fevereiro 25, 2023

IA e o regressar aos valores da Escola

Durante décadas acreditámos que a IA seria apenas uma ajuda ao humano, que não seria nunca capaz de o substituir em tarefas que exigem inteligência elaborada e educada. Contudo, em 2023 isso deixou de ser uma verdade absoluta. A IA consegue escrever tão bem como um ser humano, consegue sintetizar, criar e expressar ideias. Pouco já está fora do seu alcance em termos da ideação e conceptualização. A IA consegue desenhar e animar de raiz as mais complexas formas visuais e sonoras. A IA consegue compor texto com desenho, som e movimento no tempo recriando representações que expressam “imagens mentais” que até agora só os humanos tenderiam a imaginar. A IA consegue ainda programar essas composições para que cumpram ordens ou tomem decisões. A IA consegue criar réplicas de si mesma, com variações de performance com vista a otimizar a sua ação ou em resposta ao que lhe é pedido. Podemos ir ainda a algo mais extremo, e dizer que a IA consegue ter “consciência de si”, quando consegue apresentar um estágio de “teoria da mente” de uma criança de 9 anos [1]. Ou seja, a IA atual consegue atribuir estados mentais aos humanos que interagem com ela, consegue especular e supor o que está a pensar o humano quando este realiza perguntas, por forma a descortinar a intenção, para o que usa todo um conhecimento sobre os humanos que assenta não apenas na informação, mas na emoção, nas vivências, motivações e crenças.

Imagem de Tony Coffield de Pixabay 

Apesar de ligeiramente exponenciado o texto acima, ele está próximo do dia de hoje, sendo bastante iminente. Naturalmente que pelo meio de toda esta atividade IA futura existirão muitos humanos que servirão na regulação, como guias e utilizadores. Mas quem vai, cada vez mais, inventar, conceptualizar e implementar vai ser a IA. E quanto mais tempo convivermos com a IA, mais residuais serão as funções humanas nos processos de produção.

Isto representa uma revolução total na sociedade atual. Mas não é uma revolução sobre a condição humana. O humano vai permanecer inalterado. O que vai mudar é o modo de produzir. Ou melhor, o Trabalho. O mundo do trabalho vai mudar radicalmente. Teremos de nos adaptar, teremos de criar políticas de fundo que suportem todas estas alterações.

Mas e a Escola? Qual vai ser o papel do Ensino Fundamental? E do Ensino Superior? Isto deveria ser uma não questão. Contudo, toldados pelo atual modelo societal que suporta o conceito de Escola no treino para o Trabalho, ela parece estar em perigo. Ensinar crianças a escrever, quando as máquinas escrevem sem erros e mais rapidamente? Ensinar crianças a desenhar, quando as máquinas desenham tudo com um clique? Ensinar crianças a programar quando as máquinas se auto-programam? Ensinar crianças a calcular quando o cálculo é por excelência o reino das máquinas?

Façamos uma pausa. Olhemos à História e à nossa volta para o domínio humano não-cognitivo, o da força muscular. No Antigo Egipto, as ordens e leis da sociedade eram emitidas pelos conselhos dos Faraós que depois tinham de ser enviadas a todas as tribos e cidades do Egipto. Para as mensagens mais urgentes, eram usados os melhores corredores, que treinavam todos os dias para serem os melhores. Contudo, com a domesticação dos cavalos e a criação da mala-posta, os corredores de entregas de mensagens desapareceram. Depois vieram os carros que substituíram os cavalos. Por sua vez os carros foram substituídos por aviões. E hoje, as ordens e leis são simplesmente enviadas por e-mail, ou colocadas numa ágora digital (página web) que todos em todo o planeta podem visualizar em simultâneo. 

Contudo, e apesar desta estonteante transformação, do total desaparecimento da necessidade de força muscular para a realização do trabalho de envio de mensagens, o ser humano não deixou de continuar a correr. Em toda a história da humanidade, o ser humano nunca correu tão rápido como no dia 16 agosto de 2009, quando Usain Bolt fez 100 metros em 9’58’’. Para chegar a este tempo precisámos de muita tecnologia que ajudou a otimizar o modo de correr, o modo de treinar, o modo de alimentar, o modo de dormir, mas também a globalizar o acesso a maior diversidade de pessoas a participar em campeonatos mundiais de desporto. Mas em essência, o corredor de 2009 fez o mesmo que fazia o corredor do tempo dos faraós, repetiu milhares e milhares de vezes o processo de treino de corrida. A IA ajuda a traçar padrões e a definir melhores comportamentos, mas a IA não os pode realizar por nós.

Por outro lado, nunca vimos tantas pessoas a correr em passeios e ruas urbanas a qualquer hora do dia como neste século XXI. Umas mais rápidas, outras mais lentas, algumas só caminhando, mas movendo-se de A para B “desperdiçando” energia em esforço muscular que poderia ser realizado pelo carro, autocarro ou comboio; “desperdiçando” tempo que poderia usar para estar com a família, ou a realizar trabalho. Mas se o fazem é, nalguns casos, porque os seus médicos o sugeriram, ou porque simplesmente as faz sentirem-se bem. Mais saudáveis, mais leves, mais focadas, mais seguras, mais livres, mas acima de tudo mais conscientes da sua própria humanidade. Apesar do “desperdício” de energia e tempo, a atividade muscular exerce toda uma série de ganhos que nenhuma tecnologia lhes pode oferecer.

Assim, e movendo do esforço muscular para o esforço cognitivo, quando escrevemos, pintamos, desenhamos, cantamos ou calculamos não o fazemos apenas porque um qualquer trabalho o demanda e com isso podemos ser pagos em dinheiro que nos permite comprar comida. Fazemos tudo isto pela mesma razão que corremos, porque nos dá prazer, nos faz sentir bem, mas especialmente porque nos torna conscientes de sermos humanos. Ajuda-nos a compreender melhor quem somos, quem são os outros. Mais importante ainda, ajuda-nos a acreditar no sentimento de ser-se e sentir-se humano, e a crer que vale a pena continuar a existir. 

Era nisto que Platão e Aristóteles acreditavam quando criaram a Academia e o Liceu. Para eles, a Escola era o lugar onde podíamos aprender a melhorar todas as nossas competências cognitivas pelo treino diário na interação com os outros. Mas essa Escola desapareceu quando decidimos trocar o campo de treino e exercício da condição humana pelo campo de treino para a profissão, para o ganha-pão. Começou pela escola fundamental, mas chegou ao ensino superior, que hoje organiza os seus cursos, não em função do conhecimento humano, mas em função da indústria e serviços, pressionados por uma sociedade que decide o que e quanto estudar em função do tamanho do salário futuro.

A IA, na sua infinita variação de possibilidades de ação, é simultaneamente cavalo, carro, avião, internet e muito mais. Mas o humano, nas suas possibilidades musculares e cognitivas continuará a ser o mesmo que era há 5, 10 ou 40 mil anos. Desaparecerão a maior parte das atuais profissões, nomeadamente as centradas na produção de coisas, sendo substituídas por outras, mais centradas no interior humano. Continuaremos a progredir, a ter mais e melhor tecnologia, muita já não criada por nós. Mas continuaremos a progredir enquanto sociedade de valores, de respeito e amor pelo próximo. E é para isto que a Escola continuará a ser precisa, e continuará a existir.

A escola, no tempo da IA, voltará a ser a escola do conhecimento humano, regressando 2000 anos tempo, para terminar com ideais exacerbados pela industrialização de há meros 200 anos.


[1] Kosinski, M. (2023). Theory of Mind May Have Spontaneously Emerged in Large Language Models. arXiv, 10 Feb 2023, https://arxiv.org/abs/2302.02083


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