maio 20, 2023

Esquizofrenia em defesa da IA

A defesa da IA geralmente começa por identificar tecnologias anteriores que surgiram e que foram também atacadas, mas que demonstraram ser depois bem assimiladas pela sociedade. Fala-se da electricidade ou da calculadora, assim como se fala da automação de fábricas ou da internet. Apontam-se os ganhos, nada se diz sobre os impactos negativos, menos ainda sobre o enorme trabalho que foi necessário para criar regulação que sustentasse essa integração societal. Bastaria dar o exemplo do RGPD para percebermos que a internet não nos trouxe só maravilhas, e que sem regulação estaríamos bem mal. Esta mesma defesa, diz depois que a IA não está aqui para substituir o humano, é apenas um complemento. E vai mais longe, dizendo que quem não quer ficar para trás tem de entrar no comboio, usando uma expressão que já se tornou mantra no domínio: uma IA não vai substituir uma pessoa, mas uma pessoa com IA vai substituir uma sem IA. Analisemos ambos os argumentos mais em detalhe, nomeadamente o impacto das tecnologias mais recentes nas funções cognitivas.

1 - Memória (Google, GPS, Smartphones,...) [1]

O Google é hoje central nas vidas de todos nós, traz imensos benefícios, e todos os seus impactos negativos podem ser menorizados pelos enormes ganhos. Contudo, se escavarmos um pouco mais sobre a nossa relação com esta ferramenta, vemos coisas a acontecer que não conseguimos antecipar, e pior, que não temos como ultrapassar. Uma destas em particular é a memorização de factos — nomes, locais, eventos, ações, atividades, etc. O nosso cérebro é muito ágil a otimizar os seus recursos. De modo que se tenho a informação sempre disponível no Google, ou no meu smartphone, não preciso de a preservar na minha cabeça. À primeira passagem, isto é excelente. Numa análise mais detalhada, nem por isso. Reparem como hoje quando se querem lembrar de um autor que escreveu um livro/artigo têm enorme dificuldade. Reparem como todos os oradores tendem hoje a necessitar de usar teleponto, e como quase nenhum professor consegue fazer uma aula de uma hora sem o powerpoint como suporte. 

Isto não impacta apenas a oralidade. Quando escrevemos textos em profundidade, as memórias são fundamentais para que a nossa não-consciência estabeleça ligações e apresente relações novas, para que sejamos criativos. Se não temos essas memórias, temos de estar continuamente a parar para questionar o Google, com isso dificilmente conseguimos chegar a níveis subterrâneos da consciência onde a criatividade é mais rica.

“An insight is being able to connect two disparate things in your mind. But in order to have an insight and be creative, you have to have a lot of raw material in your brain, like you couldn’t cook a recipe if you didn’t have any ingredients: you can’t have an insight if you don’t have the material in your brain, which really is long term memories.” -- Barbara Sahakian, Professor of Clinical Neuropsychology


2 - Atenção (Redes Sociais, Métricas de Engajamento, pirâmides de aprendizagem) [2]

As redes sociais trouxeram-nos o acesso a relações humanas que se tinham perdido ou deteriorado, pelo tempo ou pela geografia. Mas mais do que isso, trouxeram-nos o acesso a muito mais informação, e a uma maior consciência da mesma, uma vez que permite a discussão dessa informação com pares. Assim, todos podem sentir-se mais envolvidos, porque existem canais que permitem expressar, questionar, debater, ser ouvido e ouvir. As redes sociais representaram um ganho, por via da discussão da informação, vital para a criação do sentimento de uma democracia forte. Contudo, acabaram trazendo polarização, porque enquanto a informação se tornava mais democrática, também perdia autoridade. No meio de todos estes ganhos, as redes sociais trouxeram-nos a Primavera Árabe, mas também o Brexit, Trump e 11 deputados do Chega na Assembleia da República.

O design das Redes Sociais não é inerentemente anti-verdade, mas o seu moto é a maximização da nossa atenção, por via daquilo que chamamos de métricas de engajamento. Usam-se as preferências de cada um para criar espaços individuais que cada um adore. Em cima disto, oferece-se variabilidade infinita para manter o sentimento de recompensa sempre ativa. No final, temos pessoas engaioladas dentro do seu próprio mundo, alimentadas por um pisca-pisca de informação açucarada (preferida). As nossas capacidades para manter a atenção baixam, porque se habituam, por um lado a uma estimulação rápida, e por outro a estímulos ligados diretamente à realidade conhecida, tornando difícil segurar o foco quando estão em causa assuntos densos e estranhos.

Isto é atualmente muito evidente no consumo que as pessoas fazem de informação, preferindo consumir textos curtos — Twitter —, ou apenas imagens, de consumo mais imediato e rápido — Instagram —, e quando precisam de um pouco mais de explicação usam vídeos curtos — TikTok. Tudo isto, com a particularidade de que só consomem aquilo de que gostam.

O impacto disto é bastante visível numa sala de aula universitária, onde a maioria dos alunos não consegue hoje manter a atenção por mais de 5 a 10 minutos. Muitos deles, habituados a este corropio, chegam a optar por estar nas aulas a desenvolver trabalhos para outras cadeiras — o multitasking — exatamente porque aquilo que estão a ouvir não é suficientemente estimulante, ou não está dentro do seu raio de preferências. Contudo esse multitasking não acontece, é uma ilusão criada pela diminuta capacidade de manter o foco. Tão cientes disto, os nossos colegas da Educação começaram a desenvolver  aquilo que definem como metodologias de aprendizagem ativa, algumas muito interessantes, mas outras sustentadas em meros mitos de aprendizagem, que tentam replicar esses ambientes menos exigentes de atenção, mas também cada vez menos capazes de levar os estudantes a aprofundar o conhecimento.

3 - Raciocínio (Inteligência Artificial Generativa)

A IA trouxe-nos sistemas maravilhosos de navegação na informação por meio de recomendações, com constantes sugestões sobre o que fazer, como fazer, quando fazer. Abriu-nos um mundo novo de possibilidades que aceleram todos os nossos processos produtivos. Somos mais eficientes, ou seja, conseguimos fazer mais coisas em menos tempo.

Contudo, a IA generativa elevou o patamar da recomendação de ideias para o da substituição das ideias. Hoje, em vez da pessoa estudar um tema para tentar compreender os elementos chave que o sustentam, vai ao ChatGPT e pede-lhe para ele listar os 5 elementos mais importantes sobre o conceito A ou B. Tendo esses 5 elementos em vista, em vez de ler na wikipédia sobre os mesmos e depois procurar os livros que os suportam para aprofundar a compreensão do elemento, pede ao ChatGPT para ele sintetizar em 5 ou 10 linhas a relevância de cada elemento. Chegado à análise crítica e discussão sobre o tema, como não realizou estudo dos elementos chave, torna-se impossível oferecer uma visão crítica pessoal, por isso pede ao ChatGPT que teça uma comparação crítica desses 5 elementos.


4 - Discussão

Se o humano está a perder a capacidade de memorizar, a profundidade crítica também diminui. Com memórias fragmentadas de factos, torna-se mais difícil tecer comparações e contrastes, ou seja pensamento crítico, precisando cada vez mais da IA para chegar a sínteses. Se o humano está a perder competências para realizar atenção focada, então precisará cada vez mais da IA para fatiar a densidade em partes digeríveis. Com a Memória e a Atenção fragilizadas, não restam grandes alternativas às funções de raciocínio. Se a IA serve como minha memória externa, se a IA me oferece as curtas sínteses que a minha atenção consegue sustentar, então não me resta alternativa a não ser pedir à IA que pense por mim.

E no entanto, assistimos não só ao discurso de que o humano sempre soube adaptar-se a mais tecnologia, surgindo logo a seguir os arautos da Educação moderna defendendo que é o uso desta IA que se deve impor nas escolas e nas Universidades. Depois de terem demonizado as aulas expositivas, defendendo as metodologias ativas por forma a correr atrás da atenção corroída dos alunos, agora defendem o uso da IA como a única forma dos alunos chegarem ao raciocíocino. Quando na escola as crianças, os jovens e os adultos deveriam estar a ser estimulados e conduzidos a exercitar as suas funções cognitivas, o que temos é a oferta de mais e mais tecnologia que liberta desse esforço, inevitavelmente conduzindo à diminuição das capacidades dessas mesmas funções cognitivas.

Em síntese, teremos pessoas cada vez com menor autonomia, com menor pensamento crítico, com menor conhecimento de si, do outro e da realidade. Mas graças à IA, teremos humanos cada vez mais competentes em tarefas produtivas, porque à semelhança do trabalhador na linha de montagem fabril, o seu contributo para a grande engrenagem económica trará cada vez mais dividendos ao capital. Assim, é muito provável que a grande maioria entre no comboio educativo da IA, enquanto boa parte das elites opte por manter os seus filhos fora do comboio, obrigando-os a caminhar a pé, a exercitar todas as suas valências e competências, para poderem continuar a marcar a diferença no futuro. 


[1] MEMORY

Betsy Sparrow, Jenny Liu, Daniel M. Wegner (2011), "Google Effects on Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our Fingertips", Science, 14 Jul 2011, Vol 333, Issue 6043. pp. 776-778, DOI: 10.1126/science.1207745, URL

Is your smartphone ruining your memory? A special report on the rise of ‘digital amnesia’ (2022), URL

Kandel E.R., & Schwartz J.H., & Jessell T.M., & Siegelbaum S.A., & Hudspeth A.J., & Mack S(Eds.), (2014). Learning and memory. in Principles of Neural Science, Fifth Edition. McGraw Hill. URL


[2] ATTENTION

Simon HA. The bottleneck of attention: connecting thought with motivation. Nebr Symp Motiv. 1994;41:1-21. PMID: 7739745. PDF

Paul Atchley, Sean Lane (2014), Cognition in the Attention Economy, Psychology of Learning and Motivation, Volume 61, 2014, Pages 133-177, URL

ATTENTION ECONOMY, UN, by Line Carpentier, 2022, PDF 

Multitasking: Switching costs, APA, URL

Educação e Tecnologia, criação em "multitasking", Virtual Illusion

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