novembro 21, 2019

Travessia da Carnificina

John Williams é um fenómeno da literatura por ter as suas obras redescobertas com sucesso pela crítica e público 50 anos depois do seu lançamento e quase 25 anos após a sua morte (1994), é algo raro e só por si digno da nossa atenção. Dos quatro livros que nos deixou, o mais conhecido é “Stoner” (1965), um trabalho de enorme simplicidade narrativa mas enorme profundidade psicológica. Confesso que demorei a aproximar-me deste “Butcher's Crossing” (1960), já que depois de ter vivido uma experiência de êxtase com “Stoner”, via muito difícil o mesmo autor conseguir repetir o feito. Para agravar o meu receio, este livro era definido como livro de género, e logo como western. Surpreendeu e superou, mesmo sabendo que vinha da pena de Williams, conseguindo mais uma vez subjugar-me.
O género, o western, acaba na verdade por não o ser. Williams segue a mesma lógica que mais tarde Cormac McCarthy seguiria, apesar de situarem a ação no coração do western, não prestam vassalagem ao género, importa-lhes apenas o local e seus personagens para dar forma ao drama. No caso, mais uma vez temos um personagem particularmente pouco expansivo que procura, pela experiência do mundo e cultura western, encontrar-se, compreender-se. Neste sentido, “Butcher's Crossing” é uma espécie de “coming of age”. Para mim, o momento mais alto dá-se quando o protagonista se confronta com o desmanche de um bisonte, morto pelos homens que acompanha, para dele retirar carne e alimentar-se:
“In the moment before sleep came upon him, he made a tenuous connection between his turning away from Francine that night in Butcher’s Crossing, and his turning away from the gutted buffalo earlier in the day, here in the Rocky Mountains of Colorado. It came to him that he had turned away from the buffalo not because of a womanish nausea at blood and stench and spilling gut; it came to him that he had sickened and turned away because of his shock at seeing the buffalo, a few moments before proud and noble and full of the dignity of life, now stark and helpless, a length of inert meat, divested of itself, or his notion of its self, swinging grotesquely, mockingly, before him. It was not itself; or it was not that self that he had imagined it to be. That self was murdered; and in that murder he had felt the destruction of something within him, and he had not been able to face it. So he had turned away.” (p.168)
Se este momento é de tomada de consciência, antes deste dá-se o massacre dos bisontes, algo sobre o que já tinha alguns factos, mas nunca me tinha dado conta do tamanho da brutalidade. E só me dei conta pelo modo como Williams vai pondo os personagens a falar, surgindo os caçadores a falar na morte de 1000 bisontes, em nome dos dólares conseguidos pela sua pele, como algo banal. Na chacina apresentada, meros 4 homens eliminam nada menos do que 4600 bisontes. É aterrador, só conseguia pensar no vírus em que nos tornámos neste planeta. Não admira que em poucos anos, na segunda metade do século XIX, o bisonte tivesse passado de 20 a 30 milhões para 100 cabeças, e tivesse sido quase extinto. Só de imaginar uma pradaria carregada de corpos enormes de milhares e milhares de bisontes deitados por terra, inertes, mutilados e sem pele, dá vontade de gritar... e todo o impacto no ecossistema produzido.
O enfoque do livro não está todo aqui, este antes serve de preâmbulo ao que Williams quer mostrar, o humano, como elemento deste planeta totalmente incapaz de qualquer harmonia com a natureza, muito contra a tão apregoada relação com a natureza por Ralph Waldo Emerson e a pseudo-experiência naturalista de Henry David Thoreau. Porque toda a experiência de inverno passada, à força e com enorme sofrimento individual, nas montanhas não é ali colocada porque Williams quisesse castigar aqueles homens por aquelas mortes. Do mesmo modo o que acontece depois ao carregamento, por força da natureza do rio, não é castigo, mas também não é acaso. Williams está claramente obcecado pela relação humano-natureza, e pelo modo como o humano é uma variável perturbadora. Repare-se no que acontece quando chegam à cidade e tudo se alterou. Reparem como a natureza, as peles, todo o seu impacto brutal pela dizimação dos animais, é engolida como mero fétiche económico. O homem ignora e despreza totalmente a natureza, vive apenas em função de si, do seu próprio proveito.
Como se não bastasse, junta-se a esta crítica dura e certeira, a escrita elaborada de Williams, logo desde o primeiro capítulo podemos deslumbrar-nos com o modo como ele trabalha a descrição, tornando-a ação e história.  Veja-se no exemplo seguinte como a descrição ganha corpo, movimento e som, e como toda esta capacidade técnica vai evoluindo e servindo na criação de cenário que submerge totalmente o nosso imaginário.
"À medida que se aproximavam da vila, a estrada tornava-se plana e a carruagem avançava com maior rapidez, oscilando levemente de um lado para outro, de forma que o jovem pôde aliviar a pressão com que se agarrava ao montante de madeira e deixar-se descair mais descontraidamente para diante no banco rijo. O toque-toque das patas das mulas tornou-se mais regular e abafado; à volta da carruagem ergueu-se uma nuvem de fumo amarelo, que se encapelou à sua retaguarda."

Se depois disto tiverem curiosidade em saber mais sobre John Williams, aconselho a leitura da recente entrevista com sua esposa pela Paris Review, "Mrs. Stoner Speaks: An Interview with Nancy Gardner Williams".

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