março 05, 2023

Re-interpretando a História, segundo as nossas agendas

Não vou tecer elogios ao livro, "The Dawn of Everything: A New History of Humanity" (2021) porque tenta claramente ser mais do que aquilo que é, apesar de inexplicavelmente ter uma enorme quantidade de pessoas a tecer louvores, nomeadamente a crítica jornalística e autores de best-sellers. Mas também por força desse enorme suporte, não sinto qualquer obrigação de inibir a minha crítica. Até porque, todo o livro está escrito como um ataque direto a outros autores, nomeadamente três contemporâneos — Pinker, Harari e Diamond — e dois clássicos — Rousseau e Hobbes. Mas vai além quando nem sequer pára para criticar, mas simplesmente decide ignorar totalmente a ciência, começando por Darwin e a biologia, passando por toda a Física, e mais grave ainda, tendo em conta que se fala de comportamento humano, toda a Psicologia. Os autores, sentados no seu pedestal antropológico, julgam-se no direito de pescar casos isolados, feitos de variáveis não conforme, e tecer sobre estes interpretações para demonstrar aquilo que a sua agenda exige. Ignora-se na generalidade metodologias científicas de carácter empirista, baseando grande parte das deduções em ideias de autores que nunca passaram pelo crivo da revisão por pares. Mas para repescar esses autores existe sempre uma condição especial, suportada na ideia de que foram preteridos pelas grandes conspirações que conspurcaram a ciência iluminista — o colonialismo e o androcentrismo.

"Quixotically, Graeber and Wengrow expect readers to give serious consideration to a perspective on human origins that does not acknowledge evolutionary theory at all." -- Knight, 2022

É preciso começar por reconhecer que David Graeber foi uma enorme força da natureza, de uma elevação combativa dificilmente igualável, alguém que perdemos ainda muito novo, em 2020, com apenas 59 anos. Mas isso não nos obriga a concordar consigo, antes pelo contrário, deve-nos deixar alerta para o facto das suas enormes capacidades de persuasão representarem um grave obstáculo à nossa compreensão crítica. Todo o discurso apresentado na obra surge num tom e estilo de enorme plausibilidade e credibilidade, mesmo quando são ditas aberrações, que como diz Appiah, "duas meias verdades, infelizmente, não fazem uma verdade, nem mil verdades." Por isso, a leitura exige um espírito crítico sempre muito ativo.

A obra começa por atacar a tríade contemporânea — Pinker, Harari e Diamond — acusando-a de espalhar falsas narrativas sobre a evolução da espécie humana. Segundo Graeber e Wengrow, não evoluímos, nem progredimos em direção a nada, somos apenas uma massa heterógenea que vai variando o tempo todo. Mas paradoxalmente, e para afirmar a sua agenda, essa variabilidade enorme acabou no Iluminismo! A criação do Estado, e tudo o que ele nos trouxe — ciência, medicina, tecnologia, etc. —, representou o fim da liberdade do ser humano, vivendo nós hoje sob a opressão. Isto está umbilicalmente ligado à agenda anarquista que estrutura todo o pensamento de Graeber.

Para suportar esta ideia, começa por dizer, mais uma vez paradoxalmente, que nem Rousseau nem Hobbes inventaram nada ao procurar o conceito de desigualdade, porque esse lhes foi oferecido por Kondiaronk, o indígena das Américas pós-Colombo, que nos explicou que a nossa sociedade era uma prisão ao contrário da sua. Digo paradoxalmente, porque os autores iniciam o seu ataque ao texto de Rousseau, dizendo que nunca existiu qualquer igualdade. E aceitando eu que tal nunca existiu, e que o manifesto de Rousseau é mais panfleto do que tratado científico, porque vem então Graeber e Wengrow utilizar Kondiaronk como exemplo dessa igualdade? Suportando essas ideias com casos, de exceção, de pessoas que foram retiradas de condições de caos e pobreza, que quando se vêem conformadas numa sociedade tradicional de regras, com direitos e deveres, preferem voltar ao estado anterior, supostamente mais livre.

O problema aqui não é só o ridículo de Graeber e Wengrow tentarem suportar toda uma Revolução Científica conjuntamente com uma Revolução Industrial que transformaram o mundo, nas palavras de uma única pessoa, indígena ou não. Palavras que são retiradas de um texto que nunca menciona ser Kondiaronk o autor das mesmas, e apresentadas como uma originalidade sobre a igualdade, como se nunca tivesse existido o judaísmo, cristianismo e tantas outras religiões carregadas dessas chamadas boas intenções. Ou como se toda a academia fundada em Atenas tivesse desaparecido do nosso pensamento, ou como se a Imprensa de Gutenberg não tivesse tido qualquer importância. Mas o problema é bastante mais grave, porque se Graeber e Wengrow partem da premissa que toda a história dos últimos 10 a 15 mil anos demonstra uma mutação constante de modelos societais — usando para isso estudos arqueológicos de Göbekli Tepe, Cahokia ou Teotihuacan — não se compreende como é que no final do livro atacam o modelo societal de todo o planeta atual como sendo uno. Para eles, ficámos parados (stuck) num modelo que nos aprisiona e nos impossibilita de sermos livres. Do meu lado, se não acredito na igualdade que Rousseau professava sobre a pré-história humana, também não acredito na igualdade professada por Graeber sobre a contemporaneidade humana. Sim, todo o globo foi dividido em estados com fronteiras, mas isso é suficiente para dizer que todos vivem da mesma forma? Quantos milhões de pessoas vivem no interior dessas fronteiras, trabalhando de sol a sol para sobreviver sem qualquer qualquer consciência das mesmas?

Aliás, esta assunção de estarmos presos num momento uno, é mais método do que conclusão. Porque são várias as frentes em que Graeber a utiliza. Por exemplo, quando a determinada altura pretende suavizar a crítica sobre a Revolução da Agricultura, que diz nunca ter existido, diz-nos o seguinte: 

"Nobody, of course, claims that the beginnings of agriculture were anything quite like, say, the invention of the steam-powered loom or the electric light bulb. We can be fairly certain there was no Neolithic equivalent of Edmund Cartwright or Thomas Edison, who came up with the conceptual breakthrough that set everything in motion. Still, it often seems difficult for contemporary writers to resist the idea that some sort of similarly dramatic break with the past must have occurred." Graeber e Wengrow, 2021

Mas quem é que olha para a invenção da energia a vapor ou da lampada elétrica como inventadas por uma única pessoa? Se tivesse dedicado algum tempo a estudar os processos de inovação humana, veria como, sem exceções, são o fruto de míriades de tentativas falhadas, produzidas por múltiplas pessoas, que permitem aprender e acumular conhecimento (ler Kevin Kelly e Steven Johnson). O humano, e a nossa imprensa por imitação, adora o culto da personalidade, de Da Vinci a Steve Jobs, a genialidade é o que interessa, mais do que aquilo que foi preciso para chegar a ela. Se estas tecnologias, suportadas por imenso conhecimento, demoraram imenso tempo a acontecer, como é que seria de esperar que a revolução agrícola que surgiu num mundo incapaz de registar o conhecimento, pudesse acontecer de um dia para o outro? Mas depois repare-se no que diz a seguir:

"In fact, as we’ve seen, what actually took place was nothing like that. Instead of some male genius realizing his solitary vision, innovation in Neolithic societies was based on a collective body of knowledge accumulated over centuries, largely by women, in an endless series of apparently humble but in fact enormously significant discoveries."  Graeber e Wengrow, 2021

Se Graeber foi capaz de perceber que a revolução agrícola não foi um estalar de dedos, porque é que acha que a revolução industrial, ou qualquer outra o foi?! Porque lhe interessa, porque de um ponto de vista persuasivo funciona bem para suportar a sua argumentação narrativa. E marca pontos na agenda política, atacando o elemento sempre apresentado como criador, o homem, em detrimento da mulher. Mas isto é discussão política, quando era suposto ser ciência.

Vejo aqui um discurso que pretende criticar Rousseau, seguindo o mesmo método que critica. Para Rousseau éramos todos iguais na natureza, tanto que as doenças eram provocadas pelas próprias pessoas e a medicina não era precisa para nada. Isto porque Rousseau nunca parou para pensar na enormidade do número de bebés que morria à nascença, aceitando isso como lei natural. Mas também não parou para pensar em todos aqueles que nasciam com doenças congénitas, porque esses não apareciam nos palanques políticos. Já sobre as enormes discrepâncias fisiológicas e psicológicas, essas eram o que eram, nada mais. A ignorância sempre foi uma benção, e tem servido muito bem a ideia de mérito. Já Graeber e Wengrow dizem-nos que a sociedade em que vivemos agora é que é toda igual, e é uma prisão. Perdemos tudo, porque perdemos o direito de viver segundo as nossas escolhas, sendo obrigados a viver segundo as leis dos Estados. Não importa nada tudo aquilo que a ciência e a medicina nos trouxeram. A gigantesca redução da mortalidade infantil, da mortalidade das mulheres no ato de dar a luz, a gigantesca redução da mortalidade por uma simples infeção, bactéria ou vírus. E mais uma vez, paradoxalmente, os avanços tecnológicos proporcionadas pela ciência, que permitiram aos arqueólogos, como Wengrow, descobrir mais e mais evidências sobre como viveram os nossos antepassados. 

Claro que na cabeça de Graeber e Wengrow, eles não estão a defender que a sociedade seria melhor sem a Ciência, Medicina e Tecnologia, eles querem antes vender a ideia de que tudo isto teria sido possível sem a criação de todo um sistema de regulação da atividade humana, aquilo que definimos como Estados. Porque segundo eles, são mais os exemplos em que a regulação humana sobre a natureza produziu efeitos negativos do que positivos. Para isto, nada melhor do que atirar a bomba climática para o meio da arena, existe argumento melhor para persuadir quem nos está a ler?

E é para sustentar este ideário que os autores trabalham durante 700 páginas, no desmontar da evolução linear da civilização humana. Com esses exemplos — sempre os mesmos 2 ou 3 — Poverty Point ou Teotihuacan —, querem demonstrar que sempre houve tempos em que as pessoas viveram sem regulação. Dão o exemplo das Dinastias do Antigo Egípcio, referindo que 1/3 do tempo da história de todo o antigo Egipto, não houve reis nem lei, reinava o caos, e nem por isso o Egipto acabou. Que a ideia de um progresso linear, é uma invenção dos historiadores do Iluminismo. Uma crítica que temos de aceitar em parte, porque a narrativização da História tende a eliminar o que não é padronizável. Aliás, esse é o problema de autores que divulgam ciência para as massas, como Diamond ou Harari. Mas atacar estas narrativas, não livra os autores de terem de constatar o óbvio, mas que naturalmente não constatam.

Porque se os historiadores/divulgadores tendem a sintetizar e a simplificar a História em termos lineares, narrativos, a ciência não pode acontecer sem o acumular de conhecimento. Seria importante Graeber atentar na mente mais brilhante do Iluminismo, Isaac Newton, e na sua singela definição de ciência:

"If I have seen further, it is by standing on the shoulders of giants." Newton, 1675

Mas a machadada final sobre todo o discurso de Graeber deixo-a para um especialista da arqueologia de Teotihuacan, a cidade querida de Graeber, mas sobre a qual Michael Smith não se limita a tentar interpretar criticamente os dados arqueológicos, mas fá-lo com base em sistemas transdisciplinares de análise, começando por dizer desde logo:

"The idea that population size and density have strong effects on urban society and organization is not just an assumption or ideological belief, as Graeber and Wengrow suggest. It is, rather, one of the most strongly supported empirical findings of urban research, with much evidence and analysis in sociology (Mayhew and Levinger 1977; Simmel 1898), economics (Casari and Tagliapietra 2018; Glaeser 2010), political science (Tavares and Carr 2012), sociocultural anthropology (Bodley 2003; Carneiro 2000), biology (O’Brien 2011; Uchida et al. 2021), urban science (Bettencourt 2013, 2021), and archaeology (Feinman and Nicholas 2016; Fletcher 1995; Jennings 2016; Kosse 1990)." Smith, 2022

Ao que depois junta uma análise de evidências empíricas que dão conta do modo como a Escala e Densidade transformam totalmente a capacidade da nossa espécie de sobreviver, usando para o efeito o festival "The Burning Man" que iniciou a sua organização nos anos 1980 segundo princípios anarcas — "inclusão radical, doação, decomodificação, auto-suficiência radical, auto-expressão radical, esforço comunitário, responsabilidade cívica, sem deixar vestígios, participação e imediatismo" — mas que a partir de 1996, com o aumento de público, se viu obrigado a mudar radicalmente o seu modelo organizativo.

Quadro de Michael Smith, 2022
“After ‘96 it became very plain that unless things were regulated, unless we could create civic order, with the numbers that were coming in, it was unsafe” (Fairs 2015)." Smith, 2022

“We got to a point where I saw people becoming irrationally angry with each other and with the city. It occurred to me that this might be an effect of overpopulation, and that we’d hit some tipping point where people were no longer comfortable” (Berg 2011)." Smith, 2022

Sintetizando. O facto de existirem variações da norma é não só normal, como fundamental na definição social do humano, tanto olhando à sua psicologia, como olhando à física que suporta a biologia em que nos movemos. Agora, a nós académicos compete-nos encontrar os padrões que prevaleceram, tentando perceber porquê esses e não outros. Esse não é um mero fundamento progressista emanado do darwinismo, esse é o modo como podemos estruturar o conhecimento, do geral para particular. Claramente que cada particular tem a mesma relevância de qualquer outro particular, mas o modo como podemos compreender a nossa espécie não se pode fazer com base em punhados de exceções. O que não quer dizer que não se faça também. Mas mais do que isso, não quer dizer que não sejam relevantes, e que não sirvam o próprio progresso, porque desde logo ajudam a compreender o porquê da generaldiade, assim como apresentam alternativas a essa mesma generalidade. No fundo, toda a regulação objetiva à generalização, mas em face de cada conflito recorre-se às exceções para tentar compreender como se pode alterar e melhorar a generalidade. Em síntese, a norma e a exceção sempre conviveram, porque fazem parte do modo como tudo se estrutura.

"Dawn deserves credit for being the most extended and detailed rebuttal to evolutionism this century, but also deserves criticism for exactly the same reason." Ian Morris, 2022

E por isso, apesar de eu atacar fortemente o trabalho de Graeber e Wengrow, sou obrigado a reconhecer o seu trabalho como extremamente importante (em partes profundamente suportado em trabalho académico relevante), por tudo aquilo que nos obriga a questionar, requestionar, e a tentar compreender de outras perspectivas. Por muito que não goste das ideas e conclusões, não posso deixar de agradecer aos autores por este trabalho colossal, e porque no fundo reconheço o príncipio basilar do humano como capaz de determinar o seu caminho, e não como mero peão sob o jugo das condicionantes naturais.


Não é fácil encontrar análises críticas, já que a imprensa geral se deixa levar pelo tamanho do livro. Por isso, deixo vários textos que ajudam a ler a obra com um olhar mais crítico:

Leading Scholars of the Past Comment on Dawn of Everything, todo um número especial da revista científica Cliodynamics, dedicado a analisar os problema do livro.  Apr. 2022

"‘The Dawn of Everything’ gets human history wrong", 3 antropólogos discutem os problemas do livro Chris Knight, Nancy Lindisfarne e Jonathan Neale, Dec. 2021

"A Flawed History of Humanity", análise da questão de Rousseau, Nov. 2021

"Digging for Utopia", de Kwame Anthony Appiah, a crítica mainstream mais dura. Dec. 2021


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