agosto 02, 2019

Blueprint: Como o DNA nos faz como Somos (2018)

O prólogo de "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" de Robert Plomin diz várias coisas de entre as quais, a seguinte afirmação que se vai repetir ao longo de todo o livro, ainda que com ligeiras variações, mas apontando baterias sempre ao mesmo objeto:
“Genetics is the most important factor shaping who we are. It explains more of the psychological differences between us than everything else put together. For example, the most important environmental factors, such as our families and schools, account for less than 5 per cent of the differences between us in our mental health or how well we did at school – once we control for the impact of genetics. Genetics accounts for 50 per cent of psychological differences, not just for mental health and school achievement, but for all psychological traits, from personality to mental abilities. I am not aware of a single psychological trait that shows no genetic influence.”
Semenya foi esta semana proibida de correr em provas de atletismo se não tomar medicação que reduza a testosterona natural no seu corpo. Já sobre Phelps nunca nada foi dito sobre a sua fisiologia anormal (discussão abaixo).

Assim, e antes de lançar qualquer análise crítica ou tentativa de discussão quero dizer que sou grande defensor da variável genética. Acredito na relação 50/50 do impacto de cada domínio — natureza e ambiente — sobre aquilo que somos, ainda que por vezes tenda a deixar-me convencer que a natureza consegue dominar mais daquilo que somos do que a cultura e ambiente que nos vai moldando ao longo da vida. Por isso, não reagi violentamente ao livro como vi outros reagir, e como o próprio autor sabia que iria acontecer. Esta é uma guerra antiga, entretanto adormecida, mas a investigação em genética nunca parou e existem avanços significativos. Não apenas ao nível do controlo celular e do DNA, mas também de estudos longitudinais realizados. E Plomin é um dos investigadores mundiais com mais estudos no campo, tendo acompanhado várias comunidades, incluindo de gémeos, desde a nascença até aos 40 anos. Por isso existe neste livro muito que interessa a todos nós que estudamos domínios que lidam com o social, cultural e humano, e assim seja também defendido por outros.


Julgo que podemos dividir o livro em duas grandes partes: uma relacionada com a discussão daquilo de que somos feitos, e como a genética impacta sobre o indivíduo e a sociedade. E uma segunda parte, sobre a relevância e impacto da genética nas vidas dos indivíduos e sociedades nos tempos próximos. A primeira parte considero ser aquela que é mais relevante, porque nos leva a questionar vários modos de olhar a realidade. A segunda parte é aquela em que me junto ao coro de críticos, pelas razões que passarei a explicitar à frente.

Sobre a primeira parte, Plomin apresenta dados e estudos que suportam uma leitura com que estamos pouco habituados a ser confrontados no dia-a-dia nos dias de hoje, a da importância dos genes nas pessoas que somos. Por que não somos apenas aquilo para que trabalhamos, apesar de enquanto sociedade termos o dever de promover essa cultura, sabemos que essa é apenas meia-verdade, no entanto por todo o lado em nosso redor, parece muitas vezes preferir-se ignorar. Veja-se a parafernália de livros e estudos sobre talento de que tenho aqui vindo a dar conta: Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell; “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, e “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How” (2009) de Daniel Coyle. Sendo verdade que a genética não é alterável e não podendo transformar-se, talvez por isso mesmo muitos acreditem que mais vale não falar dela. Contudo, do meu ponto de vista isso é um erro. É um erro porque se aceitamos que não podemos mudar a nossa genética, então precisamos de compreender mais e melhor essa genética para enquanto sociedade, e individuos, a podermos aproveitar da melhor forma, e não colocar a cabeça debaixo da areia.

Existem muitas áreas onde isto é relevante, mas talvez a mais relevante de todas seja a Educação. Continuamos hoje, com tudo aquilo que já sabemos a tentar formatar crianças da mesma forma em escolas fabris. E o meu problema não são as escolas em si, ou o modo fabril, ou meu problema é a não diferenciação das crianças, porque se segue uma ideologia de todos iguais, quando sabemos que tal não existe. Porque quanto mais formatarmos o social, mais evidente a natureza tornará as diferenças. Claramente que as crianças têm a ganhar em andar em escolas com pares da mesma idade, mesmo com cargas genéticas completamente diferentes, incluindo crianças com necessidades especiais, nada contra isso. O problema não é a criação de socialização, colaboração e redes de suporte societal. O problema é colocá-los todos numa mesma sala, apenas por terem a mesma idade, a aprender todos o mesmos, é com isso que não me conformo. E não estou a falar de inteligência, estou a falar de algo muito mais relevante, mas mais complexo, mas ainda assim mais determinante, e que tem que ver com a personalidade (e que agora querem também moldar com o que dizem ser uma novidade educacional: as competências). A personalidade de cada um determina diferenças fundamentais no humano, e essas são profundamente genéticas, o que acaba dando razão a Plomin quando diz que a genética tem maior capacidade de prever o futuro de uma criança do que as variáveis sociais, já que essas não são duradouras, enquanto a genética está lá sempre. Ou seja, aquilo que somos à nascença é determinante para aquilo que podemos vir a ser, não sendo uma guilhotina, tem grande importância e é extremamente importante compreender aquilo que somos à nascença, não apenas para nos conhecermos melhor, mas para podermos guiar e orientar as nossas escolhas em função das nossas melhores possibilidades, e não em função de ilusões e sonhos que a sociedade nos quer vender a todo o momento.

Sobre esta discussão Plomin apresenta imensos estudos demonstrativos das variáveis genéticas, desde gémeos que são educados por famílias completamente díspares mantendo no entanto sempre as mesmas tendências genéticas que os levam a construir vidas e a ter sucessos imensamente próximos mesmo quando o ambiente prediria o contrário, dando conta da força genética sobre o ambiente. Noutros, dá conta do que diferencia as escolas privadas de elite das escolas públicas, que nada tem que ver com melhor ensino, melhores escolas, melhores professores, mas apenas e só melhor seleção genética. Tanto que Plomin não fala de escolas privadas, mas escolas seletivas. Naturalmente que se fazemos testes à entrada, e deixamos apenas entrar os que melhor reagem ao que pretendemos avaliar, as diferenças com instituições onde não há qualquer filtragem têm de surgir. Os estudos de Plomin vão mesmo ao ponto de desmontar as variáveis sociais construídas nesse entorno, demonstrando que não são elas que tornam o futuro desses miúdos auspiciosos, mas é a sua carga genética de partida.

Trazendo para a discussão dois exemplos. Repare-se no caso atual de Caster Semenya, que soube esta semana que estava impedida de participar em provas competitivas de atletismo da IAAF enquanto não tomasse medicamentos que lhe fizessem reduzir os níveis de testosterona!!! Por todo o lado vemos esta sede de normalização, da Escola à Empregabilidade, como se não pudéssemos ser apenas diferentes por assim ter nascido. Repare-se como ideologicamente isto é mesmo um contrassenso, já que exigimos a aceitação societal das diferenças, incluindo a aceitação da variabilidade de género, mas chegados a pontos em que a diferença genética atira para fora da normalidade pré-convencionada, obrigamos à reposição biológica das diferenças para manter o status quo social. Claro que Semenya representa um problema para quem organiza provas convencionais, porque tem um corpo “demasiado” masculino para as provas de mulheres, mas “demasiado” feminino para as provas de homens, o que a coloca em lugar nenhum dessas convenções. Por outro lado, e para nos fazer refletir, porque nunca se levantaram questões deste tipo no caso de Michael Phelps, sabendo que o seu corpo sai completamente fora da norma colocando-o num patamar bastante distinto dos demais.


Mas tudo isto é pouco novo, o que o livro traz de novo é a segunda parte, que discute uma nova abordagem à genética assente em grandes bases de dados, seguindo uma nova técnica chamada de "genome-wide association study" (GWAS), sendo aquilo com que menos concordo, e que também tem sido mais atacado (review na Nature). Pensar a criação de sistemas de avaliação genética envolvidos em algoritmos de previsão futura, para a manipulação do bloco genético gestacional (ou seja, o famigerado design de DNA de bebés), em função desses algoritmos é completamente absurdo. E não estou a falar do medo de "Gattaca" (1997),  não é apenas um problem ético, embora por esse lado já fosse suficiente para cancelar qualquer processo destes, mas porque estamos a falar de algo que impacta em 50%, ou seja, transformar algo que sabemos que nunca terá impacto acima dos 50% não é fazer design, é jogar na roleta russa. Mas é pior, porque 50% é apenas o máximo a que se poderia chegar, já que em termos efetivos, e seguindo os métodos aqui propostos, estamos a falar de 10 a 20% de previsibilidade de traços, que o autor defende como sendo já algo muito relevante por ir além de que qualquer outro elemento de previsão (Plomin defende, por comparação, o género só consegue dar previsibilidades de 1% de variação). Pois seja, mas sendo maior continua a nada valer, 10% são completamente diluídos num mar de mundo dotado de acaso. Sobre esse acaso, o da variabilidade física do meio, indo a um extremo podemos pensar: de que adiantaria desenhar seres biologicamente imortais se eles pudessem simplesmente morrer quando atravessam uma estrada, que paradoxos, que caixas de pandora estaríamos a abrir?

Se o livro se lê bastante bem, e abre sempre discussões para nos debatermos, confesso que a certa altura comecei a sentir uma das críticas que mais tem sido feita a Plomin, e do qual todos nós padecemos, a confirmação de viés. Para quem estuda genética todo o tempo, vai-se tornando cada vez mais natural ver tudo pelos olhos da genética. Para Plomin, é possível explicar praticamente todas as variáveis ambientais como sofrendo de influência genética. Ou seja, seríamos genes, nada mais do que genes. Plomin, na sua senda e defesa da sua dama vai a ponto de afirmar que o ambiente — os pais, as escolas, a política — “matter, but they don’t make a difference”, porque segundo ele, são variáveis “unsystematic and unstable, so there’s not much we can do about them”.  Como se bastasse atirar as crianças ao leões e deixar que os genes se desenvencilhassem. Esquece Plomin que ao fazer tal estaria simplesmente a ignorar a 50% da variabilidade humana, mas pior ainda, estaria a esquecer o enorme impacto do cuidado humano à nascença e todas as variáveis sociais já amplamente demonstradas por estudos (o mais recente é deste mês) com muito maior valor empírico do que previsões de 10%.

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