abril 10, 2023

"Pachinko", emigração e humildade

"Pachinko" é maravilhoso pela forma como nos enreda na saga de uma família de emigrantes coreanos que migra para o Japão no início do século XX, levando-nos a experienciar os efeitos profundos dessa decisão sobre múltiplas gerações posteriores. É uma lição de História sobre o modo intolerável como o Japão tratou os seus vizinhos no século passado, com Min Jin Lee a dar conta do mais profundo racismo japonês, algo de que já aqui tinha dado conta na relação com os vizinhos chineses. "Pachinko" não é um grito ativista, como “The Rape of Nanking” (1997), é uma novela de ficção histórica, dá-nos a conhecer pessoas "reais" repletas de medos e desejos. Mas através da imensidão de personagens apresentadas consegue transportar-nos para cada uma das décadas desse século, consegue acima de tudo dar conta de um modo de estar que aparenta ser próprio da emigração coreana, mas que aproximo tremendamente da emigração portuguesa ocorrida nesse mesmo século para a Europa. É um modo baseado numa enorme humildade e simultaneamente numa vontade de trabalhar e aprender para oferecer às gerações seguintes mais do que aquilo a que tiveram acesso. Pessoas com muito pouco, mas dotadas de enorme resiliência, capazes de aguentar a humilhação, a infâmia, e ainda assim continuar a remar para que os seus, a sua família, possa encontrar um porto seguro. Quando chegamos ao fim da odisseia de Sunja, a protagonista, é impossível não sentir o peso das decisões que cada geração foi forjando, mas também do acaso que contribuiu para a transformação de cada uma das personagens, ecoando um sentimento de orgânico, de vida vivida, plena de significado. 

Seria fácil para Lee usar e abusar da tragédia, algo que abunda, mas nunca o faz. Por vezes, somos surpreendidos com um murro no estômago, mas Lee desvia dali o foco. Cabe ao leitor dar significado ao que está a ler, e não ser subjugado pelo sentimentalismo imediato. Por isso, não se esperem acusações gratuitas contra o Japão e japoneses, mas elas estão lá. Ler, compreender e interpretar fará com que sintam um nó bem fundo com todo o normativo xenófobo e divisor de classes que contribui para a destruição interior de cada ser humano. Ainda assim, os personagens dotados de uma resiliência avassaladora, inspiram-nos e continuam a fazer-nos acreditar nesse humano, mesmo quando a alguns essa resiliência falta... Mas é de realismo que Lee nos fala, algo que se torna claro quando chegamos aos agradecimentos finais e percebemos que o livro esteve quase 30 anos em desenvolvimento, tendo sido suportado não apenas por pesquisa literária, mas também por muito trabalho de campo.

abril 07, 2023

Guerra do Peloponeso, 431 a.C. a 404 a.C.

"História da Guerra do Peloponeso" foi escrito no século V a.C por Tucídides, sendo por isso mesmo um registo histórico de incomensurável valor, mas é também um marco da História enquanto disciplina académica. Neste último sentido, fez-me compreender que apesar de na última década me ter dedicado a ler mais e mais História, na verdade continuo longe da mesma, em termos académicos. Interessam-me as histórias sobre a História, não me interessam tanto os relatos descritivos, mesmo que mais fidedignos ou verdadeiros. Não me move chegar “à verdade”, move-me mais a ideia de que aquilo que se conta é baseado numa realidade. Desde logo, porque mesmo num livro tão descritivo, tão emocionalmente neutro e objetivo, é possível denotar viés a ponto de hoje alguns historiadores o classificarem mesmo como apenas literatura. Claro que falo de um ponto de vista externo, não leio estas obras para documentar a minha investigação, se assim fosse falaria de modo distinto. Como leio apenas pelo prazer de ler, esse é maior quando a História usa o melhor da arte narrativa para chegar a nós, mesmo colocando em causa parte da sua factualidade que aceito bem quando é feito por via da especulação, mas não tanto quando pela mera invenção.

abril 02, 2023

Os Europeus e a cultura cosmopolita do século XIX

A experiência de "The Europeans" (2019) de Orlando Figes funciona como uma grande viagem cultural através de toda a Europa — da Rússia a Portugal — ao longo de todo o século XIX. Figes escolheu para companheiros de viagem: o ícone literário Ivan Turgenev, a renomeada cantora de ópera Pauline Viardot, e o seu marido Louis Viardot, crítico e historiador de arte. Três inseparáveis companheiros que percorreram toda a Europa durante as suas vidas, pondo em contacto as mais diversas culturas, dando assim suporte ao subtítulo: "Three Lives and the Making of a Cosmopolitan Culture". O registo apresenta uma simbiose perfeita entre a exposição de factos e o contar de histórias que poderiam quase ser ficcionais, quase checkovianas, mantendo-nos enredados ao longo das mais de 500 páginas. Figes faz-nos sentir nostalgia daquilo que não vivemos, nomeadamente quando dá conta do nascimento de correntes, de movimentos e renovados interesses da sociedade pela cultura e arte florescentes num tão diverso continente suportadas pela evolução tecnológica desse século, em particular os caminhos de ferro, o telégrafo, a imprensa, a fotografia, assim como a criação do copyright e do canône literário.

Lessico famigliare (1963)

Depois de uma certa desilusão com Elsa Morante, com "A História" (1974), agora foi a vez de Natalia Ginzburg, com "Léxico Familiar" (1963). Ambas autoras italianas recuperadas no início deste século XXI por força do êxito estrondoso de Elena Ferrante. Morante e Ginzburg são contemporâneas, viveram tempos muito diferentes dos de hoje, por isso dificilmente podem ser colocadas ao lado de Ferrante, mas se não bastasse, estão elas próprias nas antípodas uma da outra. Se Morante usa e abusa do sentimentalismo, Ginzburg usa e abusa do desapegamento. No entanto, a comparação com Ferrante é inevitável e resultado, para ambas, é pouco favorável.

abril 01, 2023

um problema de comunicação

Os livros "The Chaos Machine: The Inside Story of How Social Media Rewired Our Minds and Our World" (2022) e "Otherlands: A Journey Through Earth's Extinct Worlds" (2022) não têm qualquer relação entre si, mas se os juntei neste texto foi porque de formas opostas ambos quebraram uma regra básica da comunicação humana, a definição da audência para quem queriam falar. O primeiro pretende falar sobre um fenómeno novo, mas apresenta informação que qualquer pessoa minimamente interessada no tema já possui. O segundo pretende apresentar uma nova perspectiva sobre uma realidade distante da atualidade, mas não contextualiza a realidade distante, deixando o assunto à mercê apenas de quem estuda o tema.

março 26, 2023

O não-consciente de Cormac McCarthy

"Stella Maris" é o segundo volume da obra que Cormac McCarthy lançou em 2022, 16 anos depois do seu último livro, agora com 89 anos. Se no primeiro volume, "O Passageiro", nos introduziu a um mundo denso e complexo de ações humanas para as quais não parecia possuir uma ideia concreta a transmitir, "Stella Maris" é todo o contrário, quase vazio de ação, completamente focado naquilo que tem para dizer, ainda que o faça por meio de alguém em quem não podemos confiar totalmente, pelo diagnóstico de loucura a que está votada. É uma viagem científica realizada por meio de um vertiginoso diálogo entre um terapeuta e uma paciente, 20 anos, que desistiu de fazer o seu doutoramento em matemática para se auto-internar no hospital pisquiátrico Stella Maris.

março 19, 2023

"Eu, Cláudio" (1934)

"Eu, Cláudio" é de 1934, por isso se tiverem interesse em começar a ler sobre Roma Antiga e os seus Imperadores, podem começar por aqui. Na verdade, muito do que aqui está encontra-se espalhado por uma míriade de objetos culturais que criaram o imaginário do século XX sobre aquela época — desde as quezílias familiares aos assassinatos de imperadores, passando pela total insanidade de Calígula. Tendo lido muitas outras obras antes, soube-me a pouco, e por isso recomendo ainda mais que comecem por aqui. Ainda que se sinta alguma superficialidade, vale a pena a leitura pela acessibilidade da visão geral daqueles tempos, mesmo que o tom esteja demasiado impregnado pelo século XX. Por outro lado, enquanto romance deixa a desejar, já que investe muito mais na descrição do que na narração ou dramatização. Se quiserem algo mais imersivo, aconselho antes “Augustus” (1972) de John Williams, e para algo mais psicológico, "Memórias de Adriano" (1951). Mas se quiserem mergulhar diretamente na mente de um imperador então  nada melhor do que ler "Meditações" (180) de Marcus Aurelius.

março 11, 2023

"Tar" (2022) de Todd Field

"Tar" é mais objeto de design do que obra de arte, no sentido em que a direção sintetiza tudo de forma estrita para produzir determinadas emoções e determinadas conotações. Se Cate Blanchet faz um bom papel, nem por isso pode ser vista como o cerne da obra, já que toda a sua performance é controlada no detalhe pela direção e montagem. Repare-se na quantidade de elementos que vão sendo introduzidos em cena, ao longo das 2h30, para desviar ou obrigar a focar a nossa atenção, assim como na imensidão de espaços em que encontramos a protagonista, oferecendo-lhe apenas presenças fugazes. Lydia Tar é profundamente caracterizada pelo mundo que a envolve, em particular os sons, mas também tudo aquilo que os outros consideram sobre ela. Quase como se ela deambulasse ao longo do filme, e o diretor fosse colocando elementos à sua volta que nos obrigam a realizar conotações sobre quem ela é, como pensa e sente. 

março 05, 2023

Re-interpretando a História, segundo as nossas agendas

Não vou tecer elogios ao livro, "The Dawn of Everything: A New History of Humanity" (2021) porque tenta claramente ser mais do que aquilo que é, apesar de inexplicavelmente ter uma enorme quantidade de pessoas a tecer louvores, nomeadamente a crítica jornalística e autores de best-sellers. Mas também por força desse enorme suporte, não sinto qualquer obrigação de inibir a minha crítica. Até porque, todo o livro está escrito como um ataque direto a outros autores, nomeadamente três contemporâneos — Pinker, Harari e Diamond — e dois clássicos — Rousseau e Hobbes. Mas vai além quando nem sequer pára para criticar, mas simplesmente decide ignorar totalmente a ciência, começando por Darwin e a biologia, passando por toda a Física, e mais grave ainda, tendo em conta que se fala de comportamento humano, toda a Psicologia. Os autores, sentados no seu pedestal antropológico, julgam-se no direito de pescar casos isolados, feitos de variáveis não conforme, e tecer sobre estes interpretações para demonstrar aquilo que a sua agenda exige. Ignora-se na generalidade metodologias científicas de carácter empirista, baseando grande parte das deduções em ideias de autores que nunca passaram pelo crivo da revisão por pares. Mas para repescar esses autores existe sempre uma condição especial, suportada na ideia de que foram preteridos pelas grandes conspirações que conspurcaram a ciência iluminista — o colonialismo e o androcentrismo.

"Quixotically, Graeber and Wengrow expect readers to give serious consideration to a perspective on human origins that does not acknowledge evolutionary theory at all." -- Knight, 2022