Não me vou alongar muito na análise de Antichrist (2009) acima de tudo porque o meu grau de admiração pelo trabalho de Lars Von Trier foi igualado pelo sentimento de estupefacção. Decididamente não é uma obra para pessoas sensíveis, o impacto de todo o filme, a força bruta de algumas cenas impossibilitam que se passe pelo filme de modo indiferente. Não vou entrar em detalhes da mensagem, interessa-me, como quase sempre os seus aspectos mais formais e de criação.
Poderia pensar-se que estava num dia de maior sensibilidade mas para não deixar qualquer réstia de dúvida, antes de ver Antichrist tinha estado a ver Eden Lake (2008) de James Watkins um dos filmes de terror mais eficientes dos últimos tempos e em termos de verdadeiro terror só comparável a Frontière(s) (2007) de Xaviens Gens. Posso dizer assim que Antichrist supera o terror desenvolvido por estes dois filmes, ainda que de um modo totalmente distinto dado o carácter sublime de vários pontos: narrativa, realização, performance e cinematografia. O terror está longe de ser gratuito, está longe de aparecer como algo estilizado e desenhado apenas para estimular as emoções. O terror é aqui algo natural, que vem de dentro da psique dos personagens de um modo perfeitamente plausível e nos assalta através de choques naturalmente criativos.
Quando refiro sublime sobre os quatro elementos deste filme acima, digo-o com toda a convicção. O filme começa por entrar por nós adentro com uma estonteante cena que nos arrebata pela fotografia, o magistral contraste preto-e-branco de sombras e brilhos conseguido por Anthony Dod Mantle. De sublinhar que o filme foi inteiramente rodado em digital com recurso à famosa camara RED One em conjunto com a Phantom HD para os planos ultra-lentos. Mantle já antes foi reconhecido ao receber o Oscar para melhor cinematografia com Slumdog Millionaire (2008). Esta cena inicial é uma das mais belas aberturas do cinema de sempre com a fotografia colada numa música angelical sublinhando tudo o que se vai passando à frente dos nossos olhos. Por sua vez a narrativa que se vai construindo na cena e culmina no conflito de todo o filme agarra-nos, transporta-nos e impossibilita que possamos desligar do filme até ao seu final.
Na realização é impressionante ver o controlo da câmara, a trepidação da imagem, das decisões de focagem e desfocagem. Interessante perdermo-nos nesta análise para ver quantas vezes vimos estas técnicas serem utilizadas sem sentido, apenas como adorno. A realização de precisão milimétrica conjuntamente com uma cinematografia de excelência elevam o filme a um patamar estetico-visual que filmes com grandes orçamentos e dos melhores técnicos do mundo em efeitos visuais não conseguem sequer igualar (ex. Avatar).
E porque é de cinema que falamos, os actores, a sua performance. Esta é uma daquelas poucas vezes em que posso concordar com a mania americana de citar os filmes pelos actores em vez dos realizadores. Apesar de Lars Von Trier ser um génio, quer gostemos ou não, o seu trabalho seria de todo perdido se não tivesse tido dois actores capazes de se superarem. Vemos em cena performances de pura transcendência. É brutal a forma como Charlotte e Dafoe se dão a Lars, se abrem e entregam por completo ao seu controlo, permanecendo eles próprios.
Finalmente e apesar de não ter referido acima, a montagem em Antichrist é a mãe da união de todos os elementos referidos. Aliás muito do que refiro na realização, fotografia e em grande medida das performances se deve a um apertadíssimo rigor de montagem. Esta montagem socorre-se ainda de um design de som que reconstrói todo um universo psicológico.
Não posso fechar o texto sem referir que este é um daqueles filmes de autor onde a técnica em quase todas as áreas é conseguida com enormes níveis de qualidade. Refiro porque muitas vezes os baixos orçamentos deste tipo de cinema impossibilitam que se atinjam determinados picos de qualidade.
Grief, Pain and Despair
Vi este filme há já dois meses, numa noite de insónia. Não fosse eu uma apaixonada pelo trabalho deste realizador, não o teria visto na totalidade.
ResponderEliminarRazões … todas as que apontas (especialmente o final) mas especialmente as de carácter simbólico. O papel da mulher, a representação da culpa, o local, a atribuição e a ausência de nomes (arquétipos?) e a religiosidade transversal. Perturbante, extraordinário!
Ana, fiquei com uma dúvida as razões que dás são porque gostaste ou porque não o terias visto na totalidade?!
ResponderEliminarClaramente que o filme é mais do que aquilo que sobressai da minha análise demasiado centrada sobre a poética do filme. O filme dá-se à interpretação, lança pistas, semeia incertezas, provoca-nos... por outro lado e esqueci-me de dizer isso no texto, só um motivo de conflito tão forte como o que acontece a este casal no inicio do filme pode fazer-nos aceitar tudo aquilo que depois se passa no filme...
Nunca o teria visto na totalidade porque me perturbou bastante e senti-o como disseste: visceral. Mencionaste a força bruta de algumas cenas… mudaria o sentido mas eu talvez a substituísse pela palavra brutal…a força brutal de algumas cenas exigiram-me um exercício consciente de distanciamento quase impossível de realizar.
ResponderEliminarO filme desconcertou-me desde o primeiro minuto com a cena inicial.
Comoveu-me (desamparou-me?) o modo como o realizador escolheu nomear o homem e a mulher (sem nome… nem poderiam ter nomes!) e os sinais que nos foram sendo dados das marcas religiosas nestas duas representações – a culpa e o pecado na mulher e o distanciamento/quase salvação do homem. Ambos no Éden.
A narrativa é saturada por simbolismo, que interpela e revela o contexto cultural e religioso (ocidental) inquietante, no qual ela surge especialmente através dos desequilíbrios nas representações entre homens e mulheres (valor individual, espaço social, sexualidade, maternidade…).
O final do filme vi-o fazendo interrupções breves que me permitiram conseguir finalizá-lo.
Mas afinal porque o vi? Porque não o poderia deixar de ver! Porque me interessam muito os temas que Lars Von Trier trabalha e expõe nos seus filmes. Apaixona-me o que ele diz (ou melhor, as leituras que faço sobre o que ele diz) – a ideia de religião e as representações que escolhe, partilho-as visceral e racionalmente – e o modo como escolhe dizê-lo: toda a cinematografia é admirável!
E sim… gostei muito, muito do filme … mas não conseguia começar por aqui!:-)
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