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outubro 19, 2019

Another Day of Life (2018)

Soube que o filme estava a ser feito há um par de anos, através dele cheguei ao livro "Mais um Dia de Vida" (1975) de Ryszard Kapuściński que li no ano passado e muito me tocou, por isso ver o filme era obrigatório. Raul de la Fuente, seguindo uma estética próxima da criada por Ari Folman para o brilhante "Waltz With Bashir" (2008), entrega um filme que de certeza faria Kapuściński sentir-se orgulhoso, porque refletindo tudo o que está no livro, nos dá a ver um pouco além desse, por via do acrescento de imagens e entrevistas reais dos dias de hoje com alguns dos principais intervenientes na história por ele contada. É um filme para ver, rever e refletir, ainda que não seja tão duro como o livro, porque a animação de tão bela, e algum pudor por parte dos criadores, fazem sentir toda a tragédia como algo mais leve. Mas essa era a intenção de De La Fuente, fugir ao excesso dramático próprio de uma guerra, para poder contar e desvelar a História, tendo-o conseguido com brilhantismo.





Ryszard Kapuściński

Em termos técnicos, o filme consegue elevar-se e apresentar quase sempre níveis de excelência, muito graças à técnica de animação utilizada, motion capture, que permitiu acelerar todo o processo de criação, ainda que a produção tenha durado entre 3 a 4 anos. Contudo, não raras vezes surgem alguns planos e cenas menos inspiradas, comparando novamente com "Waltz With Bashir", faltaram alguns rasgos mais profundos de criatividade visual. Mas nada que pudesse impedir o filme de ser premiado em múltiplos festivais, porque acaba sendo um belíssimo filme e uma grande homenagem a todos os envolvidos.

Recurso ao 3D para importar os dados do motion-capture.

O 3D sendo pintado para se assemelhar a um 2D, e assim perder muito do efeito artificial que o motion-capture tende a introduzir.

"Confusão: it's a good word. A synthesis word. An everything word. Do you feel confusão too?"

Sobre o que nos conta a história, prefiro deixar apenas o link para a resenha que fiz antes do livro homónimo. No filme, parece-me que foi dado maior destaque à questão da Guerra Fria, da luta entre as forças socialistas suportadas pela URSS e Cuba, e as forças capitalistas, suportadas pela África do Sul e os EUA. No final, e mais impactante no filme do que quando saiu o livro, é perceber que depois da suposta vitória e da Declaração de Independência, a Angola continuaria em guerra, por mais 27 anos, até 2002.


O filme pode ser visto online no site português de cinema independente: FilmIn.

outubro 13, 2019

A centelha que faltou ao relato

Não posso dizer que desgostei —do livro "The Creative Spark: How Imagination Made Humans Exceptional" (2017) — mas no final senti que nada acrescentou, que tudo não passou de um mero relembrar com um redirecionar interpretativo da História. Fuentes faz um levantamento do evolução humana, e apresenta a Criatividade como o elo que tudo fez girar, sem o qual nunca teríamos chegado à espécie dominante que hoje somos. Como premissa é interessante, o problema é que todo o levantamento feito centra-se apenas no elencar dos eventos ocorridos, sem qualquer relação direta ou particular com a criatividade, ou melhor com todo o manancial de teorias e história sobre a Criatividade. No fundo Fuentes limita-se a apresentar a evolução das capacidades cognitivas como fruto dessa suposta criatividade, tendo eu de lhe dar razão, não é algo propriamente novo, podendo ser se este tivesse apresentado variáveis, factores ou qualificativos próprios dessa tal criatividade ao longo da evolução, distintos das meras componentes de inteligência.


Julgo que o maior problema do livro assenta na quantidade de tempo investida a contar histórias sobre a evolução que estamos todos cansados de ler, e eu nem sequer sou especialista em evolucionismo. De certo modo, sofre do problema dos livros académicos que precisam de apresentar todo o lastro de onde partem, tecendo considerações, mas regendo-se especialmente por apresentar e descrever, o que para um livro de divulgação não funciona. Como se não bastasse, a concretização do livro acaba sendo parca, o recontar da evolução do ponto de vista da criatividade pouco ou nada acrescenta ao que hoje sabemos sobre a Criatividade, tendo-se perdido uma premissa que parecia ter bastante para dar.

setembro 07, 2019

O mundo-história de "Aniquilação"

É a imaginação, é da imaginação que brota toda a criatividade, lugar do brincar cognitivo. Foi por acaso, enquanto olhava para o perfil de Vandermeer, que descobri que além de autor de ficção-científica era também o autor de “Wonderbook” (2013), um dos meus livros preferidos sobre ficção criativa, inspirador da primeira à última página. E só assim comecei a compreender porque me tinha apaixonado pelo livro, e filme homónimo, “Aniquilação” (2014) (2018). O cerne está no mundo-história criado.

É a primeira vez que compro um livro que vem com 3 capas, a original (à direita) e duas sobre-capas, uma do filme, e outra dos 20 anos da Fnac.

Assim, e se o filme foi criado pelo brilhante Alex Garland, com um guião seu adaptado do livro de Vandermeer e com imensas variações sobre a história, é o universo imaginado e populado por Vandermeer que nos apaixona. Do ponto de vista estético, o filme é muito superior ao livro, Garland é muito mais dotado no manejo técnico das ferramentas de expressão cinematográfica. Vandermeer não é mau, mas não vai além do suficiente em termos de escrita. Mas nada disto importa muito porque aquilo que é relevante é o mundo imaginado por Vandermeer.



Imagens do filme homónimo (2018) de Alex Garland

À primeira vista, esse mundo pode parecer apenas uma variação dos universos de Stephen King, tais como “A Cupula”, um recorte da realidade com condições particulares criadas por uma força ou identidade desconhecida. Mas é mais, bastante mais. Vandermeer cria um mundo alternativo através de uma fusão entre arte e ciência. Socorre-se fundamentalmente da Biologia, mas recorre à Linguística, Antropologia e Topografia (estas são as quatro áreas de especialidade das mulheres que acompanhamos na expedição à Área X) para conceber e desenhar um conjunto de variações no espaço e natureza.

Páginas do “Wonderbook” (2013)

É dada supremacia à biologia, pela sua vertente orgânica, o que em termos de criação de mundo pode ser vista como base plástica — visual e sonora. Tendo em conta que a realidade na Terra é já de si natural, orgânica, o que Vandermeer faz é ampliar o poder e efeito do orgânico. Uma espécie de reclamação do mundo por parte da natureza. Podemos dizer que o mundo de Vandermeer apresenta uma evolução sobre os mundos pós-apocalípticos mais recentes do tipo “The Last of Us” (2013) ou daquilo em que Chernobyl se transformou, em que o verde toma conta das estruturas criadas pelo humano. Por outro lado, podemos ver também um regresso a alguma ideologia dos anos 50 e 60, da transformação da natureza por via nuclear, dando origem aos mundos estranhos dotados de particulares bizarras, que alguns exploraram com os super-heróis, outros com o terror, e que Chernobyl acabou demonstrando fazer pouco sentido.

Talvez por isto mesmo, as alterações biológicas em Aniquilação não sejam nunca vistas como algo fruto de intervenção humana, mas antes alienígena. Como se os extraterrestres finalmente tomassem as formas propostas por Carl Sagan, não dotados de formas reconhecíveis, menos ainda hominídeas. Uma entidade que toma conta do espaço que dialoga com ele, amplia as suas capacidades, intervém, altera e transforma, mesclando e fusionando. E quando o humano intervém é introduzido em todas essas transformações como apenas mais um elemento da natureza do planeta. Em certos momentos, fez-me recordar “Solaris” de Tarkovsky (1972) e Lem (1961), a entidade-planeta que pensa e cria mundos-ilusão com o que os humanos se vão deparando, uma entidade que interage connosco não pela ação física ou forma, mas pela relação mental, cognitiva e emocional.

Não posso dizer que o trabalho de Vandermeer seja eminentemente cerebral, existe alguma ação à lá Hollywood, mas claramente quis mais do que isso e conseguiu-o por via do mundo que criou, o modo como o ambientou e ainda a escolha dos intervenientes alienígenas e humanos. Só tenho pena que a Linguística não tenha tido mais espaço, ela é importante mas acaba sendo de certo modo secundarizada, poderia ter aberto outros caminhos como fez Villeneuve em "Arrival" (2016) com a hipótese de Sapir-Whorf.

agosto 26, 2019

Como Começou a Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade

Começar por dizer que não sou de Linguística, embora trabalhe no domínio da Comunicação que opera alguns níveis acima na relação com o humano, e por isso possui relação com o conhecimento produzido pela linguística. Dizer que tendemos a conhecer mais Chomsky pelo seu ativismo político do que propriamente pelos seus contributos científicos. No entanto, tendo em conta a envergadura do seu reconhecimento é sempre complicado defender posições antagónicas, contudo, é isso que Daniel L. Everett faz neste livro, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017). Everett doutorou-se com uma tese em linguística, baseada no seu trabalho de campo com tribos da Amazónia nos anos 1970, um trabalho que continuou sempre a evoluir e lhe permitiu chegar a esta afirmação que surpreende muitos linguistas: “Eu nego aqui que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, assim como nego também que seja inata”.


Sendo um livro sobre a génese da linguagem humana, precisamos de partir da base comum e aceite pela generalidade dos académicos linguistas, sobre o modo como criamos linguagem e que na área dá pela designação de “Gramática Generativa” ou “Gramática Universal”. Esta designação foi criada por Chomsky nos anos 1960 e pretendia identificar um conjunto de regras base de organização mental que permitiriam o surgimento e desenvolvimento da linguagem. Chomsky e colegas determinaram que esta organização terá surgido há cerca de 50 mil anos, tendo alterado completamente o nosso desenvolvimento cognitivo e social, distinguindo-nos dos animais. Deste modo, Chomsky afirma existir uma linguagem universal inata, que mais tarde Fodor e Pinker denominariam de “linguagem do pensamento” ou “mentalese”. Confesso que a primeira vez que li sobre esta teorização não me atraiu. O meu treino em comunicação faz-me trabalhar a realidade do humano como algo altamente variável culturalmente (o que é amplamente suportado por evidências empíricas), daí que aceitar a hipótese da existência de uma espécie de código universal a este nível, imbuído em todos de forma igual, me pareceu sempre extemporâneo.

Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.

Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.

Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.

Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.

"O Nascimento de uma Palavra" (2011) de Deb Roy

Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?

Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.

A Caverna de Altamira, Espanha, apresenta algumas das primeiras pinturas humanas, tendo sido datadas com 30 mil anos.

Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.

Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.


Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre  Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.

fevereiro 16, 2019

Paradoxo e Refúgio dos Super-heróis

O universo dos super-heróis, criado em revistas de banda desenhada durante os anos 1930 nos EUA, foi uma das mais brilhantes criações da imaginação e criatividade humanas do século XX, não apenas pelos mundos paralelos e alternativos criados, mas essencialmente por tudo o que representaram para uma sociedade em pantanas, primeiro com uma enorme Depressão Económica (1929), e depois com uma Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para quem tiver interesse em compreender melhor o nascimento deste mundo de ideias, aconselho vivamente a leitura de “As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay” (2000) de Michael Chabon. No entanto, ao longo dos últimos 100 anos, por várias vezes este universo de super-heróis quase desapareceu devido à ausência de interesse do público. Hoje vivemos uma nova vaga de ouro, talvez a mais intensa de sempre, nomeadamente pela força dos meios audiovisuais comparativamente ao meio da BD. E é sobre esta vaga que quero deixar algumas ideias, nomeadamente sobre o facto de não ter sido o universo de super-heróis a progredir na sua complexidade — tanto em criatividade como em valor social — mas antes parece ter sido a a própria sociedade a regredir, a voltar ao estado inicial que proporcionou o nascimento destes mesmos universos.

Nova Série "Titans" (2019) da Netflix

Para muitos milhões, como para mim, os universos de super-heróis acompanharam-nos na nossa adolescência, um tempo de formação complexo pelos choques e convulsões internas e seus impactos na relação social com o mundo que nos rodeia, nomeadamente família e escola. Contudo, todos nós que por lá passámos, atingimos um momento em que estes universos perderam o seu encantamento, e que sem saber porquê acabámos por nos desligar, desinteressar e esquecer.

Os originais de 1930

As revistas de BD da Marvel Brasil lançadas em Portugal nos anos 1980

Crescemos, os nossos interesses amadureceram, começaram a exigir maior complexidade na análise do real e do social. Os universos de super-heróis já não respondiam às particularidades do sentir e da compreensão de uma vida em mutação, esses universos não cresciam, eram estanques e imutáveis. O Homem-Aranha, o Capitão América, o Super-Homem, etc. tinham sempre a mesma idade, e se alguma vez numa história, um escritor, explorava a possibilidade de morrerem, logo a seguir se exploravam possibilidades de ressuscitarem, porque o filão não podia ser decepado. Percebíamos assim que aqueles com quem nos desejávamos identificar tinham deixado de ser personagens, eram apenas marcas publicitárias, tinham desistido de qualquer relação com o ser humano.

Ou seja, se à medida que crescemos, aprendemos pela experiência dura da realidade, aquilo que a filosofia insiste em querer ensinar-nos, que no mundo, assim como nas nossas vidas e nos nossos Eu, nada se mantém sempre igual, tudo está continuamente em transformação, tudo é devir. No mundo dos super-heróis, sendo tudo já de si fantástico e irreal, é-o também na sua relação com a vida e o seu sentido, e por isso incompatível com modelos mentais de seres-humanos interessados no crescimento de si.
“Tudo é impermanente”
Mandamento budista, tido como principal regulador de toda a sua filosofia (VI a.c.)
“Nada é permanente, exceto a mudança (..)
É impossível entrar duas vezes no mesmo rio (..)"
 
Heraclito, ~500 a.c.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.”

Camões, ~1500
“On closer inspection (..) The hardest stone (..) is in reality a complex vibration of quantum fields, a momentary interaction of forces, a process that for a brief moment manages to keep its shape, to hold itself in equilibrium before disintegrating again into dust.”
Rovelli, 2017
Assim sendo, como explicar todo este sucesso renovado, e duradouro, pelos super-heróis no cinema? Analisando o último século destes conteúdos na BD, os seus altos e baixos podem ligar-se a crises de valores e económicas, assim como ao surgimento e desvanecimento de cada geração. No caso atual, tendo em conta a duração do fenómeno, o primeiro filme de super-heróis com sucesso desta vaga foi "X-Men", realizado em 2000, não sendo propriamente fácil identificar um marcador único, até porque o tempo não permite que nos refugiemos nas mudanças de geração como explicação. Fazendo um rápido exercício, podemos dizer que a viragem do milénio teve um enorme impacto cultural, enfatizando valores humanos, identitários e de espécie nos mais vários produtos que foram produzidos entre 1998 e 2003. Por outro lado, em 2001 dá-se não apenas o ataque às Torres Gémeas, mas ocorre também o estouro da bolha financeira Dot.Com. Estes dois eventos que se deveriam começar a desvanecer no final da década, são rapidamente ultrapassados em 2007/2008 com o eclodir de uma Crise Económica de efeitos mundiais, que iria para além da Depressão de 1929, a responsável pela primeira Época Dourada dos super-heróis.


No fundo, a época dourada de super-heróis que atravessamos no meio audiovisual, e que nos oferece infinitos mundos de fantasia, realidades alternativas em que a estabilidade é a constante, onde o impacto e o choque nunca alteram as condições de vida de cada um dos intervenientes, servem de bunkers mentais, refúgios projetados, a uma sociedade que vive na eminência do constante desmoronamento das suas realidades exteriores. O entretenimento, tal como Pascal o definiu, é assim a base que serve ao homem para se afastar do Pensamento de Si.

janeiro 02, 2019

os dez melhores lidos em 2018

Aproveito para deixar aqui uma pequena lista de livros, independentemente de serem ficção ou não-ficção, assim como do ano em que foram escritos ou publicados, representando apenas e só as minhas melhores experiências de leitura ao longo do ano 2018. São 10 livros que recomendaria a qualquer pessoa, não são os únicos a que dei 5 estrelas este ano, mas são os 10 que recomendaria como leitura fundamental ,pela sua capacidade de nos transformar. Se quiserem ver a lista completa, fica a página do GoodReads.


"A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer", (1952), Stig Dagerman
"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" (2000), Michael Chabon
"Demónios" (1872), Fiódor Dostoiévski
"Educated" (2018), Tara Westover
"Filhos da Meia-Noite, Os" (1981), Salman Rushdie
"Ilusões Perdidas" (1837), Honoré de Balzac
"Imaginação e Criatividade na Infância" (1930), Lev Vygotsky,
"Manual dos Inquisidores, O" (1996), António Lobo Antunes
"Neve" (2002), Orhan Pamuk
"Order of Time, The", (2017), Carlo Rovelli

Os livros são apresentados por ordem alfabética. Podem ler as resenhas de cada um clicando nos mesmos.

outubro 20, 2018

Algoritmo Mestre

Confesso que parti para "The Master Algorithm" (2015) com várias reservas: a primeira prendia-se com a dificuldade de trazer um assunto desta complexidade para uma discussão leiga; a segunda tinha que ver com a minha desconfiança sobre a possibilidade efetiva de se criar um algoritmo único, de tudo capaz. No final do livro tenho de dizer que Pedro Domingos, professor na Universidade de Washington, fez um belíssimo trabalho, não só o livro é acessível como nos abre o apetite para o tema. O que mais gostei, e acaba sendo o cerne do livro, foi da descrição das metodologias que estão a ser seguidas para que a máquina possa aprender, não por serem exóticas mas antes pelo contrário, por responderem por métodos que nós próprios, humanos, também temos vindo a utilizar para construir conhecimento.


Domingos abre o livro com uma constatação que por mais óbvia que seja nos continua a surpreender, o Machine Learning (ML) já faz parte das nossas vidas, e muito daquilo que fazemos no nosso dia-a-dia já é controlado por ele. Desde o modo como pesquisamos e encontramos livros na Amazon e filmes no Netflix, às informações e notícias que vão surgindo no feed do nosso Facebook ou Instagram, aos sites e links que o Google nos indica em cada pesquisa. Onde existirem bases de dados  grandes, o ML estará lá a trabalhar para nós. Enquanto espécie animal somos a espécie mais inteligente no planeta, contudo no que toca a processar dados, em volume e rapidez, temos poucas ou nenhumas hipóteses com os algoritmos processados por máquinas.

Domingos começa por discutir as diferentes fases do processamento do conhecimento no nosso planeta — "Evolução", "Experiência" e a "Cultura". A evolução deu-nos o DNA, o primeiro modo de construção de conhecimento no planeta, capaz de codificar vida. Seguiram-se os neurónios que codificavam toda a experiência percetiva em conhecimento que podia ser re-utilizado para navegar no planeta. Na terceira fase surge então a cultura, ou seja, a produção de conhecimento pelo ser humano. Domingos refere que cada uma destas fases foi sempre muito mais rápida que a anterior, apresentando de seguida, aquilo que considera ser uma 4ª fase, a do conhecimento produzido pelos computadores. Esta última fase levantou-me algumas dúvidas. Ou seja, considero que só poderemos colocar na equação de produtores de conhecimento os computadores, no momento em que eles nos começarem a dar conhecimento original. É verdade que os últimos sistemas desenvolvidos para jogar Go ou Xadrez, têm apresentado jogadas completamente novas, e momentos de criatividade em nada semelhantes ao que conhecíamos no humano, contudo parece-me que ainda é cedo para considerarmos estes resultados como inovação própria, ou externa ao humano. Ou seja, o que temos para já, do meu ponto de vista, ainda é conhecimento produzido por meio de ferramentas que são parte da Cultura. Veremos como evolui depois tudo.

Domingos diz-nos que cada nível destes representou sempre aumento de velocidade na produção de novo conhecimento.

Domingos prossegue a discussão apresentando então as 5 grandes metodologias para descobrir o conhecimento que hoje estão a ser utilizadas pelos criadores de ML: "Symbolists, Connectionists, Evolutionaires, Bayesians, Analogizers". O livro dedica uma secção completa a cada área, e aqui tenho de dizer que nem sempre foi fácil seguir Domingos, mas também porque não quis dedicar o tempo suficiente que cada uma das secções requereria se eu estivesse verdadeiramente motivado para aprofundar o estudo do ML. Se a motivação e a necessidade estiverem presente, o livro com mais algumas pequenas pesquisas na web poderá ser fundamental para ajudar quem deseje entrar no domínio. Aproveito para deixar aqui a abordagem proposta por cada uma das 5 variantes:

1. Symbolists - Logic - Inverse Deduction
Busca por preencher as falhas no conhecimento existente. Começa-se por um conjunto de premissas e conclusões e faz-se dedução invertida para tentar descobrir o que falta.

2. Connectionists - Neuroscience - Backpropagation
Emulação do cérebro, também conhecido por "deep learning", em que se criam redes artificiais de neurónios que desencadeiam relações a partir das conexões.

3. Evolutionaires - Evoluationary Biology - Genetic Programming
Simulação da evolução, busca-se emular o funcionamento e lógicas do DNA.

4. Bayesians - Statistics - Probabilistic inference
Redução Sistemática de Incerteza, utilizando a probabilística.

5. Analogizers - Psychology - Kernel machines
A busca de semelhanças entre anterior e atual, com vários modelos para encontrar as semelhanças.

Esquema retirado da rede.

Como podemos ver, estes são alguns dos métodos que temos utilizado para produzir conhecimento sobre a realidade e que estão agora ao serviço das máquinas. O desejo dos investigadores da área, de construir um algoritmo mestre que possa de algum modo construir os seus próprios métodos de aprendizagem, não é mais do que a singularidade discutida por Ray Kurweil, correspondente a um dos maiores medos da nossa espécie. O momento em que as máquinas se tornem conscientes e passem a ser como nós, ou pior ainda, nos ultrapassem, seguindo o "Homo Deus" de Harari. Domingos é bastante otimista neste sentido, e diz ter dúvidas sobre essa possibilidade. O principal argumento que apresenta é a "falta de vontade" da máquina. Diria que há alguns anos teria concordado, hoje não. A vontade não é algo não implementável, menos ainda num sistema autónomo com capacidade para aprender. Se existe algo que não vai faltar às máquinas é a vontade, porque implementadas as necessárias rotinas para continuar a aprender, elas tenderão a incutir vontade. E não faltam notícias (1, 2) nos últimos anos sobre situações destas, em que os sistemas de ML desatam a realizar coisas inesperadas, seguindo aquilo que a sua aprendizagem os vai motivando a fazer.

Para quem quiser entrar desde já nesta discussão sem ter de esperar pelo livro, o Pedro Domingos fez uma comunicação na Google muito boa, na qual resume todo o livro em 50 minutos. Aconselho vivamente e deixo-a aqui abaixo.

Pedro Domingos "The Master Algorithm" (2015) na Google

Vygotsky: Imaginação e Criatividade

Quanto mais leio Vygotsky (1896-1934) mais rendido ao seu trabalho fico. Impressiona-me como conseguiu ele num tempo em que a psicologia era ainda algo bastante rudimentar desenvolver todo o seu trabalho com tanto método e objetividade. E se pensarmos que ele foi contemporâneo de Freud (1856-1939) impressiona ainda mais ver como não se deixou seduzir pela psicanálise, menos ainda pelas suas metodologias (ou ausência delas) para produzir o seu contributo. E por fim, mas não menos impressionante, é sabermos que todo o trabalho que nos deixou, e é bastante, foi criado em apenas 10 anos de vida, tendo morrido com apenas 37 anos. Neste livro "Imaginação e Criatividade na Infância" (1930) ataca duas das suas áreas centrais de interesse: a psicologia da arte e a psicologia do desenvolvimento. Assim ao longo das 100 páginas somos brindados com um conjunto de teorias, conceitos e explicações sobre o modo como a criatividade e a produção artística surge na criança, e se desenvolve no adolescente e adulto.


Não farei uma análise crítica do livro, move-me mais o interesse de sublinhar e reter o conhecimento apresentador Vygotsky. Deste modo destacarei aqui três secções do livro: uma primeira dedicada à definição da criatividade; uma segunda relativa ao processo criativo em ação; e uma terceira sobre o modo de potenciação da criatividade. Assim, sobre o primeiro ponto, Vygotsky dedica-lhe todo o primeiro capítulo, no qual acaba por discutir em profundidade não apenas a criatividade mas também a fantasia que é algo que Bruno Munari defende também como central na criatividade, e já aqui tinha dado conta a propósito do seu livro "Fantasia" (1977).

O que é a criatividade (ver capítulo 1)

"Qualquer ato humano que dá origem a algo novo é referido como um ato criativo, independentemente do que é criado: pode ser um objeto do mundo exterior ou uma construção da mente ou do sentimento que vive e se encontra apenas no homem. Se observarmos o comportamento do homem e toda a atividade que desenvolve, com facilidade reparamos que podemos distinguir dois tipos de atividade. A primeira, que podemos designar de reprodutiva ou reprodutora, está associada, de modo intrínseco, à nossa memória; a sua essência consiste no facto de o homem reproduzir ou repetir modos de comportamento já anteriormente elaborados e produzidos ou ressuscitar traços de impressões anteriores." (p.21)

"Além da atividade reprodutora, é fácil notar no homem outro tipo de atividade que combina e cria. Quando eu, por imaginação, desenho um quadro do futuro, digamos, a vida do homem na sociedade socialista, ou um quadro de uma parte da vida passada e da luta do homem pré-histórico, em ambos os casos, não repito impressões vividas por mim outrora. Não restabeleço simplesmente os traços de excitações nervosas pretéritas que chegaram ao meu cérebro; na realidade, eu nunca vi fosse o que fosse nem desse passado, nem desse futuro, e, no entanto, posso imaginá-lo, formar uma ideia, uma imagem ou um quadro." (p.23)

"O cérebro não é apenas um órgão que se limita a conservar e reproduzir a nossa experiência passada, ele é igualmente um órgão combinatório, que modifica criativamente e cria, a partir dos elementos da experiência passada, novas situações e novos comportamentos. (..) À atividade criadora baseada nas capacidades combinatórias do nosso cérebro, a psicologia chama imaginação ou fantasia." (p.23-24)


Como se processa o ato criativo (ver capítulo 3)

"Antes de criar a personagem de Natacha em Guerra e Paz, Tolstoi teve de detetar as características particulares das duas mulheres que lhe eram próximas; se não o fizesse, não as conseguiria misturar ou fundir na personagem de Natacha. A esta escolha de traços individuais e o abandono de outros podemos na verdade denominar dissociação. Este processo é muito importante em todo o desenvolvimento mental do homem, serve de base do pensamento abstrato e é o fundamento da formação de conceitos." (p.48)

"Vemos deste modo que o exagero, tal como a imaginação, de um modo geral, é tão necessário na arte como na ciência. Não fosse esta capacidade, que se manifestava de modos tão divertidos no conto da menina de cinco anos e meio, a humanidade não seria capaz de criar a Astronomia, a Geologia e a Física.
A parte constituinte seguinte nos processos imaginativos é a associação, ou seja, a junção dos elementos dissociados e alterados. Como já foi notado anteriormente, esta associação pode ter lugar sobre bases diferentes e tomar formas diferentes, que vão da união puramente subjetiva de imagens até à junção científica objetiva, como a que evidencia, por exemplo, a representação geográfica." (p.52)

"Qualquer inventor, mesmo que seja um génio, é sempre o produto do seu tempo e época. A sua criatividade parte de necessidades que foram criadas antes dele e apoia-se nas possibilidades que residem fora dele. É por isso que notamos uma sucessão rigorosa na história do desenvolvimento da técnica e da ciência. Nenhuma invenção ou descoberta científica surge antes de se criarem as condições materiais e psicológicas necessárias para o seu surgimento. A criatividade representa um processo histórico contínuo, em que toda a forma subsequente é definida pela anterior. É exatamente isto que explica a distribuição desproporcional dos inovadores e cientistas entre diferentes classes sociais. As classes privilegiadas dão incomensuravelmente uma percentagem maior de criadores na ciência, na técnica e na arte, porque, de facto, nestas classes existem mais condições para a criação." (p.55)


Os requerimentos da Criatividade (ver capítulo 4)

"Tudo isto, no seu conjunto, serviu de base para afirmar que a fantasia na idade infantil é mais rica e variada do que a fantasia no adulto. No entanto, esta opinião não encontra fundamentação na investigação científica. Sabemos que a experiência da criança é mais pobre do que a experiência do adulto. Sabemos também que os seus interesses são mais simples, elementares e mais pobres; por fim, a sua relação com o seu contexto é igualmente menos complexa, desprovida da precisão e variedade do comportamento da pessoa adulta, sendo que todos estes fatores são importantíssimos definidores do trabalho da imaginação. A imaginação na criança, como mostra esta análise, não é mais rica, mas mais pobre do que a imaginação do homem adulto; ao longo do processo de desenvolvimento da criança também se desenvolve a imaginação e atinge a maturidade na idade adulta." (p.58)

"a imaginação, ao longo do seu desenvolvimento, passa por dois períodos divididos por uma fase crítica. A curva IM representa o desenvolvimento da imaginação no primeiro período. Eleva-se bruscamente e depois, durante bastante tempo, mantém-se no nível atingido. A linha RO, a tracejado, representa o percurso do desenvolvimento da inteligência ou do raciocínio. Este desenvolvimento começa, como se pode ver na figura, mais tarde e aumenta mais lentamente, porque requer uma grande acumulação de experiência e uma maior complexidade na sua elaboração. É só no ponto M que as duas linhas do desenvolvimento da imaginação e do desenvolvimento da inteligência coincidem (..) "A partir do momento do encontro das duas curvas, a da imaginação e a do pensamento no ponto M, o desenvolvimento posterior da imaginação segue, como mostra a linha MN, sensivelmente paralelo à linha do desenvolvimento do pensamento XO. A divergência típica da idade infantil desaparece; a imaginação, estreitamente associada com o pensamento, segue-o agora ao mesmo passo." "uma outra variante, que na figura está simbolizada pela curva MN’, que decresce rapidamente «A imaginação criativa diminui e isto é o caso mais frequente. A exceção é devida apenas aos mais dotados de imaginação talentosa, a maioria dos quais entra a pouco e pouco na prosa da vida quotidiana, enterra os sonhos da juventude, considera o amor uma quimera, etc.»" (p.60)

"A criança pode imaginar muito menos coisas do que um adulto, mas acredita mais nos produtos da sua imaginação e controla-os menos, e por isso a imaginação, no dia a dia, no sentido comum da palavra, isto é, algo de irreal ou inventado, é certamente maior na criança do que no adulto. No entanto, não só o material a partir do qual se constrói a imaginação é mais pobre na criança do que no adulto, como também o caráter das combinações que se juntam a esse material é, na sua qualidade e variedade, inferior em relação às combinações realizadas pelo adulto." (p.61)


A tradução foi feita por João Pedro Fróis a partir do russo. Do que comparei com a versão inglesa, posso dizer que a tradução portuguesa é não só cuidada como mais detalhada.

setembro 06, 2018

O tarot de Byung-Chul Han

Há uns anos sentei-me numa mesa com uma senhora que lia cartas de tarot, fiz uma pergunta à qual fui presenteado com várias perguntas, a que fui "compelido" a responder, ao que se sucederam várias supostas respostas ou histórias. Quando saí de lá e ao longo dos dias seguintes, pouco tempo dediquei à alegada resposta apresentada à minha dúvida, fiquei-me mais pelo dissecar da Arte do Tarot, que como já devem ter percebido acima, consiste essencialmente em buscar elementos, baralhar e voltar a dar, socorrendo-se de boas capacidades da arte de contar histórias para gerar uma narrativa estruturada e credível, esperando que a crença do ouvinte faça o resto. Ora isto mesmo foi o que senti com Byung-Chul Han, que parece estar a reciclar discussões com 20 e mais anos, juntando-lhe uns pozinhos de atualidade que lhe conferem uma aparente nova relevância.


De modo mais sério e racional, Byung-Chul Han pega em fenómenos que se vão sucedendo no mundo do online, analisa com base em algumas outras leituras e conhecimento próprio sedimentado, retira algumas conclusões a partir do que cria grandes teorias genéricas, no abstrato, que supostamente depois podem ser aplicadas a todo e qualquer fenómeno que aconteça no mundo do online. Sendo interessante a leitura, no final de cada texto ficamos como quando começámos, pois se existe algo a que o online é pouco dado, é a generalizações. Se bem que não é o online, é quase tudo. Este tem sido o meu grande problema com a Filosofia nos últimos 20 anos. Há medida que me vou especializando, e ganhando conhecimento sobre determinadas áreas, mais me custa ler abstrações criadas com base em generalizações latas.

Han, Byung-Chul,  (2016), "No enxame: reflexões sobre o digital", Relógio D’Água, Lisboa

Diga-se que este não é um problema só da Filosofia, faz parte da nossa forma de estar no mundo, que por ser amplamente complexo e variável não dá muito espaço para que se individualizem soluções, correndo-se o risco de tender para o infinito. Veja-se a mais recente discussão no mundo da medicina e farmácia ou da educação, em que se vem tendendo a defender soluções o mais individualizadas possíveis. Se bem que no caso da Filosofia não me parece existir um problema de oferta e procura, a não ser que se pretenda aumentar o número de leitores!

Em termos mais concretos. Han discute a destruição do respeito pelo anonimato, discute a destruição da mediação e do gatekeeping, tudo como se fosse algo recente e que tivesse agora sido descoberto, atacando com todo o mesmo argumentário que tantos fizeram ao longo das últimas décadas. Não esqueçamos que a teorização sobre comunidades virtuais e a condição pós-moderna tem para cima de 30 anos. Por outro lado, com tanto a acontecer, Han não foi capaz de ir além de muitas dessas visões apocalípticas. Aliás, não deixa de ser interessante como mais para o final do livro Han cita abundantemente Vilém Flusser, mas não para o seguir, antes para dizer que as suas visões não se concretizaram! O que se estranha, já que quando analisados, o facto da comunicação passar a bidireccional não conduz automaticamente a nenhuma destruição das representações que arrastam as massas. Se assim não fosse, o próprio nome de Byung-Chul Han enquanto filósofo nem sequer se teria chegado a construir. As massas mesmo sendo mais individualizadas, não deixaram de ser massas, e a mediação continua a fazer-se sentir, talvez mais do que nunca, pelo poder económico que a produção cultural adquiriu na última década por força da necessidade de inovação e criatividade inerentes às lutas num mundo globalizado.

Vejamos, poderia existir uma Apple, a "first trillion dollar company", ou superproduções milionárias como a série "Game of Thrones", o filme "Avengers", o videojogo "GTA", e porque não as mais de dez temporadas do programa de televisão das Kardashians, e a nível nacional e saindo daquilo que seriam os meios tradicionalmente de massas, o Wuant e a Sea3po, sem essas massas sem os gatekeepers que direcionam para esses fenómenos massivos que emergem da multidão? Ou seja, poderiam estes fenómenos tornarem-se universais como se tornaram sem todo um trabalho de mediação (publicidade e marketing) e gatekeeping (acesso a canais privilegiados)?

Han propõe o conceito de "enxame" para estas novas massas, o enxame sem alma, porque de tão individualizada nada os representa. Mas até a própria metáfora é fraca, o enxame não é individualizado, é uma das maiores obras de coletivismo da natureza, tal como o formigueiro. Todos trabalham para um mesmo fim, todos respondem da mesma forma aos mesmos estímulos, todos seguem sem questionar. Ainda que aquilo que haveria aqui a concordar é que, as abelhas, motivadas pelo design do seu comportamento instintivo, seguem sem necessidade de maestros. O seu comportamento produz, pela emergência (esforço individual não direcionado que surte frutos concertados) o enxame, tal como o favo e a colmeia. Assim o enxame é já um resultado da união de interesses idênticos de uma massa, que pode não ser regulada por ninguém, mas é regulada pela inerência comportamental. Do mesmo modo, nós humanos tendemos a ser regulados por comportamentos que nos impelem para o outro, que nos subjugam pela empatia, e nos fornecem prazer e recompensa por via de fenómenos como o seguidismo e o culto.

Existem momentos no livro, que mais me parece estar a ler uma tese de mestrado de um qualquer aluno de Ciências da Comunicação. Frases como:
"Hoje já não somos meros recetores e consumidores passivos de informações, mas seus emissores e produtores ativos. Já não nos basta consumir passivamente informações, mas queremos produzi-las e comunicá-las de modo ativo." (p.27) 
"Hoje, as imagens não são apenas cópias, mas também modelos. Procuramos refúgio nas imagens para nos tornarmos melhores, mais belos, mais vivos". (p.39)
"A comunicação digital assume a forma não só de espectro, mas também de vírus. É contagiosa, porque se produz imediatamente no plano emocional ou afetivo (..) A escrita, por seu turno, é demasiado lenta para tanto." (p.69)
De certa forma, o problema de Han acaba por se reduzir às parcas leituras no domínio da comunicação, surgindo Barthes amiúde, um dos grandes propositores da narrativização do social, mas manifestamente insuficiente para o que Han pretendia aqui analisar. No seu tempo a Semiótica foi não só novidade mas gerou grande adesão com as suas leituras e interpretações abrindo-nos o apetite pelo decifrar do real proposto em modos narrativos acessíveis. Mas hoje, usar este mesmo tipo de ferramentas é curto, muito curto. Onde fica a imensidade do trabalho desenvolvido pelas ciências sociais desde todo o levantamento empírico quantitativo e qualitativo a toda a evolução da teorização psicológica suportada pelas novas tecnologias e métodos fornecidos pelas neurociências?

Claramente que no meio de tudo isto surgem ideias luminosas que me despertam e fustigam o pensar, mas porque nada é aqui desenvolvido, ficando-se tudo por textos curtos de 2 ou 3 páginas, rapidamente descarto porque me questiono se a frase, a tal ideia apresentada, não é mais do que uma interpretação minha daquilo que ele apenas hipoteticamente quereria dizer.

Avicii: Necessidades e Realização Pessoal

Acabei de ver o documentário "Avicii: True Stories" (2017) que recomendo vivamente a quem tiver interesse nas indústrias criativas, e claro no mundo da música. O melhor do filme é conseguir traçar toda a curva evolutiva do criativo, enquadrando a sua proveniência, valores e mundo, enquanto coloca a nu o desenlace quase natural que viria a acontecer apenas um ano depois do filme lançado. Aliás, em vários momentos, alguns dos entrevistados quase parecem falar como prenúncio. Existem algumas notas sobre o filme e Avicii que quero aqui deixar, ainda que não sejam nada de muito novo, são mais assunções sobre o processo criativo, o seu progresso, e potencial embate assim como algumas alternativas a esse embate.




Não existirá, em 2018,  quem não tenha ouvido uma melodia do músico, e isso dá conta do modo como ele impactou o planeta à sua passagem. Se isso se deve à excelente equipa de promoção e divulgação do seu trabalho, deve-se ainda mais à sua total obsessão com a arte. Existem vários momentos no filme em que Avicii me recorda Cristiano Ronaldo (entre tantos outros, mas também imensamente mediático e contemporâneo). 16 ou mais horas em cima da criação, sempre a aperfeiçoar, sempre à procura do seu melhor. Se Ronaldo anda sempre com a bola, Avicii andava sempre com o Mac (nem poucas horas depois de uma operação como se vê nesta imagem).


A necessidade criativa é algo absolutamente intrínseco e que salta à vista nos exemplos de maior sucesso, com pessoas que vivem e respiram aquilo que fazem. Conseguem amar mais o trabalho que qualquer outra pessoa, mesmo mais do que a si próprios. Deste modo acabam transcendendo-se, e em consequência transcendendo os seus frutos, criando o novo, o nunca visto, o original. Começam pela cópia e pelo remix, mas em pouco tempo, de tanto obsessivamente criar, acabam a inventar, a inovar.

O diagrama em pirâmide surgiu da teoria psicológica de Abraham Maslow sobre a Hierarquia das Necessidades, publicada em 1943

Avicii fez, entre 2008 e 2016, mais de 800 espetáculos.

O documentário é bom porque mostra também o outro lado da criatividade desenfreada, em busca da constante ultrapassagem de si, até ao embate na parede. Avicii bateu na parede quando percebeu que não tinha mais nada para ultrapassar. Os concertos deixaram de o fazer feliz, e tudo passou a ser stress e ansiedade. Avicii já não tocava porque interiormente assim o desejava, mas apenas porque era essa a vontade de outros, o que acabou a destruir a sua força motivacional (cf. com a "teoria da auto-determinação" de Deci e Ryan). Por outro lado, e seguindo Maslow e a sua Pirâmide das Necessidades Humanas (ver diagrama acima), Avicii cumpriu todas as necessidades, não havia mais nada na pirâmide para ele. A realização pessoal foi total, estando todas as outras necessidades também plenamente garantidas, o que fazer quando nos realizámos plenamente até ao topo?

Provavelmente a única maneira de lidar com tal passa por desenhar novos sonhos, de preferência impossíveis. O Cristiano Ronaldo tem um Mundial para ganhar, Avicii precisava de algo que lhe garantisse curiosidade e desejo, e desse modo "necessidade". Não existindo tal dentro da arte, é preciso abrir as palas da realidade, ver para além do nicho de realidade a que nos deixámos sucumbir. Avicii terá cometido o erro de se fechar no mundo da música, ou de se rodear de pessoas que limitaram o seu mundo e universo. Viajava e visitava lugares belos, paradisíacos e em parte inacessíveis, mas nada disso serviria a motivação, isso não passavam de recompensas extrínsecas, totalmente incapazes de puxar pelo seu interior. Avicii precisava de ter encontrado outro objeto em que pudesse descarregar toda a sua energia criativa, que o desafiasse a ir além de si próprio, que lhe colocasse obstáculos reais. Tinha demasiada energia, tinha necessidade de se realizar em algo que o estimulasse, mas isso só poderia ter chegado por via da dificuldade, da impossibilidade. Pensemos em Arthur Rimbaud.

Tim Bergling, aka Avicii, [1989 - 2018]

agosto 31, 2018

Ilusões Perdidas de Balzac

As ilusões discutidas são tantas que é difícil fazer uma resenha sobre tudo aquilo que trespassa este livro, mas diga-se que sem uma reflexão sobre o que se leu, uma análise do todo e daquilo que o autor parece querer dizer, podemos acabar por ficar à porta das intrigas e conflitos, muito bem urdidos, mas não propriamente o mais consequente da obra. A história terá uma base forte autobiográfica, mas mesmo assim Balzac não se limita ao seu pequeno mundo, coloca em questão um jogo de caminhos, encruzilhadas e soluções que nos falam da teia com que a sociedade nos enlaça e da qual cada um de nós tem de, da melhor forma, desenvencilhar-se. "Ilusões Perdidas" (1843) não é um simples "coming of age" ou "bildungsroman", é antes um mapeamento das diferentes possibilidades proporcionadas para o devir em sociedade.


A obra centra-se em dois personagens, aparentemente opostos, mas muito similares em termos de desejos, motivados não pelo que em si sentem, mas pelo que a sociedade lhes parece exigir, pelo que o mundo lhes pede que sejam, façam, devenham. Existe toda uma crítica não aos personagens, mas aos seus modelos do mundo, à ideologia que os sustenta, que os faz rodar e viver. Se David Séchard sonha em inventar um novo tipo de papel, não é porque o seu mote seja a criatividade ou a invenção, mas é apenas porque lhe renderá fortuna. Já Lucien parte à procura de aclamação para o seu romance, quando aquilo que na verdade lhe interessa é a aclamação da sua pessoa e as benesses que essa aclamação lhe possa oferecer. De maneiras diferentes, ambos acabam compreendendo que o mundo é complexo e difícil de domar, e se David parece aceitar e deixar-se domar, Lucien Chardon não aceita, percorrendo a saga igual a si próprio do início ao fim, e até para além deste livro (este livro tem uma segunda parte, menos conhecida, em "Esplendores e Misérias das Cortesãs" (1847)). Se num dos caminhos as ilusões se perdem e a resignação toma lugar, no outro caminho, as ilusões que se perdem não são as de quem segue o caminho, mas as de quem, como nós, vai acreditando que com os erros se aprende, e que tarde o cedo quem erra e sofre corrigirá o caminho, até que compreendemos que existe quem nunca aprende, perdendo nós a ilusão de ver a pessoa crescer e transformar-se.


Uma das questões que me coloco face a Balzac é o porquê de uma "Comédia Humana" com quase uma centena de volumes. Balzac acaba por explicar nas suas próprias obras, ao construir personagens a partir da realidade vivida e experienciada. Porque se Rastignac (de "Pai Goriot") e Lucien ("Ilusões Perdidas") são ambos jovens à procura de ascensão social parisiense, Goriot (o pai de "Pai Goriot") e Jérôme-Nicolas (o pai de "Ilusões Perdidas"), são ambos pais dessa “Comédia”, mas em polos afetivos completamente opostos. Aquilo que mais nos toca em "Pai Goriot" é a figura desse pai, que aqui Balzac mostra de ângulo diametralmente oposto, totalmente ignóbil e desprezível. Por outro lado, Balzac não se coíbe de ir reutilizando personagens de uns romances para os outros, Rastignac surge aqui e conversa com Lucien, tal como o prisioneiro fugitivo de "Pai Goriot", que depois assumirá o papel de protagonista na segunda parte das Ilusões, em "Esplendores e Misérias das Cortesãs". Balzac concebeu o seu mundo literário, a "Comédia Humana", como um mundo paralelo, espelho da realidade, mas construída à sua vontade e desejo, permitindo-lhe enfatizar, pintar, o mundo como ele próprio o via. Um desses destaques é o choque entre a pobreza e a riqueza, e os modos como se passa de um lado para o outro, daí que a ascensão social seja uma constante nos seus livros.

Tendo falado dos principais personagens, David e Lucien, quero apenas destacar os seus dois mundos, duas realidades tão distintas, mas que pouco ou nada mudaram em 175 anos. Por um lado, David tentando inventar e patentear uma revolução tecnológica no mundo do papel (em nada diferente de uma Apple, Facebook ou Google), por outro, Lucien tentando afirmar-se no mundo das artes, dando conta do quão estas se definem pela rede de amizades, mais do que pelo mérito. Ambos em busca da ascensão, da liberação da miséria, em busca de algo melhor, respeitando as regras, tentando aprender com os seus erros. Existe aqui uma luta dual que Balzac explora.

Marcel Proust agarrou-se à segunda parte, à arte e sociedade. Em certa medida fico a pensar que Proust escreveu "Em Busca do Tempo Perdido" como resposta a "Ilusões Perdidas". Ambos, Proust e Balzac, criticam o vazio da sociedade e o modo como só se é aceite e aclamado estando bem posicionado nas redes de "amigos" (as cunhas, o networking, as alianças, os lados da barricada). Mas Balzac parece quase submeter-se a esse desígnio, aceitando-o como uma inevitabilidade das sociedades humanas, parecendo desistir da possibilidade de poder existir algo mais na arte. Ora Proust escreve 7 tomos, abrindo e fechando um ciclo de ideias, que explicam o que tem a arte e a literatura para nos oferecer. Proust vai em busca da transcendência do sentido da literatura, para nos levar a acreditar no desígnio da mesma. Se Balzac atira tudo para a lama, Proust levanta e ergue de novo o edifício da arte literária, mostrando um mundo que só a ela pode oferecer, acabando deste modo a demonstrar como a própria obra de Balzac encarna em si mesmo essa transcendência.

No outro caminho, Balzac persegue os ideais capitalistas, da mais valia, da diferenciação e ganho de valor face à concorrência, colocando mesmo David a explicar a diferença entre o mercado Europeu e o Chinês, num discurso que se fosse hoje lido num jornal, seria aceite como tendo sido expresso nos nossos dias. Se Balzac parece a momentos acreditar nas capacidades inventivas do humano, na capacidade de nos deslocarmos no sentido do melhor para todos, de um suposto progresso, esse mesmo caminho surge aqui amputado, e agora não apenas pela falta de conhecimentos e rede, mas pela banca e pelo estado. A banca que empresta sob a condição de receber o dobro daquilo que emprestou, e o estado que tudo faz pelos direitos de quem detém o poder e empresta, esquecendo os mais frágeis e em piores condições de cumprir, impondo-lhes mordaças que os afastam da sociedade justa que tanto proclamam. Por isso mesmo a admiração expressa por Marx várias vezes à “Comédia” de Balzac.
"A mão de obra não vale nada na China; ali uma jornada vale três soldos, e assim os chineses podem pôr o seu papel, folha a folha, ao sair da forma, entre as lâminas de porcelana branca aquecidas, por meio das quais o prensam e lhe dão esse brilho, essa consistência, essa leveza, essa suavidade de cetim que o torna no primeiro papel do mundo. Pois bem! É preciso substituir o processo chinês por uma máquina. Com as máquinas conseguiremos resolver o problema do baixo custo que a China consegue à conta do baixo preço da sua mão de obra." (p.119)
“Como um grande estabelecimento bancário tem todos os dias, em média, uma ‘Conta de Devolução’ num valor de mil francos, recebe diariamente vinte e oito francos pela graça de Deus e pelas leis da Banca, uma formidável realeza inventada pelos Judeus, no século XII, e que hoje em dia domina os tronos e os povos. Por outras palavras, mil francos rendem então a esse estabelecimento bancário vinte e oito francos por dia ou dez mil e duzentos e vinte francos por ano. Se triplicarmos a média das ‘Contas de Devolução’, veremos que o rendimento é de trinta mil francos, vindo de capitais fictícios. Assim, não há nada que se cultive mais carinhosamente do que as ‘Contas de Devolução’.” (p.559)
As ilusões são atiradas pela janela, mas já sabíamos disso quando começámos a ler, estava escrito no título, mas nem por isso nos custa menos ver o quão desencantado Balzac se terá sentido para o escrever. "Ilusões Perdidas" pode já não ser atual em termos legislativos, mas deveria talvez ser uma obra obrigatória de leitura, não como mero grito de alerta aos jovens e seus sonhos de fama (pense-se no mais recente sonho de muitas crianças: ser YouTuber) mas como grito à sociedade nas suas múltiplas capacidades e necessidades — inventores, artistas, jornalistas, banqueiros — mas acima de tudo, governadores e políticos.
“É difícil (..) ter ilusões sobre qualquer coisa em Paris. Aqui há impostos para tudo, vende-se tudo, fabrica-se tudo, até mesmo o sucesso.”
Uma nota final sobre a leitura. As primeiras 50 páginas podem parecer paradas, Balzac tende a exceder-se na contextualização das personagens, e volta a fazê-lo sempre que alguma nova surge, mas o livro vai ganhando velocidade a ponto de se tornar imparável. Posso dizer que demorei uma semana para passar a primeira parte, mas num dia li toda a segunda metade.

julho 15, 2018

Humor com poder transformador

Acabo de ver uma hora inteira de stand-up com um único performer, e tenho de dizer que foi uma das experiências mais intensas que experienciei nas últimas semanas. Hannah Gadsby encheu a famosa Sydney Opera House para uma atuação de 60 minutos. Fala de arte, criatividade, género, política, fala de técnicas do storytelling, fala sobre o vitimismo e o poder, fala sobre pedofilia e reputação, fala sobre a raiva e o riso. É uma performance como nenhuma outra, por isso não admira o enorme buzz que está a gerar nas redes e nos jornais internacionais de referência. "Hannah Gadsby: Nanette" (2018) é uma experiência transformadora que recomendo absolutamente que vejam, homens, mulheres, heteros, homos e trans.

"Hannah Gadsby: Nanette" (2018), Netflix

Gadsby não conta apenas piadas, traz para o palco a sua vida, os seus dramas, a sua raiva e tensão. Como diz Gadsby, um performer não pode apenas dizer mal de si próprio, porque para contar uma história é preciso algo mais, é preciso uma conclusão, uma chegada, uma lição. E ao longo desta hora, que vivemos de forma tão intensa apenas a partir das palavras, histórias e vida desta artista, somos conduzidos pela mão, através de todo o arco dramático. E Gadsby é brilhante, porque nos conduz e controla a tensão de forma altamente precisa, e quando menos damos por isso, estamos ali presos pelo pescoço, de boca aberta, sem crer no que estamos a ouvir e a sentir.


Não sou grande seguidor de stand-up, vi alguns espetáculos, nada de grandes estrelas, mas acredito no que dizem alguns dos críticos e comediantes por esse mundo fora, temos aqui algo muito diferente, competente, poderoso, e acima de tudo transformador. A comédia não deve, nem pode servir apenas para passar o tempo, para entreter a mente, a comédia pode ser muito mais, se se decidir a contar a histórias. Esta é a conclusão da Hannah, e tendo em conta todo o meu trabalho com narrativa nas últimas duas décadas, não poderia estar mais de acordo com ela.


Quanto aos que se sentirem incomodados, ou atacados pelo espetáculo, peço que interiorizem, empatizem, compreendam o mundo a partir da perspectiva do outro, e perceberão que não há lugar para tal. Que há lugar sim, para mudar, todos. Porque é mais do que tempo de mudarmos.