Nada disto é novo, já vimos esta história ser contada de inúmeras maneiras — sendo os mais próximos, “Matrix”, “Terminator” ou "AI: Artificial Intelligence" — cada uma mais distópica que a outra, mas Harari não está aqui para apresentar tragédias, não permitindo que o seu discurso seja de algum modo contaminado por melancolias e pessimismos bem conhecidos destas visões apocalípticas. Harari fala mais como um arqueólogo do futuro que olha para a origem, apogeu e declínio do homo sapiens, dando conta do modo como os eventos se foram sucedendo pautando tudo por um tom de perfeita normalidade e sustentado rigor. Se existe algo em que todos estão de acordo sobre Harari, é esta sua capacidade de distanciamento, síntese, e ressignificação do mundo em que vivemos e poderemos vir a viver.
No primeiro livro conhecemos as três grandes revoluções históricas que dão sentido à evolução da espécie 'Homo Sapiens': a cognitiva, a agricultura e a científica. A primeira que nos permitiu começar a aprender e a comunicar. A segunda que nos permitiu dar resposta às necessidades fisiológicas. A terceira que nos permitiu começar a interrogar e a compreender a nós mesmos. Neste segundo livro, Harari propõe-se ir além da revolução científica, ou seja além do presente. A discussão centra-se sobre a razão da própria razão. Separando a inteligência da consciência, é possível pensar a progressão dessa competência de que todos os animais são dotados, com maiores e menores qualidades. A grande questão acaba por se colocar sobre a motivação dessa progressão e consequentemente da essência da consciência, daquilo que a define ou daquilo que nos define. Para isso Harari trabalha, como não podia deixar de ser, uma análise histórica do modo como ao longo dos últimos milénios foi progredindo a significação daquilo que somos, da forma como nos vemos e aceitamos.
As primeiras civilizações acreditaram no poder das estrelas, na sua geometria para ditar os nossos destinos. Depois o vieram as várias religiões, cada uma com o seu Deus, e deixámos de olhar para as estrelas em busca de respostas, passámos a aceitar as palavras inscritas nas suas bíblias, tudo podia ser determinado por aquelas palavras, aqueles mandamentos. Mas com a revolução da ciência veio todo um novo modo de ver, deixámos de procurar fora de nós, começámos a procurar as repostas a partir de dentro, procurando atribuir valor ao que nos faz felizes e infelizes. Harari considera que este é o estádio atual, e atribui-lhe o rótulo simples de Humanismo.
Isto permitiu o avanço da razão, porque a emoção a justificava. Compreender-se o ser-se humano, permitia a libertação da dor e o abraçar da paixão e do amor. O progresso era não só apelativo, como tinha um propósito. As emoções assentes em milhares de anos de evolução natural eram aquilo que melhor nos servia na condução do nosso dia-a-dia. Tínhamos assim passado, de conhecimento escrito por meia-dúzia de pessoas em livros, para conhecimento acumulado por milhões de seres-humanos ao longo de milhares de anos, registado no nosso DNA.
A questão que se começa então a colocar é, e a seguir? O que nos trará o pós-humanismo? Serão os sentimentos o nosso último reduto? Quantas vezes nos arrependemos por nos deixar levar pelos sentimentos e emoções. Quantas vezes questionámos que deveríamos ter dado ouvidos à razão. Então e se tivéssemos alguém ou algo, que pudesse não só aceder a todo esse conhecimento acumulado nos nossos genes, e ao conhecimento acumulado nos genes de todas as outras pessoas, não estaríamos num outro patamar de capacidade de tomada de decisões?
"After centuries of economic growth and scientific progress, life should have become calm and peaceful, at least in the most advanced countries. If our ancestors knew what tools and resources stand ready at our command, they would have surmised we must be enjoying celestial tranquillity, free of all cares and worries. The truth is very different. Despite all our achievements, we feel a constant pressure to do and produce even more.”
“On the collective level, governments, firms and organisations are encouraged to measure their success in terms of growth, and to fear equilibrium as if it were the Devil. On the individual level, we are inspired to constantly increase our income and our standard of living. Even if you are quite satisfied with your current conditions, you should strive for more. Yesterday’s luxuries become today’s necessities. If once you could live well in a three-bedroom apartment with one car and a single desktop, today you need a five-bedroom house with two cars and a host of iPods, tablets and smartphones."
"It wasn’t very hard to convince individuals to want more. Greed comes easily to humans. The big problem was to convince collective institutions such as states and churches to go along with the new ideal. For millennia, societies strove to curb individual desires and bring them into some kind of balance. It was well known that people wanted more and more for themselves, but when the pie was of a fixed size, social harmony depended on restraint. Avarice was bad. Modernity turned the world upside down. It convinced human collectives that equilibrium is far more frightening than chaos, and because avarice fuels growth, it is a force for good. Modernity accordingly inspired people to want more, and dismantled the age-old disciplines that curbed greed.”Se em vez de reagir a uma atitude do nosso chefe, namorado ou filho a partir da nossa análise de prós e contras, tivéssemos um assistente virtual, que nos conhece melhor do que nós mesmos, porque pode a todo momento ver tudo aquilo que somos, enquanto nós estamos limitados ao que as nossas emoções, em cada momento, triam para o nosso consciente a ser aplicado em cada situação. Se por sua vez este assistente conhecesse também a outra pessoa envolvida no conflito. E ainda, ser este assistente dotado de um sistema de razão altamente evoluído, capaz de prever milhões e milhões de resultados das diferentes respostas num conflito, como se de jogadas de xadrez se tratasse. Com certeza faríamos melhor em confiar no seu conselho, e esquecer as nossas emoções. Harari chama a isto as novas religiões do futuro — o Dataísmo, fé baseada em informação e dados. Deixámos as estrelas, depois os deuses, e agora preparamo-nos para deixar as emoções!
“Yet in the twenty-first century, feelings are no longer the best algorithms in the world. We are developing superior algorithms which utilise unprecedented computing power and giant databases. The Google and Facebook algorithms not only know exactly how you feel, they also know a million other things about you that you hardly suspect. Consequently you should now stop listening to your feelings, and start listening to these external algorithms instead. What’s the use of having democratic elections when the algorithms know how each person is going to vote, and when they also know the exact neurological reasons why one person votes Democrat while another votes Republican? Whereas humanism commanded: ‘Listen to your feelings!’ Dataism now commands: ‘Listen to the algorithms! They know how you feel."Chegados aqui, poderíamos começar por perguntar a razão de uma democracia ou de um voto, quando os algoritmos conseguem saber com grande exatidão, em que partido cada um de nós vai votar. Quando os algoritmos sabem melhor do que qualquer um de nós, o que é melhor para nós em cada momento. E porque as emoções não são mais do que meros algoritmos bioquímicos limitados na razão e alcance. Porque um pequeno comprimido pode fazer a diferença entre estar bem disposto e conseguir realizar um exame e tirar boa nota, ou reprovar e ficar um ano empatado. E quando os dados e algoritmos conseguem responder a tudo, e nós não percebemos sequer como o fazem, os dados deixam de ser meros dados, e passam a ser novos deuses.
“Every day millions of people decide to grant their smartphone a bit more control over their lives or try a new and more effective antidepressant drug. In pursuit of health, happiness and power, humans will gradually change first one of their features and then another, and another, until they will no longer be human.”Tudo isto é pura especulação, com uma gigantesca cadeia de “ses” pelo caminho. O mais interessante de tudo é o modo brilhante como Harari constrói toda a argumentação, interligando passado, presente e futuro, biologia e história, religião e computação. Harari vai muito para além de muito daquilo que a ficção-científica nos tem dado, porque não se limita a contar uma história com meia-dúzia de dados novos, ele constrói um universo inteiro de sustentação para tudo o que afirma. Claro que existem críticas, a especulação não é imune, nem tem interesse em sê-lo, a especulação é pura estimulação do pensamento crítico.
Assim podemos começar pelo facto de tudo isto ser pensado na base de uma sociedade que continuará o seu progresso científico e capitalista sem o menor problema. Algo que como aprendemos do nosso passado é muito difícil, basta pensar nas grandes civilizações que tivemos: Babilónia, Grécia e Roma Antigas, Incas, Maias, etc. Não estamos, e dificilmente algum dia estaremos livres de tudo poder simplesmente colapsar, seja por más decisões nossas (alterações climáticas), seja por epidemias ou mil e uma outras situações.
A Ilha da Páscoa é um exemplo clássico do colapso de sociedades humanas.
Em segundo lugar, a questão emocional. Harari usa um exemplo que é paradigmático do mundo das artes, mas que ele usa aqui a partir do angulo das máquinas. Fala-nos então dos experimentos musicais com IA de David Cope, em que um algoritmo escreveu uma composição musical imitando o estilo de Bach, dando-o a ouvir a pessoas que se manifestariam interiormente comovidas até ao momento em que lhes era revelado não ser Bach mas uma máquina o autor da peça. Mas isto não é nada de novo, aconteceu em n experimentos antes, realizados com crianças, com leigos, etc. sendo o efeito sempre o mesmo que acontece aqui. Ora o problema destes experimentos acaba por ser o retirar da equação a consciência daquilo que somos, e daquilo que o objeto representa para nós. Uma obra de arte não existe sem alguém que a experiencie, como dizia Eco, mas também não existe sem alguém que a crie. Ou seja, a obra de arte é mais do que o objeto, é o contexto da criação e fruição desse objeto. Porque a fruição não é mera filtragem dos sentidos humanos, é antes um diálogo entre aquilo que os sentidos filtram e o conhecimento detido sobre o tal contexto da obra.
Um exemplo clássico para se compreender o alcance do impacto desse contexto, é o caso do Picasso na sala de estar. A pessoa que vive numa casa, reconhecendo na sua parede uma tela como autêntica de Picasso, mudará radicalmente o seu sentimento para com essa tela, que não terá mudado um átomo, no momento em que um avaliador lhe disser que é apenas uma imitação de algo que Picasso, não pintou nem sequer nunca imaginou. Ou seja, todo o contexto cai, e com ele caem os alicerces que sustentam mentalmente a experiência daquele objeto. Porque os objetos só valem pelas narrativas que lhes colamos. Porque o mundo em que vivemos é feito de histórias, e são estas que alimentam os nossos desejos e vontade.
Mas também por isto, aceito, que podemos vir a fazer parte de outras narrativas, que vão para além do humano. As gerações anteriores às nossas nunca se conseguiram libertar das religiões em que foram criadas. Para elas o autor da tela era Deus que através de um humano, não importa qual, produzia a obra. Hoje nós acreditamos que a tela é produzida por esse humano. No futuro poderemos simplesmente acreditar que a tela é produzida por algoritmos que sabem melhor do que qualquer artista, aquilo que eu, ser individual, mais aprecio.
Mas aqui levanta-se um terceiro problema. Os algoritmos que nos controlarão, não poderão criar narrativas para cada um de nós individualmente, já que precisamos da confirmação dos outros como nós, do sentimento gregário, da pressão social para viver, pelo menos enquanto vivermos com este DNA ultrapassado. E daí que um sistema centralizado poderá rapidamente colapsar, assim que tentar fazer felizes milhões de humanos que se continuarão a relacionar, já que a felicidade de uns representará a infelicidade de outros e desse modo farão emergir conflitos insanáveis. Claro que podemos pensar que estes algoritmos serão inteligentes como nós nunca poderemos ser, e que terão soluções para problemas que nunca imaginámos, mas isso não muda aquilo que somos, em termos de matéria e crenças, e de prazeres e desejos. Por outro lado, esta insanabilidade poderá ditar o fim da nossa própria espécie, quando os algoritmos se cansarem de nos propor soluções de vivência em sociedade, sem sucesso, tal como explica o Arquiteto da trilogia de “Matrix”.
Último ponto crítico, e este o próprio Harari o aponta, embora o faça já só mesmo no virar das últimas páginas. Serão os dados, os sistemas de informação tal como os conhecemos hoje, capazes de traduzir completamente a consciência humana? Será possível criar algoritmos que dêem conta de todas as dimensões daquilo que aceitamos como, estar vivo?
Questões para que não temos respostas. Críticas, mas críticas que são provocadas pela leitura de Harari, que não se resume ao que aqui discuto, existe muito mais por onde pegar e discutir neste livro. Cada capítulo tem a sua cota parte de abordagens perspicazes do quotidiano, normalmente suportadas com argumentos que nos obrigam a parar e ponderar sobre aquilo que todos os dias fazemos de modo automático sem nos questionarmos porquê.
Links para saber mais:
"Sapiens", porque dominamos o planeta?
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