanho da verdade?”

Na verdade, a IVG acaba sendo apenas mais um estímulo, tal como tinha sido a barata, para tudo o aquilo de que Lispector fala. Ou seja, existe aqui muita mágoa e raiva localizada, mas essa serve para abrir a círculos maiores de análise e indagação da condição humana. Lispector não se encerra, antes pelo contrário, ela parte do nada, do entre-coisas, para chegar à “transcendência, que é a lembrança do passado ou do presente ou do futuro”, porque o “meu grande desconforto nisso tudo tinha sido o de sentir que, por mais longa que fosse a série de finitos, ela não esgotava a qualidade residual do infinito.


Nota GoodReads.

3 comentários:

  1. Lindo :) Lispector é uma autora «matrioska» cheia de tantas outras...

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    1. Muito enigmática, e isso ajuda muito a criação de uma aura particular, mais ainda quando os livros são tão bons :)

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  2. sem dúvida. Há uma linguagem muito próxima da magia de Guimarães Rosa :)

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